terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

O peso do luto passeia pelos bulevares

  

         Chegamos ao primeiro aniversário da invasão russa às terras ucranianas, e nada parece deter a selvageria devoradora das armas modernas e dos belicistas que as têm consigo; sangue é derramado e vidas são tomadas, dia após dia, sem que surja qualquer sinal de trégua entre os adversários. Não tenho dúvidas de que este será visto como um dos momentos mais emblemáticos da primeira metade do Século XXI, junto com o atentado às Torres Gêmeas, a quebra do Lehman Brothers e a Pandemia do Novo Coronavírus. Milhões de vidas foram atingidas pela invasão russa, alimentando medo e ódio nos corações de povos que, antes, se consideravam irmãos.

Há décadas que os europeus não testemunhavam uma guerra de vastas proporções em seu entorno geoeconômico e geoestratégico. Pensava-se que seu belicismo se encerrara em 1945, e que, após o desaparecimento da temida “ameaça comunista”, a Europa repousaria numa fraternidade ad aeternum. Porém, a disputa entre a ordem estabelecida pelo Ocidente e seu maior contestador, Vladimir Putin, veio à tona em dimensões assombrosas. Tanques, drones, misseis e tropas russas cruzam as planícies da Europa Oriental, tendo como alvo as localidades ucranianas a leste do Dnieper. A resiliência dos ucranianos surpreende a todos, mas não durará para sempre. Fala-se que o número de mortos pode ter ultrapassado os cem mil. E, segundo o Kremlin, nenhuma manobra militar está descartada, o que, logicamente, inclui o uso de armas de destruição em massa contra as forças de Kiev e sua população civil.

Ao contrário do que a imprensa e o senso comum nos repetem à exaustão, a eclosão de uma guerra não se deve apenas ao “fracasso do diálogo” ou ao “desrespeito à coexistência pacífica” entre forças rivais, mas a um sinal claro da fragilidade dos avanços feitos pela Humanidade em séculos passados, como, por exemplo, a simples noção de um “Direito Internacional” a ser respeitado pelo “concerto das nações”. Na realidade, as regras postas no papel são incapazes de deter a beligerância das grandes potências, sejam elas do Ocidente ou de qualquer outro lugar. As regras feitas à mão têm força, quando os reais detentores do poder concordam que assim o seja. Alteradas as circunstâncias, novas regras serão concebidas e impostas pelos vencedores aos vencidos.

No tabuleiro dos interesses imperiais, os possuidores de matérias-primas, abundante mão de obra e posições estratégicas, convivem com a faca no pescoço. Vulneráveis à voracidade dos tiranos, tais nações são obrigadas a se curvar para títeres, arrivistas, elites servis e ditaduras sanguinárias, exatamente como ocorrera conosco à época do Golpe de 1964. Os imperialistas explorarão justificativas “civilizatórias”, perfumadas com o bom-mocismo hollywoodiano, forte o suficiente para cativar a opinião pública do hemisfério ocidental. De fato, no que diz respeito a uma horizontalidade do acesso à informação, os avanços da internet não impediram que os EUA reproduzissem, mais uma vez, a verdade imposta ao resto do mundo. Tendo em vista sua astúcia imperial, os estadunidenses elegem os mocinhos e vilões, os agressores e agredidos, numa eficiência ainda inalcançável para seus opositores. Lutar contra essa rede de ilusões, é uma tarefa incontornável para os que buscam ter sua própria soberania e libertação.

Para os ocidentais, há algo de “diferente” nesta guerra. Antes, os afligidos pelas bombas e mísseis eram afegãos, somalis, iraquianos, sírios, líbios e outros povos distantes, segregados dos centros capitalistas. Antes, a decrepitude dos cadáveres e os urros de terror estavam afastados das belíssimas avenidas parisienses e das pontes sobre o Tâmisa. Antes, a guerra parecia uma idiossincrasia do Terceiro-Mundo, um traço exclusivo das subculturas periféricas, tipicamente semiletradas e incivilizadas.

Agora, os europeus veem os cadáveres de perto e sentem o cheiro da morte chegar às suas casas; o inenarrável peso do luto passeia pelos bulevares; os jatos e tanques que despejavam bombas nas “terras obscuras e sub-humanas”, agora caem sobre seus pontos turísticos, suas praças, hotéis, igrejas, shoppings, praias e mansões de luxo. Agora, os mortos e desterrados têm pele alva e olhos claros, parecem-se com seus filhos e irmãos; eles batem à porta dos vizinhos afortunados por vastas riquezas à procura de emprego e abrigo, sendo que a economia estagnou-se, a inflação decolou e não há emprego para todos.

          A guerra entre russos e ucranianos reafirma uma dantesca tragédia: nada nos impede de retroceder ao primitivismo mais implacável e inumano. Aquilo que exaltamos como fruto de nosso progresso filosófico e material, tão comumente consagrado à eternidade, pode implodir numa semana agitada, até mesmo no espaço de algumas poucas horas. Na verdade, a globalização nos pôs enfileirados sobre uma corda esticada ao máximo: a despeito dos terríveis vendavais do século passado, temos conseguido nos equilibrar, porém, se nos descuidarmos para aquilo que nos mantêm unidos, isto é, a busca sincera por um mundo melhor para todos, cairemos imediatamente no mesmo abismo, e este será o fim para toda a Humanidade.

Nos tempos atuais, tal ameaça nunca esteve tão próxima de se realizar quanto nos últimos doze meses. Cada vez mais, a linha tênue se estica, ao mesmo tempo que os adversários afirmam não querer ou planejar uma Guerra Mundial. O fato é que suas ações os contradizem. A todo momento, os rivais financiam o esforço de guerra, despejam bombas, matam civis, refazem seus estratagemas e recrutam mercenários.

Para que estejamos lúcidos em meio à tempestade, falta-nos uma peça no quebra-cabeças do cenário internacional. Trata-se da perspectiva russa quanto à guerra, que é, em parte, um capítulo da criação de um mundo multipolar. Com efeito, a maioria do nosso povo desconhece a Rússia; possivelmente não saibam nem onde localiza-la no mapa; e, ao serem apresentados pelas vozes da imprensa brasílica, recebem uma caricatura desenhada pelo setor propagandístico dos EUA. Não é por acaso que a maior parte da imprensa se esforce em deturpar as motivações russas: estamos habituados a papaguear tudo que nos chega do norte; poucos ainda guardam algum senso crítico.

Essa manipulação em larga escala é parte da grande guerra em curso, do esforço estadunidense em sustentar o status quo, anunciando a reedição de mais um século americano. No entanto, essa disputa está longe de um desfecho favorável a Washington, indicando, caso todos optem por não se matar, uma transição em câmera lenta para a multipolaridade. Por outro lado, acredito que, enquanto houver países com armas de destruição em massa, a verdadeira paz jamais irá se concretizar. O temor de um rompante, por parte de um país vizinho ameaçador, bem como traumas de guerras passadas, obriga as nações a buscar meios de dissuasão cada vez mais extremos. Há que se chegar a um consenso global sobre essas terríveis armas.

Isso jamais ocorrerá sem a anuência de Moscou, o que nos traz de volta ao conflito na Ucrânia.

Em primeiro lugar, os russos jamais aceitarão um desfecho que comprometa, a médio e longo prazo, seus objetivos estratégicos, o que inclui a segurança de suas bordas ocidentais, haja vista que a região sofreu três invasões em dois séculos, cujo objetivo foi aniquilar e, no caso dos nazistas, escravizar os eslavos. Para a glória do povo russo e de seus aliados, todos foram vencidos e humilhados. Uma instabilidade nessa região põe em grave risco centros históricos, como Moscou e São Petersburgo, berços não só da cultura russa, mas também de todos os povos de língua eslava. Portanto, ter segurança, influência e controle sobre as terras a oeste do Kremlin, será, com toda certeza, uma demanda de Putin aos seus adversários na mesa de negociações.

É óbvio que, para angariar apoio interno, o Kremlin esforçou-se em deslegitimar a soberania, a liberdade e a paz de seus vizinhos. Nos dias de hoje, o invasor precisa maquiar suas intenções, apresentando justificativas minimamente louváveis, lógicas e coerentes, sejam elas verídicas ou não. Para tanto, Putin acusou a expansão da OTAN, as sucessivas agressões aos separatistas próximos à fronteira russa, a proliferação de grupos neonazistas etc. Nenhuma dessas alegações é falsa, mas nenhuma delas sustenta a necessidade de uma invasão armada e o prolongamento de uma guerra sem-fim.

Quem detém legitimidade para negar a adesão de Kiev à OTAN e à União Europeia, senão o povo ucraniano em si? É compreensível que, nesta fase histórica, os ucranianos queiram aproximar-se da União Europeia. Afinal, orbitar em torno da próspera Alemanha, em tese, parece ser mais proveitoso que em torno da nebulosa Moscou. Os tempos gloriosos do czarismo e do bolchevismo se foram; agora, eles não passam de peças de museu. Os russos jamais deveriam, a partir de seus próprios interesses, exercer uma ingerência criminosa em nações vulneráveis e periféricas. Quem condena o intervencionismo estadunidense, por sua arbitrária e bárbara sede de poder, deveria somar-se à condenação da invasão às terras ucranianas. Agir de maneira contrária, é um sinal de contradição e fanatismo.

 Tal como já disse em análises passadas, não sou especialista em Relações Internacionais. Apenas traço, a partir do meu escasso alcance inquisitivo, algumas ideias e impressões, cacos de vidro que tento reunir numa interpretação compreensível e consistente. Como a maioria das pessoas, sinto-me esmagado pela torrente de informação — e desinformação — que circula, desvairadamente, nas vielas sinuosas da internet. Abraçar alguma certeza, tem se tornado mais contraproducente a cada ano que passa. Certamente, o silêncio tornou-se a opção de quem não quer colocar o próprio pescoço na guilhotina.

O conflito na Ucrânia é, em parte, um acirramento da luta geopolítica entre o Ocidente e a aliança euroasiática, vista como ameaça intolerável à hegemonia de Washington, sejam eles republicanos ou democratas, negros ou brancos, homens ou mulheres. Tal aliança deve, na interpretação dos falcões, ser extirpada a qualquer custo, sempre em nome da liberdade, da democracia e de sua segurança nacional. Pois só uma união entre chineses e russos pode colocar em xeque o “Novo Século Americano”, que se traduz em mais pobreza, destruição e morte para os países periféricos e emergentes. Assim sendo, o embate geopolítico do nosso século foi delimitado na década passada: de um lado, encontra-se o sistema de dominação neoliberal, encabeçado pelos EUA; enquanto que, do outro lado, emerge a proposta de integração e prosperidade concebida por Xi Jinping e o Partido Comunista Chinês, as Novas Rotas da Seda.

Na realidade, a sombra do dragão chinês já encobriu vastos continentes nos últimos anos. Hoje, o principal parceiro econômico de quase todo o continente africano e latino-americano é a China. Por todo lado, obras de infraestrutura financiadas com capital chinês, povoam a paisagem de nações exploradas e empobrecidas, deixando a marca da influência chinesa nestas terras, antes feridas pelo colonialismo europeu. Ao passo que, na Ásia, mesmo seu velho rival, o Japão, não pode se contrapor à influência crescente do dragão nas nações vizinhas.

Ano após ano, prenuncia-se que a experiência chinesa sofrerá uma crise terminal, que abrirá a possibilidade de uma derrota irreversível do Partido Comunista frente à sociedade chinesa, cuja sede pela democracia liberal estaria escondida dos holofotes da mídia ocidental. Os arautos dessa ruína profética parecem antecipar que a China Comunista perecerá como um tigre de papel, tal qual ocorrera com sua predecessora, a União Soviética. Certamente, o futuro nos trará surpresas, mas o que se comprovou até aqui, geração após geração, foi a resiliência obstinada não só dos comunistas chineses, mas também dos cubanos, vietnamitas e norte-coreanos. Por enquanto, mesmo com a desaceleração de sua economia, as expectativas da liderança do Partido Comunista têm sido realizadas.

A perspectiva de uma irmandade com os chineses, possibilitou a Putin implodir seus laços com o Ocidente sem cair numa depressão econômica de vastas proporções. Pouco a pouco, a Rússia tem acoplado toda sua sociedade à civilização chinesa, seja no aspecto econômico, seja no aspecto militar e político. Foi uma jogada de extremo risco, mas que, até agora, tem lhe permitido esgrimir contra a Ucrânia e fazer ameaças à OTAN. Putin e Xi Jinping, os desafiantes da velha ordem, confiam entre si, ou seja, a maior potência militar eurasiana e principal fornecedora de gás natural do mundo, aliou-se à locomotiva do capitalismo contemporâneo. União ideal para ambos; terror gélido para seus adversários.

Suspeito que a década atual (2023-2033) será de enorme importância quanto aos processos apontados ao longo deste ensaio. Aproximamo-nos de uma virada decisiva nessa encarniçada disputa? A resposta para essa questão é: não há como predizer qual lado emergirá na condição de vencedor. É simplesmente impossível prever quando ou como tudo isso se encerrará. Nenhum dos adversários está imune de ser golpeado fatalmente; ambos trazem problemas internos que tendem a se agravar e rivais por todos os lados, de modo que seus planos podem naufragar a qualquer momento. Por fim, enquanto existirem armas de destruição em massa, não estará descartada a possibilidade de nos destruirmos pelas nossas próprias mãos; seu desmantelamento e proibição devem ser tarefas imediatas para quem luta pela autodeterminação dos povos, pela prosperidade das nações e, em última instância, pela paz mundial.

           

Daniel Viana de Sousa

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