Nestes
tempos de pandemia, faço pouco durante o dia e menos ainda à noite; durmo bastante,
divago em sonhos estranhos, deito-me no divã de F. Serrano às cinco da tarde,
ouço Pink Floyd, caminho na praia durante o pôr-do-sol e, pra ser honesto com
você, estou satisfeito com isso. Nada de correria ou inquietação! Afinal de
contas, por que eu me comportaria diferente? Concentro-me em fruir cada momento
demoradamente, como se realizasse um ritual solene à meia-noite, após me
banquetear num festim nababesco. Passo a passo, vou escrevendo o que está ao
meu alcance, contando aquilo que naturalmente brota em minha mente entorpecida
pela cafeína. De fato, ao invés de pôr as minhas finitas energias à procura de
resultados apressados, deleito-me em viver cada segundo como se fosse um
instante sabático.
Há
quem critique esse meu jeito desanuviado, próprio — diriam alguns — de quem
ainda se encontra nos seus vinte e poucos anos, ou seja, sem as reponsabilidades
típicas da maturidade: sair da casa dos pais, crescer numa empresa, pagar as próprias
contas, casar-se com uma parceira, ter filhos, ver os anos irem embora… Posso
dizer que estou numa fase da minha existência em que algumas urgências
simplesmente não se materializaram, o que, de um ponto de vista particular, não
deixa de ser um privilégio. Não ter filhos na juventude foi uma escolha
consciente de quem preferiria usufruir do tempo mais tranquilamente. Além
disso, admito que não tenho ainda a sobriedade que se requer de um pai de
família. Ultimamente, minha cabeça anda nas nuvens, de modo que estou só, sem
grandes aflições ou intensos amores, mas passo bem. Interiormente, sei que fiz
o certo. Claro, não posso negar que a minha condição financeira era uma razão
determinante para não ter filhos antes dos trinta.
Todavia,
o ócio que estou apregoando não requer horas infindáveis sobre o sofá. É óbvio
que isto seria para uns poucos abastados, considerando a realidade social da
qual somos parte. Na verdade, eu defendo uma ociosidade que está ao alcance de
qualquer um. Basta olhar por um breve momento a luz matutina atravessar a
janela, perceber os caminhos retilíneos dos feixes em busca do chão; basta
contemplar o trajeto das aves que cruzam o céu vespertino para alimentar suas
pequenas crias; basta olhar nos olhos de quem se ama e dizer, em belas palavras,
tudo que se sente por ela, sem receio de passar vergonha por ser sincero; basta
beber uma xícara de café, enquanto se olha a paisagem da varanda… Não há
segredos para experimentar cada instante que a vida nos oferece.
Além
do mais, suspeito que é desse tipo de contemplação que surgem os poemas, as sinfonias
e os amores mais excelsos, dignos de serem apreciados por nossos corpos
sensíveis à beleza imaterial. Quanto a mim, posso dizer que foi justamente nos
dias ociosos que eu dei à luz os meus trabalhos mais sensíveis, aqueles que me
enchem de um orgulho paternal, de modo que tenho dificuldades em colocar a arte
da escrita como um simples labor, pois, para mim, ela também está revestida de
lazer e ócio criativo.
Há
quem diga — em geral, sem saber de onde vêm tais palavras — que o trabalho
dignifica o homem. Ah, que tolice! Não custa lembrar que o trabalho foi a
punição dada a Adão por comer o fruto proibido. Não custa lembrar que o vocábulo
“trabalho” tem sua origem num instrumento de tortura usado pelos antigos
romanos. Então, é válido dizer que trabalhar está mais próximo de uma punição
dada ao homem e à mulher desde os tempos imemoriais, do que de um caminho para
a sua redenção. Para mim, o trabalho é uma cisão do humano com sua natureza
contemplativa.
Também
há quem diga que a labuta diária dá
sentido à nossa existência, o que, no meu entendimento, é risível; pois, defendo
que o mero viver carrega, dentro de si mesmo, o sentido completo da nossa
fatigosa errância terrena, independentemente de termos um ofício para nos
ocuparmos ou não. Não somos robôs, seres descarnados de necessidades físicas,
psíquicas e espirituais, tais como o descanso, a contemplação, o silêncio e a
meditação — por mais que o capitalismo inumano insista em nos desprover da espiritualidade
humana.
Se
não somos máquinas, o que seríamos então? Essa é uma questão que renderia
tratados teológicos e filosóficos — algo que, certamente, não pretendo fazer
nesse brevíssimo texto. No entanto, creio que posso versar algumas divagações
rasteiras, não muito estranhas ao senso comum. Em primeiro lugar, sabe-se que,
do ponto de vista microscópico, nós somos constituídos da matéria que se
originou nas estrelas mais longínquas, de modo que somos, indubitavelmente, seres
cósmicos, destinados à universalidade, entretanto, não é justo reduzir o humano
apenas à matéria palpável e observável. Isto seria um erro grosseiro, uma falta
imperdoável. Em segundo lugar, minha fé ensina que habita em nós o Espírito que
deu origem à Criação. Nós somos, de fato, seu receptáculo mais honroso. Aqui, vale
lembrar que Cristo se fez carne, no intuito de sentir, em sua pele
incorruptível, o significado de ser humano, o que, consequentemente, dignificou
toda a Humanidade. Portanto, cada homem e mulher — também incluo os que não se
veem representados pelos dois gêneros mencionados —, independentemente de sua
história pregressa, tem uma dignidade inalienável e inquestionável,
simplesmente por serem irmãos e irmãs do Cristo. Tais considerações me obrigam
a refutar a ideia de que o humano teria, desde a sua concepção primordial, uma
natureza maléfica, o que a tornaria merecedora dos castigos inerentes ao
trabalho.
Enfim,
o Espírito Santo fez de nós a sua morada mais honrosa; Ele preferiu nos inundar
interiormente, como água viva em potes de barro, exercendo os mais sublimes impulsos,
de tal maneira que estamos voltados à criação — artística ou não — desde o
princípio dos tempos, desde a gênese da própria vida. Cada um de nós é parte
inseparável da Criação, bem como partícipe do seu início. Em suma, o ato
criador está conosco desde sempre, basta dar vazão a ele. Fazê-lo é minha
conquista máxima, minha busca diária e meu anseio inesgotável, de modo que não
recuo dos silêncios que a hesitação às vezes me provoca, mas me permito
desbravar os continentes obscuros do meu interior, mesmo que eu acabe me perdendo
em trilhas confusas e desusadas. Sigo sempre em frente, na direção que a minha
intuição apontar, sem nunca perder, é claro, o mapa traçado pelos mestres do
passado. Escrevo, escrevo, escrevo… Eis o que eu faço com os meus dias.
Daniel Viana
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