Dizer que somos perpetradores e vítimas do
nosso entorno é uma obviedade. Tanto contribuímos quanto somos vitimados pelas
escolhas dos outros. Reconhecer a própria responsabilidade nessa tempestade que
nos devora, é um sinal raro de lucidez e uma amostra de maturidade. De fato, mesmo
aqueles que se dizem “neutros”, são construtores da realidade que nos rodeia,
pois se recusam a combater, apoiar ou criar um novo lado na cotidiana batalha
das ideias. Sempre há algo por ser dito, uma palavra que, ao ser proferida, desvia
levemente o rumo ou a interpretação dos acontecimentos diários. Silenciar-se
não é ausentar-se, mas se envolver na indiferença por outros meios.
A indiferença da nação no 7 de Setembro de
2022 foi um grito paralisante e sintomático, um sinal do nosso Brasil nessa
terceira década do século XXI. Com duzentos anos de “independência” completos, nos
comportamos com uma indisfarçável apatia política: fomos à praia, à piscina do
prédio, ao cinema da esquina ou à casa da namorada, como se fosse um feriado
qualquer, uma insossa data festiva, sem qualquer significância pessoal ou
coletiva. Ao invés de nos mobilizarmos na data mais emblemática da nossa nacionalidade,
optamos pela distração e o gozo individual. Certamente, não cabe a mim fazer
qualquer juízo moralizante acerca do comportamento das pessoas. Afinal, o
esgotamento físico e mental ao longo de sucessivas semanas de trabalho merece o
devido descanso.
Contudo, a realidade não se transforma sem
ação.
Muito poderia ter sido feito, tal qual
ocorrera há cem anos atrás, na Semana de Arte Moderna. Nossos compatriotas não
são infecundos, nem insensíveis ao que vem ocorrendo nos últimos decênios; aliás,
suspeito que haja muita inventividade contida nas periferias, onde não se teme
ousar, atrever-se a dar à luz a algo novo, insurgindo-se contra os ditames das
classes dominantes. Contudo, no ano do Bicentenário da Independência, não se
noticiou nada que contagiasse os jovens, os artistas e os demais grupos sociais
que compõem a sociedade brasileira contemporânea. A indiferença coletiva se
manifestou num marasmo completo, um desleixo contagioso e desanimador.
Mas, afinal, qual liderança conduziria tal
processo de forma diferente?
Há um desencantamento que nos salta os olhos por
toda parte, seja na escola ou na fábrica, na delegacia ou na praça… há quem
fale que o Brasil falhou, definitivamente, como nação, incapaz de achar uma
solução para seus dilemas, mazelas e contradições — será que isso explicaria a
indiferença quanto ao Sete de Setembro? Ao longo da História, houve quem
tentasse explicar tal sensação íntima — e ao mesmo tempo coletiva — de fracasso
nacional. Por incrível que pareça, já disseram que o calor tropical seria a
razão que nos condenaria ao subdesenvolvimento! Não creio que possa apresentar
aqui uma solução, haja vista que isso requereria a reflexão conjunta de
economistas, sociólogos, ambientalistas, empreendedores, políticos etc., profissões
que estou longe de querer exercer. Entretanto, estando na condição de cidadão,
acho que posso dar algumas opiniões sobre o que vem ocorrendo no Brasil.
Trago este texto às vésperas do segundo turno
das Eleições de 2022, de tal maneira que posso lhe afirmar que,
independentemente de quem triunfar, o Brasil se conservará fendido, gravemente
enfermo das contradições que tem acumulado, no mínimo, desde o impeachment de
Dilma Rousseff (2011-2016). Se olharmos numa perspectiva histórica mais abrangente,
chegaríamos no Golpe de 1964, responsável por aniquilar um genuíno movimento
democrático-popular que lutaria a favor das Reformas de Bases, propostas pelo
presidente Jango (1961-1964). Bem mais que os governos do PT e o PSDB, o Golpe
de 64 construiu boa parte da sociedade que temos hoje: uma brutal desigualdade
social, a favelização dos grandes centros urbanos, a formação de monopólios da
comunicação, a concentração de terras em grandes latifúndios etc.
Sempre que pensamos no Brasil que temos — e no
Brasil que virá —, lidamos, diretamente, com a herança de gerações passadas,
aquelas que lidaram com os desafios de se construir um país como esse, nascido
do escravismo, do colonialismo, do extermínio, do obscurantismo, da monocultura
e do racismo. Reduzir tais elementos a meras “coisas do passado”, como se seus
efeitos se dissociassem do presente, é um erro crasso e um claro apagamento das
lutas populares contra as sucessivas opressões que se formaram em nossa
história nacional. Os descendentes destes canalhas não querem que o povo tenha
memória, muito menos ânimo para lutar nas ruas, pois recordar significa
resgatar a luta dos esquecidos, dos vencidos e dos traídos.
Há uma obra inconclusa à espera de um líder capaz
de soerguer toda uma nação que sai da sua pior década aos frangalhos. Deixando
à parte os bilionários, quase todos sofreram — cada um na sua própria bolha socioeconômica
— duríssimos golpes na pandemia, sem contar as vítimas diretas e indiretas da
doença em si. Somando-se isso aos demais fatores econômicos e políticos, é cada
vez mais claro que o Brasil se vê afogado em crises sistêmicas, convencendo alguns
de que não há solução dentro da ordem democrática, de modo a conjecturar rupturas
com a Constituição de 1988. A necessidade da sustentação (ou não) dessa
democracia que temos há mais de três décadas, será discutida por mim em outro
texto.
O trabalho de reconstruir esse país desde suas
fundações, cuja responsabilidade, provavelmente, recairá nos ombros de Lula
(2003-2010), não se encerrará em poucos anos. Se Jair Bolsonaro (2019-2022) for
derrotado, tanto nas urnas quanto nas ruas, veremos o fascismo varrido do
Palácio do Planalto, mas não o veremos extirpado do seio do Brasil. Brasília
não é o Brasil! Há uma discrepância abissal entre a realidade cotidiana do povo
e a vidinha maçante do parlamentar brasileiro. O destino do país sempre esteve
nas mãos da classe trabalhadora — mesmo que inconsciente disso —, e não nas
mãos dos congressistas engravatados, títeres das forças econômicas que nos tiranizam
há mais de cinco séculos. Se as massas se mobilizarem a favor da liberdade, da
soberania e da igualdade, o status quo
estremecerá e as janelas se abrirão para um novo momento histórico do povo
brasileiro.
Há que se ter paciência generosa, confiança e
coragem heroicas. Caso contrário, nos afundaremos na depressão e no desespero. O
momento em que vivemos, nos exige um sacrifício genuíno por uma causa maior que
qualquer individualidade, tendo sempre em mente aqueles que estão por vir e que,
certamente, nos julgarão do futuro. Nossas decisões se preservarão por muitos
anos na carne, na terra, na água e na memória coletiva. O que diremos a eles? Ergueremos
nossa fronte orgulhosamente ou seremos tomados por um vexame súbito? Trata-se
de um divisor de águas para mim e você, para quem virá ou que está chegando
agora, de modo que a responsabilidade pelo futuro pertence a todos. Nesse
cenário, tal como ocorrera em Abril de 1964, não há espaço para isenção ou descompromisso,
neutralidade ou bom-mocismo.
Portanto, a luta deve ser renhida e a
disciplina precisa ser espartana, sem dar descanso ao fascismo que espreita. Lutemos
nas praças, nas escolas, nos presídios, nas favelas, nas florestas e nas praias.
Viva o Brasil! Viva o povo brasileiro!
Daniel Viana de Sousa
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