terça-feira, 31 de maio de 2022

A miséria que nos ronda (Parte I)

 

         O fato de Mario Vargas Llosa apoiar a reeleição de Jair Bolsonaro, testifica a decrepitude da direita liberal, algo que, aliás, não é inédito na História do nosso flagelado continente — tampouco um dado isolado dos fenômenos em operação na atualidade nacional e internacional. É só mais um atestado quanto àquilo que os pobres e marginalizados sempre sentiram na própria pele: violência, desumanidade, exploração e o mais vil desprezo.

     Quero antecipar de antemão que não pretendo fazer uma crítica à obra literária do autor peruano, mas refletir acerca de seu mais recente posicionamento político quanto às Eleições Gerais de 2022.

         Em primeiro lugar, é preciso que se diga que a afeição da direita liberal pelo que há de pior na política do nosso continente não é um ponto fora curva, ou uma indesejável fatalidade que proveria de um período histórico caracterizado por “extremismos” de ambas as partes do espectro político.

O fato é que, ao longo de séculos de dominação por parte das elites escravagistas, sempre fomos explorados pelos políticos “preocupados com o mau humor do mercado”, “o intervencionismo do Estado na Economia” ou aqueles que profetizavam “a iminente fuga de investidores”. Estes plutocratas e oligarcas não só ajudaram a perpetuar regimes tirânicos — como as ditaduras gestadas nos conflitos da Guerra Fria —, como também fizeram vista grossa a tragédias devastadoras, como, por exemplo, o morticínio da Pandemia do Novo Coronavírus. Isso reflete sua completa indiferença quanto aos apelos por moradia, segurança, emprego, acesso à cultura, educação e saúde de qualidade, bem como o fim da inflação, da desigualdade social e da fome.

            De fato, a direita liberal e a extrema-direita caminham lada a lado quando o assunto é a perpetuação da exploração da classe trabalhadora e a submissão vexatória dos povos da América Latina à Casa Branca. Se o farão explicitamente agora, assumindo uma aliança execrável, tal como ocorreu em 2018, é só um detalhe periférico. Nos bastidores, tudo caminha de acordo com os desejos das classes dominantes, que sabem estar no comando de todo o processo de sucessão (ou não) de Jair Bolsonaro, o presidente troglodita e mentecapto.

            Isto evidencia o fato que, em nosso atribulado continente, o conflito de classes assume um aspecto mais brutal, movediço e perigoso que em qualquer outra região do capitalismo. Ainda assim, até o momento em que escrevo este texto, nenhum postulante ao Palácio do Planalto que se oponha a Bolsonaro promete convocar e conduzir as massas a um processo de disputa pela hegemonia social, cultural e política do Brasil. Tratam-se de cabos eleitorais com vastíssima expertise quanto ao processo eleitoral, conquanto incapazes de abrir novos horizontes, novas possibilidades para as massas angustiadas. Para uns, Lula é mais do mesmo; enquanto que, para outros, Bolsonaro é o pior do mesmo.

A aliança de Lula com Geraldo Alckmin e as demais oligarquias do Nordeste — embora tenha sido uma “boa jogada política” — reafirmou a vocação do ex-presidente como um homem de conciliações de cúpula, de conchavos em buffets nababescos e requintados, um espaço no qual as demandas do povo não são discutidas ou levadas em conta. É claro que os seguidores do ex-presidente apontarão o fato que ele também janta com os pobres, algo incomum se levarmos em conta a biografia dos seus antecessores. Mas, não é preciso ser um experiente analista político para saber que, a despeito de enaltecer sua origem nordestina e operária, quem faz a cabeça de Lula são os gentlemen da Faria Lima e da Avenida Paulista. O apreço de Lula por suas raízes populares, ainda que possa denotar uma sincera afeição pessoal, me parece uma elaboração discursiva para causar arrepios nos ouvintes das camadas populares.

Não é difícil ver que Lula fará todo tipo de arremedo estratégico, movendo-se mais e mais para o centro político, de modo a convencer as elites de que fará uma gestão bem-comportada e equilibrada, sem grandes surpresas ou radicalismos. Daí o convite ao ex-governador Alckmin, ilustre emissário dos endinheirados paulistas. Isso é tudo que eles mais querem: tranquilidade social para fazerem seus negócios com os estrangeiros sem quaisquer sustos no âmbito doméstico, ou seja, pôr o povo para hibernar e deixar passar a boiada. Para tanto, Lula não vacilará em se aliar aos que derrotaram Dilma Rousseff, fizeram base de apoio a Michel Temer, elegeram Bolsonaro etc. Afinal, o ex-presidente nunca deixou de enfatizar que, para governar, é preciso dialogar com quem o povo elege, sem jamais apelar às ruas, ao calor das massas. Certamente, seria ingenuidade esperar que houvesse uma mudança no repertório de Lula a essa altura da sua trajetória política. O ex-presidente jamais será um revolucionário, um antagonista do sistema que o colocou na cadeira presidencial por oito anos seguidos.

Não nego que exista uma larguíssima diferença entre estas duas personalidades políticas, Lula e Bolsonaro, especialmente no fato de que o ex-presidente seja o mais autêntico dos democratas e o mais popular dos nossos presidentes, muito mais fiel à ordem instaurada após 1988 que o capitão reformado. Porém, nenhum dos dois é capaz de romper com uma das piores chagas do sistema representativo brasileiro: a corrupção. Pois, ao longo de suas trajetórias políticas, nenhum dos postulantes confrontou, abertamente, esta odiosa chaga, que parece sobreviver a qualquer sistema político, seja ele uma Ditadura Militar, uma República oligárquica ou uma Democracia populista. De fato, a despeito da instabilidade provocada pela Operação Lava Jato, a corrupção parece proliferar em qualquer ambiente ou conjuntura, perpetuando-se geração após geração, sem que nenhum esforço político seja capaz de derrota-la. E uma parcela expressiva do povo, sem abrir mão de suas preferências, há muito tempo se deu conta disso. Entretanto, seria preciso escrever outro texto para me aprofundar no tema da corrupção.

            Diante do antagonismo de dois “populistas” — maneira pela qual os meios de comunicação costumam rotular tanto Bolsonaro quanto Lula —, a direita liberal faz sua escolha natural e previsível: aliar-se ao extremismo de direita. De fato, quem a conhece de perto, não foi pego de surpresa com a fala de Mario Vargas Llosa, haja vista que, em tempos de instabilidade social e crise aguda do capitalismo, o liberalismo de direita sempre abre mão de seus escrúpulos para reter o controle da política econômica, enquanto o extremismo executa suas arbitrariedades e perseguições mais abomináveis, ou seja, são dois lados da mesma moeda.

Na realidade, para manter ou alcançar o poder, a extrema-direita e a direita liberal se habituaram não somente a costurarem entre si uma aliança espúria, mas também a recorrer às forças aquarteladas, ao pequeno e grande empresariado, aos devaneios da grande imprensa, aos medos da classe média decadente, aos evangélicos e católicos ultraconservadores e à intervenção direta de Washington. Este é um script que os latino-americanos estão acostumados a ver se repetir uma geração após a outra, como se fossemos eternas vítimas de uma doença hereditária e incurável, capaz de se renovar à revelia dos nossos mais extenuantes esforços políticos. Basta poucas palavras para resumir nossa condição: os senhores da matança expulsam e executam nossos líderes, matam de fome e ignorância nossos filhos, destroem a ferro e fogo nossos biomas, colocam à venda nossas riquezas, espezinham nossa cultura, saqueiam nosso patrimônio, apagam nosso passado, escrevem nosso futuro e escravizam nossos braços.

Como escapar dessa condição subdesenvolvida, sub-humana e, terrivelmente, dantesca? Certamente, o triunfo dos povos oprimidos não provirá da sapiência de uma direita liberal, que se vê como uma nata esclarecida, requintada, racional e cosmopolita. Isso é gabolice deseducada e provinciana, um excremento intelectual feito sob medida para ludibriar um eleitorado iletrado, despolitizado e desesperançado, sempre à procura da mais recente novidade no mercado de quinquilharias ideológicas do nosso capitalismo periférico.

Algo tão ruim e antipopular só poderia vicejar em regimes ditatoriais, através de estelionatos eleitorais ou, como é o nosso caso, numa crise aberta do sistema político e institucional, iniciado após mais de vinte anos de Ditadura Militar e a promulgação, em 1988, da Constituição Cidadã. Sem dúvidas, trata-se de uma crise de enorme gravidade e, ao mesmo tempo, profundamente peculiar, capaz de oferecer oportunidades inauditas para setores da política que antes estavam à margem da tediosa, simbiótica e amorfa díade PSDB-PT. O radicalismo, o inconformismo e a possibilidade de ruptura completa com tudo que se construiu, estão novamente em pauta, na boca do seu Zé e da dona Maria. Isso alimenta temores em muitos, tanto quem mora no andar de cima quanto aqueles que ainda se lembram do Regime Militar. Como partido da ordem, o PT luta ferrenhamente pela manutenção do sistema que colocou Lula na presidência, ou seja, com a chave do cofre público. Em outras palavras, “que se dane o socialismo”!

Claro que os petistas terão nostalgia dos tempos em que o tucanato era seu amado arquirrival, já que suas vitórias mais contundentes se deram sobre o Picolé de Chuchu, o vingativo Aécio Neves e José Serra, com sua implacável bolinha de papel. A miséria ideológica dos tucanos terminou por ser a mola propulsora do lulismo; com efeito, muitos brasileiros passaram a votar no PT em reação ao neoliberalismo propalado pelas gestões tucanas, enquanto que, movidos pelos escândalos de corrupção, outra parcela de brasileiros aferrou-se a votar contra o PT, de tal maneira que se consumou o “voto da negação” ao candidato mais rejeitado publicamente. Nas eleições que se aproximam, esse voto, movido por emoções e rancores intestinais, determinará o vencedor.

O tempo, por sua vez, teima em se colocar em movimento, pondo em marcha potências e impulsos irrefreáveis, sejam eles racionais ou não. Por mais que as forças dominantes se esforcem em manter as massas sob o seu controle despótico, a mudança dos ventos insiste em bater à nossa porta, estejamos de prontidão ou flagrados em crime de lesa-pátria. O que hoje — devido a entraves e circunstâncias momentâneas — pode parecer insuperável, amanhã se mostra irremediavelmente moribundo, frágil como uma torre de areia à beira-mar. Por vezes, quem se encontra no olho do furacão, tende a “tampar o sol com a peneira”, ou seja, encontrar soluções fugazes e parciais para problemas que excedem em demasia suas capacidades de resolução. O sucesso passageiro dessas tomadas de decisão ilude os ocupantes do poder ou do simples gerenciamento do país, no caso, refiro-me ao próprio Lula e seu círculo decisório. Eles foram incapazes de perceber que seu modus operandi não só consagrou sua própria derrocada moral, como também os cegou para a iminência da ruína consumada com o impeachment de Dilma Rousseff, a condenação e prisão de Lula, bem como a eleição de Bolsonaro. De repente, os aliados lhes deram as costas, as massas não atenderam seu grito por socorro e os adversários os golpearam sem compaixão. Em suma, a entropia das forças políticas e sociais é inadiável.

Ainda assim, estamos num país que anseia por soluções imediatas, haja vista as catástrofes que se repetem ano após ano, dia após dia, sem que possamos repousar a cabeça no leito sem sangue na pele, lágrimas no rosto e um nó na garganta. É duro ser filho do Brasil, um rapaz “latino-americano sem dinheiro no banco, sem parentes importantes e vindo do interior”. Cito uma catástrofe envolvendo deslizamentos de terra, agora em Recife, que ceifou, numa única e trágica noite, a vida de mais de cem brasileiros, incluindo crianças e bebês; todos eram pobres e a vasta maioria era de origem africana. Há poucos meses atrás, mais de duzentas pessoas morreram soterradas em Petrópolis, também por conta de deslizamentos, sem contar as vítimas empobrecidas, desabrigadas e traumatizadas, bem como as crianças largadas na orfandade. Só quem sofre na pele, sabe a dimensão concreta e completa das palavras que ponho aqui. Faz-se necessário que as ouçamos amorosamente, assimilando seu desamparo, angústia e revolta.

Isso é inaceitável para um país que aspira possibilitar um mínimo de dignidade para a sua gente, cujos antepassados sofreram agruras iguais ou ainda piores. Encarar com indiferença e fatalismo esse episódio, perpetua a condição de miserabilidade do povo trabalhador. É preciso se erguer e mobilizar as massas para uma mudança minimamente substantiva, caso contrário os nossos mortos se acumularão aos montes, normalizando um cotidiano macabro para as gerações presentes e futuras.

Pois, esta é somente a ponta de um iceberg de enormes proporções, um exemplo mórbido que remete a uma série de elementos internos e conjunturais, múltiplos retalhos de uma crise sistêmica altamente explosiva e complexa, que responsabiliza todos os ocupantes de posições de comando no Estado e na sociedade brasileira em geral. Refiro-me aos presidentes vivos e mortos, deputados, senadores, dirigentes partidários, vereadores, prefeitos e governadores; também me refiro os latifundiários, banqueiros, militares entreguistas, magnatas da indústria e todos os membros togados do Judiciário — eu poderia citar nominalmente as figuras, mas isso tornaria o texto mais alongado que o desejado. Em outras palavras, colocar toda responsabilidade numa única figura, é coisa de quem procura, espertamente, manipular a opinião pública ao seu bel-prazer.

Porém, para compreender a crise brasileira em sua completa profundidade, é preciso analisar o resultado das Eleições de 2018. Portanto, voltemos os olhos mais uma vez à ascensão da extrema-direita.

Antes de mais nada, cabe aqui uma pergunta indigesta: quem conhecia o atual presidente antes da facada, do impeachment de Dilma, da Operação Lava Jato ou mesmo das Jornadas de Junho? Medíocre politicamente, Bolsonaro sempre foi uma figura burlesca e coadjuvante no Congresso, chamando mais atenção por ser parlapatão e loroteiro que qualquer outra coisa que pudesse fazer. No entanto, ele venceu o invencível PT; foi Bolsonaro quem melhor soube aproveitar a fissura no status quo do famigerado establishment político-partidário nacional. Por pura sorte ou instinto visceral, ele escutou como ninguém o clamor da chamada silent majority, expressão largamente popularizada pelo corrupto Richard Nixon, protagonista do escândalo Watergate. É claro que, como expressarei nas próximas linhas, este não foi o único fator que contribuiu para a consagração do amalucado presidente. Porém, é preciso que se diga que, esse assombroso êxito, representa uma nova etapa na dinâmica da luta de classes no Brasil.

O pleito de 2018 foi estremecido pela prisão de Lula, a principal figura do campo progressista na América Latina, figura de proa do maior partido da centro-esquerda latino-americana. As consequências desse fato histórico ainda reverberam em nosso cenário político-social. Além disso, é preciso destacar os seguintes fatores: a brutal recessão econômica do biênio 2015/2016 — responsabilizada em Dilma Rousseff e sua equipe ministerial —, um antipetismo cada vez mais enraivecido, a cisão de Ciro Gomes com a cúpula do PT, a propagação sistemática de fake news, uma cruzada da extrema-direita trompista a nível mundial, personificada por Steve Bannon, uma adesão em massa da classe média à propaganda anticorrupção da Lava-Jato, a cristalização do voto evangélico e um apoio inédito de uma parcela das Forças Armadas ao então milico presidenciável.

A combinação desses elementos, conduziu o processo eleitoral a um cenário cada vez mais incerto e tumultuado, de modo que o debate das questões mais graves e prementes da nossa crise acabou ceifado outra vez, dando lugar ao personalismo mais rasteiro e ignaro que tive a “oportunidade” de ver na vida pública brasileira. Limitamo-nos a escolher o “messias” de predileção, sem levar em conta o fato de que essa crise não se resolverá unicamente a partir da pessoa ou do partido que escolhemos pôr na presidência. Há que se ter um projeto de Brasil claro, coeso e bem definido, que não atenda somente aos plutocratas e suas matrizes externas, mas essencialmente a todos os brasileiros e brasileiras, a fim de que se dê um basta ao improviso que costuma caracterizar a gestão pública nos últimos decênios.

Na realidade, os múltiplos elementos que caracterizam a crise brasileira se estendem há décadas (em alguns casos, há séculos), independentemente da bandeira partidária ou da figura que os ignóbeis teimam em mitificar. Aliás, parece haver um desejo maquiavélico, por parte dos polos dominantes da atual conjuntura, em ocultar por completo as partes que compõem o quadro catastrófico no qual estamos imersos, colocando por debaixo do tapete o que poderia servir como flagelo nas mãos de um adversário eloquente, carismático e, principalmente, sem rabo preso. Cada lado culpa o outro, rebaixando o debate público ao nível mais esterilizante e vexaminoso que se poderia imaginar, algo digno de uma tragicomédia sofrível e imprestável. Excetuando-se Ciro Gomes, ninguém que pleiteia a presidência da República busca conscientizar as massas sobre a real dimensão dos dilemas e desafios que temos de solucionar enquanto nação em busca do justo progresso, da paz premente e da soberania irrecusável.

De fato, para Lula, o povo quer ter de volta o direito de comer picanha e cerveja, o que pode ser verdade; contudo, não é comendo carne nobre e cerveja gelada que os nossos entraves serão superados e o Brasil alcançará o desenvolvimento pleno de suas imensas potencialidades. Perde-se, portanto, a preciosa oportunidade de transformar o processo eleitoral numa grande arena educativa, apostando as fichas na sabedoria da gente comum e não no vazio da sua barriga. A jogada de Lula se traduz num consumismo alienante, despolitizado e popularesco, feito sob medida para esfriar de vez o clima nas ruas, lançando o Brasil em mais um ciclo de euforia passageira: o nosso conhecidíssimo “voo de galinha”. Dessa maneira, o PT atesta sua vocação para gerir e resguardar os interesses das famílias abastadas, aquelas que ocupam o diminuto topo da pirâmide social, e que há muito não se sentem ameaçadas por qualquer forma de agitação popular.

Até que, para o espanto generalizado, a violência se consumou no dia 6 de Setembro de 2018, com a facada perpetrada contra Jair Bolsonaro. Antes do golpe físico à sua pessoa, Bolsonaro se configurava como um coadjuvante com uma singela possibilidade de ir para o segundo turno, mas, após esse fato inédito, o capitão reformado se tornou — aos olhares de seus apoiadores — um mártir cruelmente vitimado, ou até mesmo o alvo predileto de um suposto complô esquerdista, que não seria capaz de ceder ao clamor popular, disposto a pagar qualquer preço por um revés petista. Pois, para estes delirantes incautos, devido à sua propalada incorruptibilidade cívica, só Bolsonaro representaria uma “ameaça ao sistema”. Daí se originaria a sua grotesca mitificação por parte dos apoiadores mais bitolados.

Por outro lado, é preciso asseverar que, na minha opinião, muitos votaram no fascista sem se darem conta da gravidade que seu discurso representava para todos nós e, de modo especial, para com as mulheres e as minorias atormentadas pelo ardor inquisitorial do extremismo neoconservador. Estou me referindo àquele sujeito que, na seara política, abre mão da árdua tarefa de cultivar um espírito crítico, preferindo se comportar como um maria-vai-com-as-outras, em geral, por medo da condenação dos parentes, amores e amigos que o cercam. Com efeito, não se pode desprezar o fardo de ser isolado por conta das próprias posições político-partidárias, acabando como uma ilha num mar de ódio à sua volta, sem ninguém que se disponha a dar um ombro amigo, uma escuta atenta e compassiva. Quem crê ser fácil remar contra a maré, indo de encontro a tudo que se diz, se acredita e se faz publicamente, certamente está cercado de sequazes que pensam o mesmo que si mesmo, isto é, vive numa pequenina bolha, sem contato direto com um argumento minimamente divergente.

Na realidade, é duríssimo ser isolado por aqueles que se ama e se convive diariamente, visto como um traidor dos valores e costumes do meio em que se vive.

Todos temos essa espécie de cultura política que normatiza os votos a partir do próprio umbigo, sem levar em conta o fato de que o outro nem sempre compartilha dos mesmos princípios e perspectivas que nós cremos como algo indiscutível. A verdade que nos orienta individualmente não é facilmente transferível ou compartilhável, tal como um post na internet; a verdade que cada um de nós carrega consigo é fruto de anos de formação, experiências, traumas, loucuras e inclinações, essencialmente, individuais, ou seja, cada pessoa é regida por uma vastíssima constelação de elementos próprios e especificidades que transcende o mero olhar, a rotulação rasteira e inútil que vemos nos “debates” das redes sociais. Isto se agrava muito mais se levarmos em conta o fato de que, a grande maioria não apenas desconhece os demais à sua volta, ela também não conhece a si mesma. É neste ponto preciso que está a missão de cada um de nós, cujas vidas estão fadadas a desvanecer no crepúsculo dos últimos dias. A morte é o destino do corpo que carregamos, mas o que construímos e dizemos pode, para o bem ou para o mal, manter-se vivo por mais algum tempo, contribuindo para a desgraça ou a prosperidade da família, do povo e do mundo que deixamos para trás. Avançaríamos muito enquanto sociedade se cada um se ocupasse em inquirir o próprio ser, ao invés de perder tempo com o que vê no jardim alheio. Enfim, os dois partícipes mais notórios das Eleições de 2022 foram tirados das entranhas da gente comum, isto é, são faces fidelíssimas, nesse momento histórico, da nação brasileira, de modo que, para quem deseja ver-se livre deles, deve começar a mudar a si mesmo e, se for possível, o entorno em que gasta seus dias.

Para muitos que acompanham os tremores sísmicos da vida pública pós-2013, o clima que se iniciou após a vitória da extrema-direita é de beligerância permanente, antagonismo a tudo que se oponha ao presidente beócio, exatamente como alguns dos seus seguidores costumam se posicionar: “contra tudo e contra todos”. Isso é atraente para quem está à procura de uma desculpa para descarregar sua frustração e ódio no teclado do computador, nas matanças perpetradas nas favelas ou dentro da própria família. É como se o período eleitoral não chegasse ao fim nunca, prolongando-se indefinidamente, como um duelo sem hora para acabar. Isso implica um sério desgaste psicofísico nas pessoas envolvidas, diariamente, com celeumas constrangedoras e degeneradas, cujas consequências nem todos estão aptos para suportar. Fala-se que, nos anos seguidos pela vitória de Bolsonaro, a procura por atendimento psicoterápico aumentou, explodindo de vez com a chegada da pandemia. Sem dúvidas, trata-se de um dado que reflete os tempos em que vivemos.

O militante “profissional”, por sua vez, esse personagem destemido e bizarro, tem pouco traquejo e sensibilidade para assimilar as circunstâncias práticas e mundanas do eleitor maria-vai-com-as-outras; devido ao seu partidarismo juvenil, crédulo e sectário, ele crê que votar na sua liderança predileta, é uma obviedade lógica e acertada. Considera-se guardião e propagador de uma mensagem libertadora para as massas, sem notar que sua voz, em geral, não carrega nada de especial para quem o ouve dia após dia, seja em casa, na praça, na escola ou no sindicato. 

Penso que os militantes seriam mais úteis à sociedade se dessem ouvidos justamente às pessoas mais despolitizadas, no intuito de compreende-las em seu contexto socioeconômico, familiar e cultural. Ao invés de posarem de esclarecidos, iluminados por uma sapiência reservada aos iniciados, estes sujeitos deveriam aprender a acolher quem se apresenta à sua frente, independente da condição do ser humano em questão.

Sem dúvidas, o militante partidário também é um batalhador na sua perigosa empreitada, principalmente quando o faz por heroísmo bravio e inciativa pessoal, remando contra a maré do obscurantismo que nega a política por pendores moralistas e individualistas. É justo lembrar que, no Brasil, mata-se militante todo ano sem qualquer compaixão; esta é a carranca mais hedionda do “capitalismo com face humana”; e a maioria dessas investigações acabam engavetadas.

Porém, de tempos em tempos, ouvimos falar da decepção de um desses coitados, que achava ter encontrado a facção detentora do único caminho luminoso para a pátria, mas que, enfim, se dá conta de que não passa de um peão nas tramoias dos verdadeiros senhores do jogo, aqueles que mechem os pauzinhos à revelia da militância; até que, após ser feito de idiota à exaustão, o fatigado militante decide deixar a vida partidária e recolher-se às discussões meteorológicas, futebolísticas e matrimoniais. Com o passar do tempo, ele percebe que jogou fora dias preciosos da sua vida e, acima de tudo, tremendo esforço com aquilo que nunca foi capaz de conduzir ou controlar. Tratava-se de uma boa distração para quem é cheio de sonhos febris e delírios de grandeza.


Daniel Viana de Sousa

© Todos os direitos reservados