domingo, 27 de fevereiro de 2022

Uma crítica à política externa bolsonarista

 

         Ao longo dos últimos dias, o mundo tem observado, no leste europeu, fatos de extrema relevância geopolítica e geoeconômica. Não há quem não assuma um posicionamento com base naquilo que acredita ser ideologicamente factível e lógico. Entretanto, neste texto, não me aprofundarei nas justificativas do Kremlin para atacar Kiev, nem se o Ocidente acertou em fomentar o militarismo nas fronteiras da Rússia, bem como em expandir a OTAN para o leste. Em outro momento, me deterei nestas questões mais amplas e sensíveis.

Temos diante de nós um fato: a Rússia invadiu a Ucrânia, pondo um fim à estabilidade política que se estendeu ao longo de décadas na Europa Oriental. Cada nação tem apresentado o seu posicionamento com base nas mais variadas justificativas políticas, ideológicas, históricas, econômicas e socioculturais. Uma mudança de proporções globais encontra-se diante de nós, com consequências que se estenderão por muitos anos à nossa frente. Talvez, assim como ocorreu nos primeiros dias da Pandemia do Novo Coronavírus, nem todos tenham se dado conta do tamanho da mudança que temos testemunhado.

            Em meio a isso, o governo brasileiro tem demonstrado sua indisfarçável mediocridade. Demonstrar solidariedade ao presidente russo, Vladimir Putin, foi um dos mais graves erros de política externa de Jair Bolsonaro. Isso pode ser justificado por diversas razões. Primeiro, a vastíssima e respeitável tradição diplomática brasileira sempre prezou pela manutenção da neutralidade nos conflitos entre Estados, a menos que haja um desrespeito ao Direito Internacional e às determinações da ONU. Não assumimos abertamente um lado, até que isto se configure incontornável. Segundo, temos boas relações políticas, históricas e comerciais com os dois envolvidos, Rússia e Ucrânia, de modo que não é do nosso interesse imediato assumir um posicionamento claramente contrário a qualquer um dos dois, como, por exemplo, romper relações diplomáticas com o Kremlin ou Kiev. Terceiro, numa situação de agravamento das tensões, é injustificável fazer uma visita a qualquer um dos envolvidos, haja vista que somos parceiros dos dois países. Em suma, a boa diplomacia sempre preza pela coerência das suas escolhas e pelo pragmatismo, algo que, simplesmente, não ocorre na gestão Bolsonaro.

       No meu entendimento, a boa diplomacia prefere o pragmatismo aos furores ideológicos. Pois, nas relações entre as nações, há que se prezar tanto pelos ganhos a curto prazo, quanto pelos ganhos a longo prazo, o que nem sempre está ligado ao que acreditamos estar em sintonia com as nossas premissas e convicções ideológicas. Nesse âmbito político, não se deve cometer quaisquer leviandades a troco de nada, pisando à toa naqueles que poderiam vir a ser bons parceiros comerciais. Caminha-se com extrema cautela, com olhos bem abertos para as oportunidades que certas conjunturas históricas propiciam para a nação em si, tal como Getúlio Vargas fez em relação ao posicionamento do Brasil na Segunda Guerra Mundial: sem afobação, ele trouxe aos brasileiros uma série de benefícios econômicos, ao mesmo tempo em que se posicionou a favor da libertação dos povos da tirania nazifascista. Tal fato histórico não mudou o passado ditatorial de Getúlio, mas deixou, na nossa memória coletiva, a consciência de que uma política externa lúcida pode trazer avanços concretos à classe trabalhadora brasileira.

Deve-se saber o momento preciso de ser maleável. Evitando, assim, ser injustamente compreendido como incoerente e falsário. Os partidários mais fanáticos, certamente, irão esbravejar e espernear contra quaisquer movimentos conciliadores, de tal maneira que, um bom governante, está com os seus ouvidos atentos aos seus aliados moderados. Eles são a parte que, geralmente, está mais lúcida, serena e próxima da realidade. Vale lembrar, por exemplo, que a conservadora e brutal Ditadura Militar brasileira fez com que fossemos o primeiro país a reconhecer a independência de Angola — então governada por um partido de esquerda —, algo que estava em sintonia com os interesses comerciais e financeiros das classes dominantes brasileiras, apoiadores de extrema relevância para a própria Ditadura. Isto exemplifica a boa condução diplomática de uma nação soberana.

        O apoio de Bolsonaro a Putin foi um desnecessário tiro no escuro, típico de um governante que tenta escapar, a qualquer custo, do isolamento ao qual se encontra mergulhado. Se ele tivesse cancelado a viagem de antemão, teria tido a oportunidade de demonstrar ao Ocidente que não está de acordo com as manobras militares que já ocorriam nas bordas da Ucrânia, logo, que é um democrata pacifista, humanitário e libertário. Entretanto, a verdade sempre prevalece. O mundo testificou mais uma vez que o gigante latino-americano é governado por um soldadinho arrivista, autoritário, radioativo e despreparado. E não há nada que negue isso, de modo que o falso messias se enforca na sua mediocridade. Sua postura inepta e obtusa coloca o país num completo vexame internacional, naquele que já é um dos fatos mais determinantes da nossa contemporaneidade. Assim sendo, o próximo mandatário certamente terá muito trabalho pela frente; ele se verá diante da cansativa missão histórica de concertar as rachaduras e limpar as manchas deixadas por todo lado.

Ao longo dos últimos anos, tem-se ficado cada vez mais claro que a gestão de Jair Bolsonaro representa o maior desastre que já acometeu a sociedade brasileira. Jamais se viu, em nosso país, um mandatário disposto a arruinar por completo o que ainda poderia ser tido como bom no Brasil. Estamos testemunhando, em primeira mão, um processo histórico de arrasamento da nossa nação, tal como nunca se viu em qualquer civilização ocidental. Para tanto, basta levar em conta as centenas de milhares de mortes da pandemia, a abjeta concentração de renda, o isolamento internacional, a destruição sistemática dos nossos biomas, a depreciação moral e financeira das Instituições ligadas à ciência e ao ensino, o desmantelamento de órgãos culturais imprescindíveis, como, por exemplo, o Ministério da Cultura, a proliferação de grupos neonazistas, o armamento de extremistas, a cisão das famílias e grupos de amigos, o retrocesso da linguagem política ao fanatismo descerebrado, o ressurgimento da inflação e da fome, o desemprego, o empobrecimento e a precarização das massas etc. Portanto, o aspecto diplomático é somente parte de uma catástrofe que se estende por todos os lados, cuja reparação levará ainda muitos anos para ser concluída.

Não é necessário ser de esquerda para se opor a Bolsonaro. Basta alimentar dentro de si uma nesga de solidariedade, tolerância, empatia, amor ao conhecimento, escuta atenta ao próximo… Quem sabe ouvir e respeitar, reconhece, na psique bolsonarista, um estrago que pode se aproximar da irreversibilidade completa. Os erros do Partido dos Trabalhadores, cometidos ao longo de quatro mandatos presidenciais, são visíveis a olho nu, é verdade, mas jamais o petismo se aproximou do que a ideologia bolsonarista é hoje: uma seita de fanáticos embevecidos de ódio virulento, pavores delirantes, ignorância profunda, crenças infundadas, desejos tragicamente reprimidos e intolerância decrépita. Não há como pactuar com essa gente. É preciso evidenciar suas falhas, derrota-los eleitoralmente, prender os eventuais criminosos e reconquistar de vez o espírito das massas.

 

Daniel Viana

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