terça-feira, 6 de outubro de 2020

A todo vapor


   Luzes acesas à minha volta; agora, só vejo corpos em movimento, sorrisos num outdoor dizendo o que deve ser feito a toda hora, tudo isso sempre ditando, lá do lado de fora, a ordem pra que todos sigam em frente, que tudo é sempre "sem demora", que a felicidade só cabe no bolso de quem se esforça, que o boom da vida se procura na vitrine da moda, que paz e amor é coisa de quem chora, e que ninguém se atreva a conter essa roda de girar pelo mundo afora, destruindo a fauna e a flora, moendo a vaga memória dos povos de outrora, se valendo da guerra pra contar a sua própria história e fazendo da nossa vida uma realidade morta.

    De manhã, meu corpo acorda cansado, por se sentir servo da própria sina, por ser amordaçado toda vez que digo que a violência não ensina, por ver o mundo se voltar contra a menina que ousou falar na própria língua, por não ter o mesmo direito de quem anda no andar de cima — essa gente que, aliás, se porta como se fosse divina —, por ver a democracia derreter como resina, por ter ofertado os meus átomos em pedaços nessa usina que consome vidas. Quem me dera ter encontrado uma milagrosa medicina, uma única vacina pra toda essa usura urdida na urbes capitalista!

    De repente, um operário se lança aos berros pelo anfiteatro, incendiando os ares com todos os fatos acerca dos seus males: "Sei que sou usado pelos altos poderes! Ah, como sei! Não diga que preciso ler pra sentir o sangue vertido escorrer pelo escuro do capacho. A fadiga vai muito além de uma teoria qualquer; ela me consome por dentro; ela me aniquila por inteiro; ela é um fato puramente verdadeiro. De canto a canto, ouço um único lamento: 'eu não aguento mais, meus irmãos'; eles são de corpos em sofrimento, são de olhos marcados pelo soco do tempo; ombros vergados como um reles rebento, já cansado de ser varado pelo vigor do vento; são semblantes desfigurados pelo esgotamento". Contudo, esse povo se recusa a cessar sua triste tortura, pois, tomar as rédeas da própria ventura, requer suportar o som do silêncio, o som da incerteza que está presente em todos os momentos de decisão.

   À tarde, o noticiário se agita com um escândalo de última hora, com um massacre a tiros em mais uma escola, com uma economia subdesenvolvida que jamais decola; e com o povo padecendo aos milhões na esfola, que é como eu traduzo aqui o trabalho ininterrupto por uma esmola; além disso, temos mais uma fala do presidente, que, por sinal, só enrola; e temos o Chile em plena revolta, que lança às alturas um continente ansioso por mudar a sua trajetória. De fato, eu não pertenço à malta inglória, mas sou obra da esquerda que ferveu o mundo com sua história, que marcou em todos o signo da sua trajetória. Sim, quero a vitória de quem se sacrifica, quero dar glória aos trabalhadores e aos revolucionários, quero exaltar a memória de quem sonhou com um mundo melhor, bem melhor que o de agora.

 

Daniel Viana 

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