sábado, 15 de janeiro de 2022

Enfim, libertos?

 

                Assim como a vasta maioria das pessoas vivas, não tenho dúvidas de que os últimos anos foram absolutamente trágicos para a Humanidade, excetuando-se, é claro, a plutocracia que esconde suas fortunas em paraísos fiscais e que acumula lucros vexaminosos ano após ano. Entretanto, é notório que a situação varia sensivelmente de um país para o outro. No nosso caso, pode-se dizer que o Brasil caminha em direção ao desastre, a despeito da horripilante gestão do nosso infame e desumano mandatário, Jair Bolsonaro.

                Todavia, o que vou escrever a seguir, não diz respeito ao presidente atual. Haverá o momento certo de expor ainda mais a sua indisfarçável e intratável mediocridade, fruto de uma personalidade histriônica e obtusa, que jamais deveria ter posto os pés no Palácio do Planalto ou ter alguma notoriedade em meio à nossa sociedade.

                Prefiro ater-me àquilo que temos observado há meses no noticiário: o vigoroso renascimento político de Lula, dado por muitos como o próximo presidente do Brasil. De certa forma, tudo isso me encanta quando penso no Brasil. Pois se trata de um indivíduo exposto a uma das maiores campanhas de ataque midiático que se teve notícia em nossa história, mas que, a despeito de todos os esforços da Casa-Grande, conseguiu sobreviver e andar de cabeça erguida na rua. Quem se atreve a negar sua perspicácia e sua popularidade a essa altura? Para o bem ou para o mal, Lula sobreviveu e segue dando as cartas no debate acerca do presente e do futuro do país.

                Em meio a isso, muitos seguidores do ex-presidente se juntam para nos lembrar que “no tempo dele, tudo era melhor”. Ora, se compararmos o passado recente com uma soma de pandemia, debacle econômica, queda da renda, apocalipse climático, escassez e pobreza generalizadas, bem como uma aguda crise de representatividade, tudo que veio antes parece róseo, um arco-íris de plenitude e bem-estar coletivo, o que não é verdade.

Para não cair nos chavões e lugares-comuns do nosso mindset político, é urgente um pingo de lucidez nos raciocínios, nos posicionamentos e nas palavras. Desconfie das soluções fáceis. Falar sem cautela, movido por um desejo de se destacar em meio aos outros, é simplesmente contraproducente. Como disse um poeta certa vez, “o Brasil não é para iniciantes”. O nosso cenário é mais complexo do que se imagina.

Os petistas dizem que criticar o Partido dos Trabalhadores (PT) é fácil, uma espécie de comportamento de manada reacionário e condicionado pelos grandes conglomerados de comunicação. Entretanto, quem se identifica como anticapitalista, antifascista, progressista, trabalhista, socialista ou comunista, sabe o quão complexo é criticar os ditames do partido fundado pelo ex-presidente Lula, líder em todas as pesquisas de intenção de voto. Sempre estamos às voltas com acusações de sectarismo, esquerdismo, extremismo, ou, nos piores casos, de que estamos “a serviço da direita”. São acusações que beiram ao que há de mais cômico na imaginação política.

Ainda hoje, Lula enche o peito para nos lembrar que o seu partido é o maior da América Latina. E ele está coberto de razão. Logo, devemos dar a este partido aquilo que lhe é de direito: uma insistente e incansável crítica quanto às consequências de suas políticas para o povo brasileiro nas últimas décadas. Afinal, foram treze longos anos de gestão petista, cujo final desembocou numa calamitosa recessão, até então sem paralelo em nossa história repleta de tragédias. A famosa autocrítica que se cobra de Lula e do PT é aquela que tanto ouvimos nos meios de comunicação de massa. Mas, esta é vaga, moralista e pequeno-burguesa. Deve-se cobrar aquilo que estava nas origens do PT, que tanto deu esperanças aos trabalhadores e trabalhadoras, que não hesitaram em arregaçar as mangas e engrossar as fileiras do partido no idos de Fevereiro de 1980. À época, ser do PT, significava assumir a luta por uma sociedade mais igualitária, com uma autêntica justiça social, sempre a favor dos mais pobres, contrariando os interesses do patrão.

De fato, como toda força hegemônica em seu devido momento histórico, o lulismo e o petismo procuram ignorar, calar ou difamar os seus críticos mais coerentes, para que, assim, possa dar sobrevida ao seu próprio status quo. Aos lulistas e petistas já não interessa mais o vento da mudança. Faz décadas que ser membro do PT deixou de ser sinônimo de rebeldia, inconformismo ou mesmo de preferência pelos mais pobres. Na realidade, deve-se pontuar que o mundo mudou muito de 1980 para cá: as gerações, as relações, as ideologias, as tecnologias e o cenário internacional são completamente diferentes. Contudo, ao invés de ouvir o apelo por mudança, o PT se apegou àquilo que achou válido para si, deixando para trás seu passado legitimamente popular.

O PT que emergiu no início dos anos 1980, representou um avanço para o nosso país. Não tenho dúvidas quanto a isso. Entretanto, todos os partidos políticos estão sujeitos a uma decadência própria de quem não se renova, de quem não se rejuvenesce, mantendo-se prisioneiro de dogmas que envelhecem à medida que o tempo passa. Aliar-se a uma burguesia decadente e a partidos fisiológicos, no intuito de preservar uma governabilidade sem povo, foi um desses dogmas desastrados. O único aliado de um partido proveniente das camadas populares é o próprio povo e ninguém mais. Nunca haverá espaço para nós nos salões dos endinheirados. Mais cedo ou mais tarde, o partido verdadeiramente operário que se apoiar num conchavo com a burguesia será removido, perseguido e aniquilado. A luta de classes é tão real hoje quanto na época de Marx e Engels, de Lênin e Mao Tse-tung, de Marighella e da Guerrilha do Araguaia.

                Para mim, Lula não representa esperança, mas uma anestesia que possibilitará à nossa insensível e selvagem burguesia desfigurar, desmantelar, desmobilizar ainda mais a sociedade brasileira. Claro que, frente a uma figura nefasta como Bolsonaro e seu projeto de destruição da nossa nação, votar em Lula parece a escolha mais imediata, dada a boa lembrança que uma favorável parcela da gente brasileira tem para com ele. Jamais negaria isso. Aliás, não espero conseguir a compreensão do militante petista, haja vista a cegueira patológica que corrompe os lulistas mais fanáticos e descerebrados. O debate lúcido, racional e sincero está simplesmente cancelado para estes encarcerados do personalismo.

                Lula sempre foi um negociador de conciliações, o que, em tempos passados, pode ter dado relativamente certo. Decerto, em sua gestão, a burguesia lucrou rios de dinheiro, ao mesmo tempo em que os desfavorecidos foram salvos da fome e da pobreza mais extrema. Ademais, postos de trabalho foram criados, setores da economia avançaram a passos largos, os pobres entraram nas universidades, nos shoppings e nos aeroportos, as escolas técnicas se espraiaram e a política externa foi um pouquinho mais arrojada que o normal, bem como leis — absolutamente necessárias e civilizadoras — como a Maria da Penha foram criadas e ratificadas. Outras conquistas chamaram a atenção de todos, como a recepção da Copa do Mundo e das Olimpíadas, de modo a confirmar a emancipação da nação brasileira aos olhos do chamado “mundo civilizado”. A grande massa tinha a sensação de que, enfim, o nosso amado e sofrido Brasil havia acompanhado o bonde da história.

                Só que, os fatos históricos nem sempre caminham pari passu com as nossas convicções ideológicas e pessoais. Na realidade, tanto a esquerda quanto a direita costumam manipular a História e, se possível, até mesmo a realidade para os seus próprios fins. É claro que a busca da verdade quase sempre esbarra na impossibilidade de se chegar a conclusões indubitáveis. No entanto, é possível saber, com segurança, de que certos fatos certamente ocorreram, não só devido às provas materiais que os corroboram, como também pelos testemunhos daqueles que participaram das ilicitudes em questão. Negá-los, parece mais um exercício de ilusionismo do que de esclarecimento jornalístico ou histórico. Portanto, digo, sem quaisquer dúvidas, que a corrupção envileceu a gestão de Lula e Dilma — o que não nega a sua existência em épocas anteriores.

                Contudo, a corrupção não foi o maior dos males da gestão petista, por incrível que esta afirmação pareça. Ao contrário do que a classe média moralista pensa, a corrupção não é a trava que nos impede de se desenvolver ao ponto de alcançar as nações ricas, porque estas também sofrem da mesma moléstia e seguem nos governando de cima. A corrupção é endêmica ao capitalismo, e não uma anomalia que o aflige, de tal maneira que o entreguista abobado é mais um que desconhece o funcionamento das engrenagens do poder e do aviltante acúmulo de riquezas que caracteriza o sistema capitalista. Assim sendo, é ingênuo afirmar que o PT criou a corrupção, bem como que as cifras tenham superado tudo que houve antes. Sempre houve quem se aproveitasse do poder para chafurdar seu caráter no lamaçal da indecência. Dourar o passado, como se este fosse uma espécie de horizonte utópico para os desencantados do nosso presente, é um insulto à inteligência de quem já mergulhou nas entranhas da nossa trágica história.

                Ora, se a corrupção não foi o pior e nem o único dos gravíssimos erros do PT, quais outros enganos poderiam ser destacados? Eu poderia dizer que Lula cortejou e alimentou a mesma cúpula de sanguessugas do MDB que, mais tarde, iria defenestrar Dilma Rousseff da cadeira presidencial e que nos conduziria a um vórtice de absurdos e insanidades, desembocando nas Eleições de 2018, cujo fim todos nós sabemos qual foi; eu poderia dizer que Lula apoiou uma política de segurança pública que resultou numa escalada de encarceramento e assassinato de negros e pardos, tal qual nunca se viu antes na história desse país; eu poderia dizer que Lula abortou qualquer tentativa de enfrentamento à concentração de poder dos clãs ligados aos meios de comunicação brasileiros; eu poderia dizer que Lula fortaleceu o mesmo agronegócio que mais tarde se converteria num bastião do bolsonarismo e que sempre foi antipopular, um arqui-inimigo dos povos indígenas e quilombolas; eu poderia dizer que Lula não se importou em desmobilizar as massas do protagonismo político, de modo a abrir espaço, nas ruas, para uma grotesca extrema-direita, que surrupiaria Dilma da presidência. Essa lista poderia seguir adiante, ao longo de muitas páginas, mas creio ter dado uma noção clara do meu profundo desacordo com as políticas petistas.

                Também é digno de nota que, terminada a Ditadura e promulgada a Constituição, era indiscutivelmente premente a reforma do Estado Brasileiro, como, por exemplo, a Reforma Tributária, a Reforma da Previdência, a Reforma Agrária, a Reforma Urbana e assim por diante. Collor não o fez, tampouco Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso, o que não deve surpreender a ninguém que conheça a quem estes senhores serviam. Claro que a superação da hiperinflação foi uma conquista importante, porém ela era insuficiente para curar um país abissalmente injusto como o nosso. Acreditou-se que o PT pudesse fazê-lo melhor que os demais, mas não foi o que acorreu. Lula, tal como um mero populista, simplesmente surfou na mais prodigiosa e surpreendente popularidade — resultante, em boa medida, do famigerado boom das commodities — para eleger uma inepta, impopular e canhestra sucessora, que, mais tarde, colaboraria para afundar o Brasil numa tenebrosa recessão. Quer queira, quer não, isso ficará registrado em sua controversa biografia.

                A despeito de tudo isso, há quem alimente sinceras esperanças quanto ao nosso futuro próximo. Afinal, estamos chegando ao final do pior governo da nossa história. Um verdadeiro desgoverno, para ser mais preciso, que só pode ser defendido pelos canalhas, fanáticos, manipulados e pelos entreguistas. Logo, é de se esperar que saiamos do fundo do poço a partir do ano que vem.

Não me envolvo em discussões com nenhum dos dois grupos risivelmente antagônicos — haja vista que ambos servem aos mesmos senhores —, pois sei bem que não há argumentos que se façam ouvir em meio ao fragor ruidoso das paixões políticas. E, antes que eu seja apressadamente acusado de traidor pela pseudoesquerda do PT, afirmo que, no segundo turno, votarei em qualquer um que se oponha a essa catástrofe que representa Bolsonaro, o que, obviamente, inclui Lula. Todavia, respeito e compreendo quem decidir votar em branco ou anular o seu voto.

                Até o presente momento, não se vê qualquer mudança de rumos na maneira com que Lula e o PT pretendem governar o nosso país a partir de 2023. Ao contrário, de vez em quando surge no noticiário o famoso “Lulinha paz e amor”, ridícula alegoria de quem pretende atenuar a ferocidade das classes dominantes, tão afeitas à submissão do povo brasileiro. Com efeito, repete-se que antes era melhor, sendo que foram justamente as estultas decisões do passado que nos conduziram à catastrófica realidade que vivemos hoje. Colocar toda responsabilidade em Bolsonaro, é um equívoco de quem tem memória curta, de quem se apressa em condenar só uma parcela dos malfeitores que arruinaram a morada em que vivemos. Quando Lula assumirá o seu quinhão de responsabilidade, de modo a corrigir o prumo do navio antes que ele colida com o iceberg?

                É claro que, diante de todo o horror que representou a gestão de Bolsonaro, o lulista mais afobado dirá: “Antes era melhor!”. Ora, eu não nego que tenha sido, mas não me permitirei falsear aquilo que, verdadeiramente, foi a Era Lula-Dilma.

 

Daniel Viana

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