domingo, 30 de maio de 2021

Eis o que eu faço com os meus dias

 

Nestes tempos de pandemia, faço pouco durante o dia e menos ainda à noite; durmo bastante, divago em sonhos estranhos, deito-me no divã de F. Serrano às cinco da tarde, ouço Pink Floyd, caminho na praia durante o pôr-do-sol e, pra ser honesto com você, estou satisfeito com isso. Nada de correria ou inquietação! Afinal de contas, por que eu me comportaria diferente? Concentro-me em fruir cada momento demoradamente, como se realizasse um ritual solene à meia-noite, após me banquetear num festim nababesco. Passo a passo, vou escrevendo o que está ao meu alcance, contando aquilo que naturalmente brota em minha mente entorpecida pela cafeína. De fato, ao invés de pôr as minhas finitas energias à procura de resultados apressados, deleito-me em viver cada segundo como se fosse um instante sabático.

Há quem critique esse meu jeito desanuviado, próprio — diriam alguns — de quem ainda se encontra nos seus vinte e poucos anos, ou seja, sem as reponsabilidades típicas da maturidade: sair da casa dos pais, crescer numa empresa, pagar as próprias contas, casar-se com uma parceira, ter filhos, ver os anos irem embora… Posso dizer que estou numa fase da minha existência em que algumas urgências simplesmente não se materializaram, o que, de um ponto de vista particular, não deixa de ser um privilégio. Não ter filhos na juventude foi uma escolha consciente de quem preferiria usufruir do tempo mais tranquilamente. Além disso, admito que não tenho ainda a sobriedade que se requer de um pai de família. Ultimamente, minha cabeça anda nas nuvens, de modo que estou só, sem grandes aflições ou intensos amores, mas passo bem. Interiormente, sei que fiz o certo. Claro, não posso negar que a minha condição financeira era uma razão determinante para não ter filhos antes dos trinta.

Todavia, o ócio que estou apregoando não requer horas infindáveis sobre o sofá. É óbvio que isto seria para uns poucos abastados, considerando a realidade social da qual somos parte. Na verdade, eu defendo uma ociosidade que está ao alcance de qualquer um. Basta olhar por um breve momento a luz matutina atravessar a janela, perceber os caminhos retilíneos dos feixes em busca do chão; basta contemplar o trajeto das aves que cruzam o céu vespertino para alimentar suas pequenas crias; basta olhar nos olhos de quem se ama e dizer, em belas palavras, tudo que se sente por ela, sem receio de passar vergonha por ser sincero; basta beber uma xícara de café, enquanto se olha a paisagem da varanda… Não há segredos para experimentar cada instante que a vida nos oferece.

Além do mais, suspeito que é desse tipo de contemplação que surgem os poemas, as sinfonias e os amores mais excelsos, dignos de serem apreciados por nossos corpos sensíveis à beleza imaterial. Quanto a mim, posso dizer que foi justamente nos dias ociosos que eu dei à luz os meus trabalhos mais sensíveis, aqueles que me enchem de um orgulho paternal, de modo que tenho dificuldades em colocar a arte da escrita como um simples labor, pois, para mim, ela também está revestida de lazer e ócio criativo.

Há quem diga — em geral, sem saber de onde vêm tais palavras — que o trabalho dignifica o homem. Ah, que tolice! Não custa lembrar que o trabalho foi a punição dada a Adão por comer o fruto proibido. Não custa lembrar que o vocábulo “trabalho” tem sua origem num instrumento de tortura usado pelos antigos romanos. Então, é válido dizer que trabalhar está mais próximo de uma punição dada ao homem e à mulher desde os tempos imemoriais, do que de um caminho para a sua redenção. Para mim, o trabalho é uma cisão do humano com sua natureza contemplativa.

Também há quem diga que a labuta diária dá sentido à nossa existência, o que, no meu entendimento, é risível; pois, defendo que o mero viver carrega, dentro de si mesmo, o sentido completo da nossa fatigosa errância terrena, independentemente de termos um ofício para nos ocuparmos ou não. Não somos robôs, seres descarnados de necessidades físicas, psíquicas e espirituais, tais como o descanso, a contemplação, o silêncio e a meditação — por mais que o capitalismo inumano insista em nos desprover da espiritualidade humana.

Se não somos máquinas, o que seríamos então? Essa é uma questão que renderia tratados teológicos e filosóficos — algo que, certamente, não pretendo fazer nesse brevíssimo texto. No entanto, creio que posso versar algumas divagações rasteiras, não muito estranhas ao senso comum. Em primeiro lugar, sabe-se que, do ponto de vista microscópico, nós somos constituídos da matéria que se originou nas estrelas mais longínquas, de modo que somos, indubitavelmente, seres cósmicos, destinados à universalidade, entretanto, não é justo reduzir o humano apenas à matéria palpável e observável. Isto seria um erro grosseiro, uma falta imperdoável. Em segundo lugar, minha fé ensina que habita em nós o Espírito que deu origem à Criação. Nós somos, de fato, seu receptáculo mais honroso. Aqui, vale lembrar que Cristo se fez carne, no intuito de sentir, em sua pele incorruptível, o significado de ser humano, o que, consequentemente, dignificou toda a Humanidade. Portanto, cada homem e mulher — também incluo os que não se veem representados pelos dois gêneros mencionados —, independentemente de sua história pregressa, tem uma dignidade inalienável e inquestionável, simplesmente por serem irmãos e irmãs do Cristo. Tais considerações me obrigam a refutar a ideia de que o humano teria, desde a sua concepção primordial, uma natureza maléfica, o que a tornaria merecedora dos castigos inerentes ao trabalho.

Enfim, o Espírito Santo fez de nós a sua morada mais honrosa; Ele preferiu nos inundar interiormente, como água viva em potes de barro, exercendo os mais sublimes impulsos, de tal maneira que estamos voltados à criação — artística ou não — desde o princípio dos tempos, desde a gênese da própria vida. Cada um de nós é parte inseparável da Criação, bem como partícipe do seu início. Em suma, o ato criador está conosco desde sempre, basta dar vazão a ele. Fazê-lo é minha conquista máxima, minha busca diária e meu anseio inesgotável, de modo que não recuo dos silêncios que a hesitação às vezes me provoca, mas me permito desbravar os continentes obscuros do meu interior, mesmo que eu acabe me perdendo em trilhas confusas e desusadas. Sigo sempre em frente, na direção que a minha intuição apontar, sem nunca perder, é claro, o mapa traçado pelos mestres do passado. Escrevo, escrevo, escrevo… Eis o que eu faço com os meus dias.

 

 

Daniel Viana

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