domingo, 11 de julho de 2021

Dia ensolarado


       Caminhei ao léu por horas, curtindo o sol tropical na praia do Bessa; caminhei de pés descalços, olhando o céu azul, mirando as nuvens esparsas no limiar do horizonte sem-fim; caminhei sozinho, acompanhado tão somente do prazer de novamente sentir a vida pulsar, vibrar e cantar dentro de mim.

Não há porque sentir medo de morrer, a despeito daquela carnificina no noticiário das sete, na qual os pretos pagam o preço de ter a pele que faz a súbita rajada soar. Devo dizer a verdade para você: eu estou nos Elíseos. Tenho o privilégio de não ouvir tiros onde acordo, de não ser continuamente ameaçado pela força policial, pois moro junto à camada mais protegida da sociedade: os brancos endinheirados — os trinta negros estão naquele féretro que desce morro abaixo, para além do umbral que cinde o nosso mundo e o dos mortos.

E nesse dia de sol ninguém falou comigo. O silêncio ruge na baía tropical; ele se avoluma com as primeiras nuvens que cercam a praia, ameaçando-nos com uma chuva torrencial. É melhor assim, pois estavam todos com seus filhos, seus brinquedos e cachorros adestrados; estavam os casais reunidos em volta de suas crias pequenas, tal como uma horda primitiva, cavando poços d’água e construindo castelos de areia, à medida que a maré subia, engolindo suas obras de frágil areia branca. Nesse mundo que vivemos, todas as coisas vêm e vão, mas algo parece se perpetuar: a disposição das pessoas de acordo com a sua pele, de acordo com a família e a comunidade na qual nasce e cresce.

Na praia em que cresci, tudo sempre esteve disposto numa estranha ordem familiar, de modo que preferi não me meter, de modo a evitar aborrecer os transeuntes. Sou apenas uma criaturinha que reflete e — às vezes — se revolta com a maneira com que as pessoas estão postas nessa sociedade de castas. O que eu poderia fazer além de escrever uma crônica? O que eu poderia fazer além de exprimir meu assombro com a maneira com que essa sociedade foi concebida desde os tempos imemoriais? Se fosse possível, eu diria: pergunte aos navegantes, aos bandeirantes, aos primeiros comerciantes, aos escravagistas, aos grandes capitalistas, pergunte aos cafeicultores e toda essa escrota turba que fez o Brasil ser assim.

Alguém diria em meu ouvido: “uma volta ao passado já não é possível, meu amigo”. Seria melhor que todos nos reconciliássemos com o que veio antes, mas a memória faz a rajada parecer mais potente, pois nos recorda de cada dantesca derrota, de cada chacina facínora, de cada botina na goela da nossa gente. A memória de tudo é dura demais pra uma só pessoa aguentar, de modo que me embriago, absorvo o pó lentamente e tento passar o que posso àqueles que vêm à minha presença.

Não procuro fazer mais que o possível pela minha gente mutilada, escorraçada… Por enquanto, vamos viver do que der, cuidando uns dos outros sempre que puder, deixando a verdadeira Revolução para tempos vindouros, quando a pauta não for mais sobreviver ao medo da morte que se avizinha a todo instante. Pode me chamar de covarde se quiser. Eu digo que, se manter vivo, nutrido nas íntimas entranhas pelo saboroso pulsar da vida, é a maior façanha do sujeito pobre, favelado e preto. Não cobremos dele mais que uma digna sobrevivência nesse inferno tropical.

Aos revolucionários, eu digo: não guardem as armas! Apenas saibam usá-las com fervor incendiário nos dias de chuva, pois, nos de sol, a praia vai estar lotada de brasileiros jogando frescobol, bebendo água de coco e surfando nas ondas mansas e deleitosas. Os massacres são sucessivamente recalcados: põe-se o suspeito atrás das grades — ou simplesmente fuzila-o à beira da estrada — como se isso pudesse restaurar uma harmonia, que, de fato, nunca existiu entre nós. Somos desarmônicos desde a gênese de séculos passados. Quando Cabral aportou nas praias tupiniquins, fomos marcados pela desigualdade brutal que perdura até hoje, sem qualquer alteração que possa pôr um fim à imoral acumulação da riqueza coletiva.

Uma vez que, nas ruas, não se enxerga qualquer forma de rebelião, qualquer contestação à realidade presente limita-se a esperanças de teor eleitoral, bem como ao famigerado personalismo, tão requentado por nossas limitações sociopolíticas. Que tragédia! Excetuando-se os conhecidos militantes, com suas ideologias conflitivas e opiniões variadas, as ruas parecem hibernar num sono profundo. Consequência duma despolitização generalizada? Pode ser que sim, mas, creio na modorra típica do brasileiro comum, que ainda não tem consciência plena da sua própria cidadania, senso de responsabilidade com a realidade, coletivismo na sua relação com os demais etc.

Ah, eu sei que sou uma gota d’água nesse oceano que circunda a praia do Bessa; sou pura poeira cósmica que, após viajar pelo infindável cosmo, assumiu a forma do hominídeo evoluído, capaz de ler e rabiscar palavras no papel; sou filho do Altíssimo, que nos ama e nos guarda eternamente; sou uma partícula que se movimenta, confusamente, à procura de um sentido que traga alento a essa estranha solidão que nos rodeia, periférica condição latino-americana; sou fruto da terra que me gerou, cuja insatisfeita procela se agita em meu interior.

 

Daniel Viana

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