Nosso povo carece de elementos básicos do bem-estar humano, de tal
maneira que sua vida está circunscrita a uma sobrevivência elementar, quase
selvagem, tal como se vivesse numa etapa anterior à mais parca civilidade.
Falta saneamento às casas, acesso à alimentação, saúde e à
educação de qualidade, emprego às massas, segurança nas ruas e respeito aos
direitos humanos, liberdade à imprensa e minorias sociais, combate infatigável
a todas as formas de discriminação, cumprimento pleno e respeito inquestionável
à Constituição, reconhecimento e valorização da nossa Cultura, fim imediato dos
crimes ambientais, reforma agrária, tributária, penitenciária, política e
urbana, autêntica soberania na política externa nacional etc.
Nossa crianças e jovens, em especial, sofrem agruras semelhantes
àquelas que vemos em países conflagrados por conflitos civis. A violência
excruciante, o desemprego generalizado e o esfacelamento familiar são alguns
dos elementos que compõem a sua realidade. Isso é — e permanecerá sendo —
responsável por um sofrimento geracional a ser transmitido para o futuro, ou
seja, a menos que haja uma transformação profunda e imediata na realidade da
juventude, o Brasil colherá frutos ainda mais perniciosos que aqueles do nosso
momento presente. Se quisermos saber a direção para a qual caminha o nosso
país, basta olharmos como está a juventude, o que, sem dúvidas, deveria comover
e agravar as preocupações das mentes lúcidas e dos corações ardentemente
humanos.
No entanto, expressar-se, hoje em dia, num tom radical, não soa
bem para quem vê no radicalismo uma semente da sua própria ruína enquanto
classe dominante; também não soa bem para quem se esforça em ascender a certos rendez-vous regados a vinho, licor e
champanhe, nas coberturas gourmet com
vista panorâmica. Já houve tempos em que ser radical “estava na moda”, até
soava culto ser “contra o sistema” e “sonhar com outro mundo”; refiro-me aos efervescentes
anos sessenta, mais especificamente ao Maio de 1968, a nossa derradeira era
revolucionária — hoje tão distante da postura bem-comportada e resignada de
quem não se atreve a “assustar os investidores” ou causar “pânico nos mercados”.
De fato, em muitos círculos autointitulados progressistas, é concebida a ideia
de moderado como alguém inteligente, atento às necessidades dos “diversos
setores da sociedade”, disposto a ouvir “quem trabalha e quem produz”. Assim,
expurga-se qualquer linguagem inconformista do vocabulário político, reduzindo
os incautos a uma consciência ingênua e manufaturando a mesmice que vemos nas
campanhas dos sucessivos pleitos eleitorais. Vê-se, entretanto, um rechaço popular, uma rejeição que vem das íntimas entranhas da nossa gente, sabiamente
reprimida por quem prefere, a qualquer custo, preservar o status quo.
Confia-se cada vez menos nos políticos, nos partidos, nas alianças
e promessas, nos conchavos e em todos os artefatos simbólicos que caracterizam a democracia
liberal gestada no Ocidente. Uma parte dessa gente fez um movimento à direita,
dando sinais de adesão a um fascismo repaginado para a mediocridade pós-moderna,
enquanto que outros ainda trilham às cegas pelas vielas tortuosas do cotidiano,
apreensivos quanto ao que veem na paisagem concreta e na virtual, lutando para assimilar o que ocorre num mundo vulcanizado por abalos
sísmicos. Mesmo os intelectuais mais bem preparados dão claros sinais de dúvida
e, quando perguntados acerca do que virá, perdem-se como estudantes
recém-chegados aos corredores universitários. Nesse contexto, quem alimenta dogmatismo a partir de preceitos ideológicos, em geral, tropeça nas próprias pernas, ilude-se e afoga-se na sua íntima verborragia, precisando rever suas premissas ao sabor das estações, pois
aquilo que deu forma ao seu proselitismo mofado, foi superado por mudanças que
se acumulam à revelia das nossas afeições particulares, desejos arraigados e obstinações patológicas. Às vezes, parece tratar-se de um apego infantil a um traje de festa démodé para os novos tempos que se anunciam.
Desde a crise financeira da primeira década do Século XXI, os
ocidentais se veem envoltos na penumbra do incerto, no negrume das brumas
pantanosas. Seu orgulho — de origem escravagista e imperialista — quanto à
superioridade inconteste da civilização ocidental abalou-se de tal modo que,
para o bem ou para o mal, pode jamais se erguer outra vez neste século. Nossa
geração terá de salvar aquilo que traz consigo algum mérito, que foi
bem-intencionado em sua concepção e feitura, e olhar para o futuro à nossa
frente, pois já não há nada que se possa fazer para salvar o velho e mofado
Ocidente de séculos passados. Tal como os monges cristãos que, em meio às invasões
dos “povos bárbaros” ao Império Romano, recolheram os manuscritos da cultura
greco-latina em seus mosteiros, nós também devemos salvar aquilo que foi
libertador para a Humanidade.
Nesses tempos de iconoclastia, vandalismo e autoflagelação, é
comum encontrar pessoas nascidas no Ocidente que cospem em elementos
controversos da sua própria cultura. Isso reflete uma crise mais ampla, que
venho tentando — em meio às minhas inúmeras limitações — expor. Acumulam-se os
casos de incêndio a igrejas, destruição de monumentos e desprezo a autores e artistas
antes enaltecidos. Esse tema exigiria uma reflexão mais cuidadosa e aprofundada,
mas é perceptível que essa rebelião generalizada ocorra simultaneamente à
decrepitude das instituições do Ocidente. Questiona-se tudo que antes fora
considerado espaço inexpugnável, inviolável por qualquer um que nascesse na
espécie humana. O questionamento do próprio gênero, por exemplo, é uma dessas
rebeliões que emergiram subitamente, surpreendendo até os liberais mais
visionários e progressistas, seres afeitos ao sabor das mudanças. Num espaço de
poucas décadas, tudo passou a ser transitável e transmutado, um meio constantemente
movediço e mutável, cujas possibilidades beiram a mais estimulante infinidade.
Quem se preparou para um mundo assim?
Creio que, individualmente, ninguém pôde se preparar; quem soube
fazê-lo com desenvoltura, apenas se dispôs a ouvir os diferentes cantos,
lamentos e vozes, tanto aquelas do topo quanto aquelas da sarjeta, os
privilegiados e os espoliados. Reter-se a apenas uma margem do rio da História,
uma feição do rosto humano, significa não apenas a perda de uma perspectiva
única e preciosa, como também o autoengano quanto à veracidade das próprias narrativas
e conclusões. Portanto, é absorvendo o pluralismo das diferentes experiências,
a completude da — paradoxal — união dos antagonismos, que se pode realizar algo
próximo à felicidade pessoal e coletiva.
Porém, idealismos à parte, os fatos apontam para uma crise
sistêmica.
Há quem fale que estamos presenciando o fim da ordem unipolar, liderada
pelos Estados Unidos da América desde o fim da Guerra Fria; outros creem que
está sendo construído um arranjo multipolar, no qual as nações emergentes,
enfim, superarão a condição de meros coadjuvantes, ocupando os espaços deixados
pelas velhas potências imperialistas; por fim, há quem alimente a visão de que
— tendo o século passado se caracterizado pelo triunfo dos EUA — este será o
século chinês ou, no mínimo, o século asiático, haja vista toda a
potencialidade deste imenso continente, especialmente nas interações
socioeconômicas e geopolíticas entre China, Rússia, Irã, Índia, as Coreias e o Japão.
A curto prazo, o diálogo entre esses gigantes é complexo e, em
alguns casos, problemático, haja vista as rivalidades ancestrais, desencontros e
disputas fronteiriças. Isso sem contar o perigo rotineiro de uma escalada
bélica de potências nucleares, como é o caso da turbulenta relação entre Paquistão
e Índia. Ademais, não se pode ignorar o risco de proliferação do jihadismo nas
regiões de maioria muçulmana, como é o caso do Xinjiang, na China, e da Chechênia,
na Rússia — também assombra as cúpulas governantes o apelo separatista de
regiões como o Tibete, Hong Kong etc. Mesmo assim, está claro o quão nítido é o
potencial de uma coalisão regional em torno de processos e interesses
compartilhados. Possivelmente, a inciativa mais célebre seja a Nova Rota da
Seda, fomentada pelos comunistas chineses, que, se vier à tona, viabilizará uma
prosperidade nunca antes vista nos países afiliados a tal projeto. Sem dúvidas,
estamos no nascedouro de uma grande mudança que vem ganhando forma a passos de
criança.
Uma coisa é certa: a nova ordem internacional encontra-se numa
fase embrionária, demandando décadas para se firmar incontestavelmente. A
despeito das substantivas transformações geradas pelas derrotas militares no
Afeganistão e na Síria, pela Pandemia do Novo Coronavírus e pela Guerra da
Ucrânia, ainda há um caminho tortuoso pela frente. Engana-se quem se apressa em
soar as trombetas, tal como se a China houvesse cruzado o Rubicão. Ela — ainda
— não o fez, conquanto recorde o mundo acerca de sua vocação ao protagonismo,
imbuído de orgulho ancestralmente milenar. Não há como recusá-la esse papel,
tornando-a um satélite da política externa ianque, tais como Japão, Coreia do
Sul, Taiwan, Filipinas e Austrália. Por fim, ao se definir como socialista em pleno
Século XXI, na sua essência mais íntima, a China aprofunda os temores de
Washington, que começa a ver a ressurgência do conflito ideológico da Guerra
Fria, ainda que Pequim negue a disseminação da sua revolução e do seu modelo de
governança. Hoje, no que depender da cúpula chinesa, não haverá revolução
socialista mundial, tal qual fora ansiado, em 1917, pelos bolcheviques, e sim
uma afirmação nacionalista do povo chinês em meio ao sistema-mundo capitalista.
Em sua perspectiva, a China está retomando o papel que lhe cabe: ser o Reino do
Meio, em torno do qual orbita toda Humanidade.
Contudo, as rivalidades e atritos entre as facções mais aguerridas
dos diferentes hemisférios mundiais, os sino-russos e os anglo-americanos, não
se encerrarão com a ascensão chinesa ou, ainda, com a paz na Ucrânia e no
estreito de Taiwan. Pelo contrário, tais tensões tendem a se agigantar, na
medida em que os anglo-americanos e seus satélites se aferram ao domínio que tomaram
à força e conservaram à base de colonização, escravidão, espoliação e
extermínio nos últimos cinco séculos, refutando qualquer possibilidade de
cooperação no rearranjo de uma ordem global mais diversa, fraterna e generosa. Esta
visão imperialista está entranhada na cosmovisão dos líderes do Ocidente, de
modo que qualquer contestação ao status
quo deve ser tratada como um crime de lesa-pátria, um anátema intolerável,
digno de excomunhão imediata. Foi o que ocorreu, por exemplo, com Cuba e
Venezuela; foi o que justificou os golpes militares no nosso continente, tanto
no século passado quanto no tempo presente; e é o que se sucederá com as
periferias que se rebelarem aos ditames vindos do norte. Não há espaço para
vozes dissonantes.
A América Latina e o Caribe serão, sem dúvidas, um dos campos de
batalha mais disputados pela supremacia dessas coalisões antagônicas, não só
devido aos seus recursos e potencialidades vastíssimas, mas também pela sua
vantajosa localização geográfica: o sensível ventre dos Estados Unidos da
América.
Além disso, ainda é possível que o cenário geopolítico dê uma
espécie de “cavalo de pau”, isto é, que os ianques recuperem a dianteira,
postergando sua queda por mais algumas gerações à nossa frente; também é
possível que, cientes de sua queda a um papel secundário, os imperialistas mais
insanos recorram à sandice de uma hecatombe nuclear, apagando toda Humanidade
da face da Terra. Dessa forma, seria encerrada a dramática jornada da espécie
humana, marcada tanto por sonhos messiânicos e belezas graciosas quanto por tiranias
e loucuras diabólicas. Por mais sinistro e aviltante que seja esta hipótese,
ela ainda está sob a mesa dos donos do poder, tolos embevecidos por seu
militarismo despótico e soberbo. Crer que o bom senso irá nortear as tomadas de
decisão desses gentlemen encastelados,
é um autoengano de quem prefere se cegar a assumir que está sendo conduzido ao
abatedouro. Em suma, a força militar, cultural e econômica da nação
estadunidense ainda é sobrepujante, excede qualquer outra potência do nosso passado
recente e alcança todos os cantos do planeta.
Daniel Viana de Sousa
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