Caminhei ao léu por horas,
curtindo o sol tropical na praia do Bessa; caminhei de pés descalços, olhando o
céu azul, mirando as nuvens esparsas no limiar do horizonte sem-fim; caminhei
sozinho, acompanhado tão somente do prazer de novamente sentir a vida pulsar,
vibrar e cantar dentro de mim.
Não
há porque sentir medo de morrer, a despeito daquela carnificina no noticiário
das sete, na qual os pretos pagam o preço de ter a pele que faz a súbita rajada
soar. Devo dizer a verdade para você: eu estou nos Elíseos.
E
nesse dia de sol ninguém falou comigo. O silêncio ruge na baía tropical; ele se
avoluma com as primeiras nuvens que cercam a praia, ameaçando-nos com uma chuva
torrencial. É melhor assim, pois estavam todos com seus filhos, seus brinquedos
e cachorros adestrados; estavam os casais reunidos em volta de suas crias
pequenas, tal como uma horda primitiva, cavando poços d’água e construindo
castelos de areia, à medida que a maré subia, engolindo suas obras de frágil areia
branca. Nesse mundo que vivemos, todas as coisas vêm e vão, mas algo parece se
perpetuar: a disposição das pessoas de acordo com a sua pele, de acordo com a
família e a comunidade na qual nasce e cresce.
Na
praia em que cresci, tudo sempre esteve disposto numa estranha ordem familiar,
de modo que preferi não me meter, de modo a evitar aborrecer os transeuntes. Sou
apenas uma criaturinha que reflete e — às vezes — se revolta com a maneira com
que as pessoas estão postas nessa sociedade de castas. O que eu poderia fazer
além de escrever uma crônica? O que eu poderia fazer além de exprimir meu
assombro com a maneira com que essa sociedade foi concebida desde os tempos
imemoriais? Se fosse possível, eu diria: pergunte aos navegantes, aos
bandeirantes, aos primeiros comerciantes, aos escravagistas, aos grandes capitalistas,
pergunte aos cafeicultores e toda essa escrota turba que fez o Brasil ser assim.
Alguém
diria em meu ouvido: “uma volta ao passado já não é possível, meu amigo”. Seria
melhor que todos nos reconciliássemos com o que veio antes, mas a memória faz a
rajada parecer mais potente, pois nos recorda de cada dantesca derrota, de cada
chacina facínora, de cada botina na goela da nossa gente. A memória de tudo é
dura demais pra uma só pessoa aguentar, de modo que me embriago, absorvo o pó
lentamente e tento passar o que posso àqueles que vêm à minha presença.
Não
procuro fazer mais que o possível pela minha gente mutilada, escorraçada… Por
enquanto, vamos viver do que der, cuidando uns dos outros sempre que puder,
deixando a verdadeira Revolução para tempos vindouros, quando a pauta não for mais
sobreviver ao medo da morte que se avizinha a todo instante. Pode me chamar de
covarde se quiser. Eu digo que, se manter vivo, nutrido nas íntimas entranhas
pelo saboroso pulsar da vida, é a maior façanha do sujeito pobre, favelado e preto.
Não cobremos dele mais que uma digna sobrevivência nesse inferno tropical.
Aos
revolucionários, eu digo: não guardem as armas! Apenas saibam usá-las com
fervor incendiário nos dias de chuva, pois, nos de sol, a praia vai estar
lotada de brasileiros jogando frescobol, bebendo água de coco e surfando nas
ondas mansas e deleitosas. Os massacres são sucessivamente recalcados: põe-se o
suspeito atrás das grades — ou simplesmente fuzila-o à beira da estrada — como
se isso pudesse restaurar uma harmonia, que, de fato, nunca existiu entre nós.
Somos desarmônicos desde a gênese de séculos passados. Quando Cabral aportou nas
praias tupiniquins, fomos marcados pela desigualdade brutal que perdura até
hoje, sem qualquer alteração que possa pôr um fim à imoral acumulação da
riqueza coletiva.
Uma
vez que, nas ruas, não se enxerga qualquer forma de rebelião, qualquer
contestação à realidade presente limita-se a esperanças de teor eleitoral, bem
como ao famigerado personalismo, tão requentado por nossas limitações sociopolíticas.
Que tragédia! Excetuando-se os conhecidos militantes, com suas ideologias
conflitivas e opiniões variadas, as ruas parecem hibernar num sono profundo. Consequência
duma despolitização generalizada? Pode ser que sim, mas, creio na modorra
típica do brasileiro comum, que ainda não tem consciência plena da sua própria cidadania,
senso de responsabilidade com a realidade, coletivismo na sua relação com os
demais etc.
Ah,
eu sei que sou uma gota d’água nesse oceano que circunda a praia do Bessa; sou pura
poeira cósmica que, após viajar pelo infindável cosmo, assumiu a forma do hominídeo
evoluído, capaz de ler e rabiscar palavras no papel; sou filho do Altíssimo,
que nos ama e nos guarda eternamente; sou uma partícula que se movimenta, confusamente,
à procura de um sentido que traga alento a essa estranha solidão que nos
rodeia, periférica condição latino-americana; sou fruto da terra que me gerou, cuja
insatisfeita procela se agita em meu interior.
Daniel Viana
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