sexta-feira, 30 de setembro de 2022

Memórias deste mês de Setembro (Parte I)

 

Fui no sábado (10/09), com meus irmãos, ao show de despedida do Bituca. Que honra! Poucas vezes havia feito uma viagem que me desse tanto prazer.

Esse não foi meu primeiro show de Milton Nascimento, nem foi o mais impactante que presenciei, contudo, quando se está acompanhado de grandes amigos, tudo merece ser lembrado por muitos anos; trata-se de uma experiência sensitiva e espiritual insubstituível, pois nada e nem ninguém repetirá cada brilho, cada explosão sonora, cada surpresa que nos imergiu num oceano revolto de sensações únicas. Esses momentos não tornarão a ocorrer, de tal maneira que será criada, em nós que lá estivemos, a marca de que passamos por algo que toca a magia de se viver, que sombreia o enigmático sentido de estarmos no aqui e agora.

Esse foi um dia feito para se viver vagarosamente, sem pressa de sentir cada sensação interior; ao mesmo tempo, ele também foi feito para conversar a respeito do que anda rolando por aí. Refiro-me, claro, à política, que entra em ebulição à medida que Setembro se despede, dando lugar às expectativas de Outubro. É preocupante como tantas pessoas depositam, no embate do próximo mês, a principal condição para continuarem felizes ou não, isto é, o triunfo do petismo ou da extrema-direita. Qualquer que seja o resultado, muitos, ao se darem conta de sua derrota, vão perder a cabeça por algumas horas, dias ou semanas. Portanto, deve-se ter cuidado após a abertura das urnas. Afinal, a política não se encerra nas eleições, e ainda persiste a possibilidade de Bolsonaro recorrer a manobras inconstitucionais, isto é, um Golpe de Estado.

Voltemos ao show de Bituca.

Milton foi sensível e nostálgico, capaz de entrar em contato com o que temos de mais íntimo. Poucos detêm a chave que acessa tais profundezas, despertando em nosso peito os sentimentos mais singelos. Hoje, a maioria dos “artistas” executam performances espetaculosas, regurgitando uma cacofonia sonora e compondo letras de gosto duvidoso. Nos casos menos catastróficos, “os artistas” fazem pastiche, imitações de meia-tigela, que lhes rendem algum espaço no mercado da subcultura, de tal maneira que acabam angariando alguma fortuna para si e, obviamente, para aqueles que mexem os pauzinhos por trás da cortina.

Este não é o caso da maioria dos artistas brasileiros que obtiveram algum sucesso comercial. Seria tolo ignorar, por exemplo, o êxito estético e comercial de uma canção belíssima como Garota de Ipanema, ou fazer vista grossa para a obra de nomes como Chico Science, Raul Seixas, Baden Powell, Ney Matogrosso, Cartola, Tim Maia, Elis Regina etc. Certamente, Tom Jobim e Vinicius não são os únicos da nossa terra a ocupar o panteão da música nacional e internacional. Ao contrário, muitos ainda emergem da multidão anônima, graças ao seu sacrifício, talento, esforço e, claro, alguma dose de apadrinhamento.

Por outro lado, gênios de verve afiada ainda morrem na praia, sem gozarem de um merecido reconhecimento por sua excepcional inventividade. Bastaria citar o nome trágico do maior afro-brasileiro que se enveredou pela poesia: Cruz e Sousa. O poeta de Desterro nasceu, amadureceu e morreu sem os louros que lhe eram devidos; encoberto pelo racismo e elitismo de uma época em que o escravismo reinava soberanamente, foi oprimido pela miséria e pela indiferença dos seus pares, embriagados com o parnasianismo reinante. Entretanto, bastaria algumas décadas para que ele ingressasse a plêiade dos nossos melhores escritores, sendo visto como um dos poetas mais extraordinários que nasceram no lado de cá do Atlântico. Claro que houveram outros como Cruz e Sousa, tanto antes como após sua morte; na realidade, temo ser esta a sina da maioria, insuportavelmente, posta à parte de qualquer possibilidade de triunfo.

Cabe às novas gerações pôr-se a estudar os que nos precederam, resgatando quem foi esquecido, perdido ou deixado à margem pelas mais variadas razões, refletindo acerca das imposições e circunstâncias que os fizeram perder-se na obscuridade. Afinal, cada época cria — algumas vezes de forma arbitrária e injusta — seus heróis, vilões e figurantes. É salutar criticar-se, de tempos em tempos, o que levou certas figuras a ocupar os altares ou as sarjetas. Quanto a tais regras de julgamento, nós também estamos incluídos, embora seja do costume da crítica não assumir tal falibilidade.

E quanto a Milton Nascimento?

Este músico, nascido de uma mãe solteira e formado no seio de Minas Gerais, é um destes seres cujo vulto, ao atravessar tantos tempos, engrandece a nação, sua gente e sua época. Milton é mais que um musicista habilidoso, ou um compositor bem-sucedido: ele é parte do que nos faz intimamente humanos, capazes de ir muito além do que pensávamos poder. Saber que estamos testemunhando sua partida, é algo que me marca. Pois, ainda me lembro das aulinhas, há vinte anos atrás, na escola pública Maria Geny de Sousa Timoteo, quando a professora nos fez sentar para ouvir, atentamente, “Canção da América” e “Coração de Estudante”. Também me lembro quando meu pai ouvia “Caçador de mim”, dizendo ser esta a canção da sua vida, e minha mãe sentia o mesmo com “Maria, maria”.

Portanto, assim como eu, muitos outros foram tocados por esse artista, que construiu parcerias emblemáticas para a nossa MPB. Estou me referindo àquelas canções com Chico Buarque, Caetano Veloso, Mercedes Sosa, Gilberto Gil etc., listar aqui cada uma delas, demandaria de você, caro leitor, ainda mais de seu exíguo e precioso tempo. Ademais, sendo politizado e sensível às causas sociais, Milton é impecável também nos seus posicionamentos públicos, sem precisar de palavreado para dizer o que ferve no peito para ser dito. Em tempos como este ano atribulado, tal atributo não só é raro, como também é de uma urgência libertadora, tal como se estivéssemos num cativeiro inescapável e dantesco. (Onde estão os nossos libertadores?) Acumulam-se em nosso meio os artistas insossos, tão ingenuamente conformados ao bom-mocismo que lhes é ensinado — ou imposto — desde bem cedo. Buscam agradar gregos e troianos, sendo que ninguém pode fazê-lo sem implodir a própria consciência. Milton os supera com larguíssima vantagem.

Entretanto, digo a quem me lê que este ensaio não é uma crítica musical — ofício do qual estou longe de qualquer pretensão. Na verdade, escrevo aqui um simples depoimento, cujo intuito é tratar sobre sentimentos e algumas memórias pessoais; uma espécie de cântico beneditino, misturado a uma despretensão franciscana, ou seja, extirpado de ambições jesuíticas, com seus noctívagos circunlóquios pascais. Enfim, que cada um tire destes pensamentos o que for aproveitável para si. Para mim, seria uma grande alegria saber que ao menos uma pessoa sentiu uma faísca inquietante em seu coração.

E por que a despretensão franciscana?

Nesse momento em que me atrevo a escrever, sinto-me incapaz de conceber aventuras novelísticas, de modo que escolhi me acomodar a rápidas pinceladas, feitas às pressas em noites insones, permeadas pelo sigilo do silêncio noturno e agitadas pelo sibilar da brisa fria no meu quarto voltado ao oceano escuro. Falta-me fôlego para nadar num rio demasiadamente agitado e pedregoso, tais como romances e afins. Mesmo os gêneros breves me intimidam, por exemplo, com sua feitura labiríntica e intricada sobreposição de camadas interpretativas. Portanto, reconheço que perdi aquele atrevimento típico da mais incauta petulância, quando os Elíseos parecem ao alcance de mãos mundanas, quando a sombra olímpica ascende no limiar das possibilidades mais venturosas.

Até que, de repente, me achei preso ao marasmo do anonimato, quando os sonhos ecoam, na mente alheia, como uma fábula abobada, um anseio que beira a maluquice completa. Sonhar para quê? Essa sempre foi uma pergunta tola para os sonhadores e, ao mesmo tempo, onipresente para os pragmáticos que teimam em “manter os pés no chão”. Por outro lado, como diz o saber popular: sonhar não custa nada. É prazeroso antever, nas miragens interiores, um cenário de triunfo sobre todos os obstáculos. Afinal, quem não quer, em algum momento do futuro próximo, “ser feliz pra valer”? Entretanto, a existência que partilhamos não está sob o nosso comando. Podemos agir para dobrá-la à nossa vontade pessoal, mas sempre persistirá a possibilidade de que a reação do nosso entorno seja contrária às nossas expectativas.

 

Daniel Viana de Sousa

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