Existem
muitas palavras para “guerra”, e nenhuma delas, quando vista de perto, é bonita.
Talvez, sejam “heroicas” ou “trágicas” para quem for contar uma história no
cinema, no teatro ou na televisão. Mas, quando se trata da vida real, uma dor
inexprimível estampa a face de quem é obrigado a deixar tudo para trás, bem
como quem perde parte de si, na carne ou no coração, tendo apenas a lápide fria
no chão, com um nome querido que não se pode mais ver ou abraçar. Não há beleza
alguma em guerrear. No entanto, de tempos em tempos, os humanos fazem guerra
uns contra os outros, como se, de repente, toda memória desaparecesse e a mesma
lição tivesse de ser recontada de novo. Criam-se máquinas novas, justificativas
“humanitárias”, prevenções estratégicas, ideologias “libertárias”… apenas para
que, ao final de outra matança, quando os ânimos se acalmarem, possamos redescobrir
o significado da paz.
Mais de mil dias já se
passaram desde o início da guerra na Ucrânia, o maior conflito armado da
contemporaneidade, responsável por estremecer as relações internacionais do
Atlântico ao Pacífico, colocando as maiores potências militares do planeta cada
vez mais próximas de uma conflagração nuclear. De um lado, a Ucrânia segue
sendo apoiada pela coalização dos países ocidentais, em especial aqueles
pertencentes à Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN); do outro lado,
a Rússia mantém-se firme no seu ímpeto de subjugar o governo em Kiev,
responsável por aproximar a Ucrânia do Ocidente, ou seja, fora da zona de
influência histórica de Moscou.
No enfrentamento aos
russos, já se tentou de tudo: sanções econômicas, congelamento de ativos, exclusão
das Olímpiadas, expulsão de fóruns multilaterais, ameaças de prisão, explosão
de gasodutos oceânicos… a lista se estende interminavelmente, de tal maneira
que, à exceção de alguns poucos países, nenhuma outra nação sofre, ao menos na
perspectiva do Ocidente, tamanho ostracismo político, econômico e moral quanto
a Rússia, que segue sendo governada, há décadas, por Vladimir Putin, visto por
muitos como um intragável autocrata. Na realidade, o que parece faltar aos ocidentais
é a perspectiva de que o mundo real vai muito além da Champs-Élysées, em Paris, ou do que a Quinta Avenida, em Nova York.
Há anos que Putin tem
apostado suas fichas no aprofundamento das relações russas com o chamado Sul
Global — desde potências ascendentes, como Índia e China, até países
periféricos na Ásia, África e América Latina. A causa disso reside no
isolamento imposto por europeus e estadunidenses, que terminou por convencer a
cúpula no Kremlin de que era preciso recorrer a iniciativas livres da
interferência de Washington e seus aliados, tais como os BRICS, Organização
para Cooperação de Xangai (OCX), União Econômica Eurasiática (UEE) e afins. Entretanto,
nenhuma parceria comercial poderia se igualar à aliança formalizada entre o
Kremlin e Beijing, principal aliada do regime moscovita em diversos setores da
economia, da geopolítica e das forças armadas. Mesmo assim, se as manobras de
Putin se tornarão um bote de salva-vidas para si e, principalmente, o povo
russo, só o tempo poderá nos dizer.
Enquanto isso, na falta
de manobras políticas exitosas, Moscou recorre ao que “tem de melhor”: mísseis
hipersônicos com capacidade para cgar ogivas nucleares, um projétil que nunca
fora utilizado por nenhum país detentor desse tipo de tecnologia. Se, no começo
da guerra, os russos evitavam recorrer a esse tipo de armamento, agora, fazem-no
diante do mundo inteiro, anunciando nas cadeias de rádio e televisão. Isso se
explica, em parte, pelo simples fato de que poucos possuem força bélica para
enfrenta-los nesse patamar tecnológico, e, certamente, os ucranianos não poderão
fazê-lo sem o auxílio do Ocidente, haja vista que o Kremlin assombrou seus
rivais ao lançar, na semana passada (21/11), um míssil nunca antes visto.
Batizado como Oreshnik, o artefato — capaz
de atingir alvos a uma velocidade de 3 km por segundo — destruiu uma fábrica em
Dnipro, no centro da Ucrânia, atravessando mais de mil quilômetros de distância,
de tal modo que, hoje, a guerra está a favor de Putin e seus aliados.
Tragicamente, a despeito
dos anseios de milhões de vítimas, não é possível prever um encerramento à
matança iniciada em 2014, quando o Kremlin ordenou, após a queda do presidente
ucraniano Víktor Yanukóvytch, a anexação da Crimeia e o suporte a rebeldes
separatistas no Donbass. Pelo contrário, os dois lados querem reverter a disputa
a qualquer preço, ainda que isso custe, ano após ano, o sangue de centenas de
milhares de jovens nos campos de batalha. Ondas e mais ondas de soldados são
condenados ao matadouro, triturados e espezinhados até o derradeiro suspiro, de
uma forma que não se vira, na Europa, desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Algumas
fontes relatam dezenas de milhares de mortos de ambos os lados; ao passo que
outras falam em centenas de milhares, sem que o número pare de crescer um dia
sequer.
E as cidades ucranianas,
especialmente as do front,
reduziram-se a destroços, escombros do que já fora teatros, escolas, igrejas
etc. Além disso, acusações de violação dos Direitos Humanos somam-se aos
números crescentes de deserção dos dois lados. Em resposta a isso, Kiev e
Moscou apelam ao surrado senso de patriotismo — tão potente em épocas passadas
—, mas que tem sido incapaz de seduzir as juventudes desalentadas. Quem se
orgulharia de dar a vida por Zelensky ou Putin? As massas sabem que essa não é
uma guerra em nome dos interesses coletivos, porque, nessa questão,
trabalhadores ucranianos e russos querem exatamente a mesma coisa: coexistência
pacífica e próspera. De fato, a dimensão dos dados referentes à deserção de
soldados ucranianos é espantosa. Segundo o site Euronews, “unidades inteiras
[do exército ucraniano] abandonaram os seus postos, deixando as linhas
defensivas vulneráveis e acelerando as perdas territoriais”. Ainda segundo a mesma
matéria, mais de 100 mil combatentes ucranianos desertaram desde Fevereiro de
2022, sendo provável que o número real seja ainda maior.
Do lado russo, a Associated Press (AP) divulgou, em abril,
um número também impressionante: dezenas de milhares de russos tentaram escapar
da convocação feita por Putin, seja cruzando as fronteiras da Rússia com a
Geórgia, localizada ao sul, e a Finlândia, na região setentrional do país, seja
buscando refúgio nos Estados Unidos, Alemanha e França. À época do primeiro
plano de convocação de reservistas, algo em torno de 300 mil jovens, circularam
imagens de satélite em que milhares de veículos congestionavam a fronteira
russa com Mongólia, Cazaquistão e Geórgia. Nos meses subsequentes ao
acirramento das lutas no front, quando foi se tornando claro que a invasão não
gozava da popularidade — e do êxito — que Putin planejara, noticiou-se que
alguns jovens puderam fugir, enquanto que outros acabaram encarcerados ou
mortos. Ora, levando em conta que o Kremlin costuma sufocar quaisquer informações
danosas à imagem do regime, como, por exemplo, o número oficial de baixas desde
que se iniciou a sua “operação militar especial”, espera-se que a cifra
verdadeira seja mais elevada.
Ao longo dos últimos
meses, um novo capítulo desse conflito veio à tona, pois ambas as partes
adquiriram reforços valiosos para a manutenção do seu esforço bélico. O que
poderia parecer, para os mais desinformados, uma “simples escaramuça entre
eslavos”, assumiu uma nova dimensão, responsável por colocar em risco o futuro
da Humanidade. De fato, a entrada desses novos atores significa mais um passo rumo
a um conflito generalizado, isto é, a pavorosa Terceira Guerra Mundial. Nessa
nova etapa, com a gestação paulatina de diferentes blocos no “concerto das
nações”, a possibilidade de uma escalada que fuja ao controle das cúpulas que
regem seus respectivos países, sejam elas de direita ou esquerda, tem se
tornado cada vez maior.
Com efeito, num indisfarçável
gesto de apoio à invasão russa, China, Irã e Coreia do Norte têm negociado,
cada um à sua maneira, diversas formas de suporte à economia, à indústria e às
manobras estratégicas delineadas por Moscou. Ao mesmo tempo, parceiros econômicos
centrais, como Índia e Brasil, recusam-se a boicotar o gigante eslavo, mantendo
de pé seus setores produtivos mais essenciais, como a exportação de commodities e de tecnologia bélica. Aliás,
como havia apontado anteriormente, as sanções impostas pelo Ocidente não conseguiram
colapsar a sociedade russa, tampouco frear a sua máquina de guerra, de modo que
centenas de milhares de combatentes jazem mortos nas estepes congeladas, sem
que isso resulte — até agora, pelo menos — em uma implosão do regime putinista.
Na realidade, as
movimentações do tabuleiro geoestratégico ocorridas ao longo dos últimos anos,
põem o mundo em uma situação que não se vira desde o fim da Guerra Fria
(1947-1991). Com a recente entrada da Finlândia e da Suécia à OTAN, as
fronteiras russas terão tropas do Ocidente a pouco mais de 100 quilômetros de
São Petersburgo, a segunda cidade mais rica da Rússia, com importância
histórica e cultural para todos os povos de origem eslava. Como resposta a essa
adesão, Putin mobilizou, pela primeira vez desde o fim da URSS, forças
nucleares para a Bielorrússia, que faz fronteira com Polônia, Lituânia e
Letônia, países pertencentes à aliança ocidental. Ora, como é de conhecimento
público, um ataque a um membro da OTAN é um ataque às demais nações que
integram o tratado.
Além disso, o presidente
russo tem lançado ameaças de que, caso se sinta ameaçado, poderá recorrer ao
seu arsenal nuclear. Na verdade, foi declarado recentemente que, mesmo num cenário
de ataque com armas convencionais perpetrado pelo Ocidente, Moscou pode, como
resposta a essa agressão, optar pelo uso de armas de destruição em massa,
chegando mesmo a usá-las contra os “centros de decisão”, ou seja, bases
militares pertencentes à OTAN. Para tanto, basta que o Kremlin interprete o
ataque como uma ameaça existencial ao Estado Russo, isto é, ao regime de
Vladimir Putin. Ora, após o lançamento do primeiro míssil, será impossível
antecipar os próximos passos: caminharemos rumo à catástrofe ou à mesa de negociação?
Sabe-se que EUA e Rússia possuem bombas termonucleares suficientes para acabar
com a vida humana em todo planeta, de modo que, caso isso se confirme, não haverá
vencedores; basta apenas que acionem as suas respectivas cadeias de comando e o
mundo arderá em chamas em um intervalo de pouquíssimas horas. Após o fim de
tudo, case reste algum sobrevivente, este se verá diante de um inferno coberto
por trevas, escombros e radiação.
Enquanto a guerra
termonuclear não explode, Putin recorre às demais cartas que guarda na manga,
pois, mesmo sem uma declaração formal de guerra, os norte-coreanos entraram com
tudo no conflito, arregimentando, além de mísseis e munição, um exército que,
segundo fontes da Bloomberg, poderia contabilizar, futuramente, 100 mil
combatentes. O regime de Pyongyang possui mais de 1 milhão de militares na
ativa, o que representa um dos maiores exércitos em atividade, de tal maneira
que pouca falta lhe fará tais soldados nas escaramuças contra os vizinhos
sul-coreanos. Segundos alguns meios de comunicação, tais batalhões detêm pouca
experiência. Ainda assim, sua chegada aprofunda um agravamento do cenário
geopolítico. Além da Coreia do Norte, os iranianos têm fornecido armamento,
especialmente drones, os quais têm se mostrado indispensáveis aos dois lados do
conflito.
Em resposta a essa
escalada, Washington autorizou o uso de mísseis americanos de longo alcance
ATACMS (Army Tactical Missile System)
contra instalações militares no interior da Rússia, algo totalmente inédito no
histórico de embates entre ocidentais e russos. O Reino Unido também se somou
aos estadunidenses, autorizando o uso de mísseis Storm Shadow, que são semelhantes aos ATACMS. Até pouco tempo, as
manobras de Kiev se limitavam a incursões de drones que, algumas vezes,
alcançaram o centro Moscou, mas se mostraram incapazes de reverter a guerra em
si. Na realidade, alguns observadores afirmaram, no decorrer dos últimos dois
anos, que a disputa afundara num impasse, podendo ter seu “final” semelhante
àquele entre as Coreias: uma guerra sem vencedores e congelada no tempo, mas em
tensão permanente, pronta para explodir a qualquer instante. Tal cenário ainda
pode se concretizar, caso nenhum dos lados consiga realizar seus objetivos
estratégicos.
Sem dúvidas, não era por
acaso que o presidente ucraniano, em viagem pela Europa e EUA, implorava pela
licença de atacar o interior da Rússia com ATACMS — antes, os mísseis só eram
disparados contra alvos nas regiões conquistadas pelo Kremlin, o que não
impediu as vitórias do exército russo em carnificinas brutais, como ocorrera em
Bakhmut e Avdiivka. De fato, a cúpula em Kiev apressou-se em fazer, no dia
seguinte à autorização (19/11), um ataque de mísseis americanos na região de
Bryansk, localizada a 110 km da fronteira ucraniana. Desse modo, mais uma linha
vermelha traçada pelos russos foi violada. Antes, Putin alertara que não
toleraria o uso de mísseis de longo alcance contra alvos no interior da Rússia.
Alguns se perguntam seriamente: até onde irá a paciência do Kremlin?
Ora, nos primeiros anos
da guerra, apostava-se que a chegada dos modernos tanques ocidentais significaria
uma reviravolta em benefício dos ucranianos, o que simplesmente não aconteceu; em
seguida, realizou-se, na primavera de 2023, uma contraofensiva contra as áreas tomadas
pela Rússia, resultando num completo fracasso; depois, a mesma ilusão se
repetiu com a compra dos caças F-16. Por fim, esperando dividir as tropas inimigas,
os ucranianos invadiram, em agosto de 2024, a região fronteiriça de Kursk, algo
que foi incapaz de se converter numa ameaça séria a Moscou. Por conseguinte, erguem-se
vozes no Ocidente que pedem não apenas um cessar-fogo, mas também um fim
definitivo à guerra.
Chegamos, então, à
pergunta central desta reflexão: até onde isso irá? Caminhamos em direção à Terceira
Guerra Mundial? Não há dúvidas de que a reposta para tal questão definirá alguns
dos acontecimentos mais determinantes da geopolítica nos duros anos à nossa
frente.
Ora, no noticiário
internacional, é quase um consenso que as eleições americanas teriam um papel
crucial no desenrolar da guerra entre russos e ucranianos. No entanto, mesmo com
o seu desfecho já conhecido por todos, a incerteza persiste. Muitos veem o
destino do mundo nas mãos do próximo ocupante da Casa Branca, o republicano
Donald Trump, detentor do segundo maior arsenal nuclear do planeta. Afinal, o
principal sustentáculo do regime de Zelensky, ao longo de toda guerra, foi a
gestão de Joe Biden, tido por alguns como um dos piores líderes da história
recente dos EUA. Não há dúvidas de que o retorno de Trump à presidência se
deve, em parte, ao fracasso dos Democratas em dialogar com as classes
trabalhadoras empobrecidas pela globalização e radicalizadas pela degradação da
sua condição de vida no “país mais poderoso do mundo”, mas isso demandaria uma
análise à parte. Em suma, Zelensky precisa do apoio dos falcões, mas, até
agora, não há indícios de que o presidente eleito esteja disposto a patrocinar
uma guerra iniciada na gestão do seu rival.
Contudo, o cenário
geopolítico não para de ficar mais intricado. Ontem (01/12), em entrevista a um
jornal brasileiro, Dmitry Peskov, porta-voz do Kremlin há mais de duas décadas,
afirmou que a Rússia não pretende recorrer ao seu arsenal atômico, mas declarou
que “a situação está mudando drasticamente”. Aliás, ele não crê que Trump
possa, por conta própria, encerrar tal conflito em um telefonema. Ao contrário,
o porta-voz recorreu ao polêmico termo deep
state, para referir-se a uma espécie de estado subterrâneo que haveria nos
centros de comando de Washington, que seria responsável pelos rumos da política
externa desse país, sempre à revelia das intenções do presidente, seja ele
democrata ou republicano, liberal ou conservador, imperialista ou pacifista. Peskov
também afirmou não nutrir esperanças quanto às futuras relações do Kremlin com a
Casa Branca, haja vista as 56 sanções que Trump utilizou contra a Rússia no seu
primeiro mandato.
Por fim, no final da
semana passada (30/11), Zelensky anunciou que poderia fazer concessões
territoriais aos russos, desde que, em troca, recebesse proteção da OTAN, algo
que, como se sabe, Moscou jamais aceitará. Putin preferiria esticar ao máximo
sua “operação militar especial”, correndo o risco de perder mais capitais,
soldados e estabilidade interna, do que permitir o controle da Ucrânia pela
aliança militar do Ocidente. Na visão de quem mora na Praça Vermelha, Kiev não
pode se separar ou afrontar os desígnios impostos por Moscou, de modo que, caso
seja preciso, todas as opções podem ser consideradas, incluindo as mais
pérfidas e abomináveis. Portanto, nessa carnificina entre povos irmãos, se há
uma certeza, ela poderia se resumir em uma frase: triunfará quem suportar por
mais tempo o sofrimento necessário para dobrar o joelho do adversário.
Daniel Viana
de Sousa
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