É
difícil achar razões para aquilo que é inato, próprio de condições internas à forma
de viver. De fato, meu interior é tormentoso, cheio
de impulsos febris e descontrolados, que pedem saída, como água represada
saindo aos borbotões. É assim que a pulsão pela escrita ruge dentro de mim. Como
explicar a vazão desse rugido em letras miúdas, que se desenrola com particular
ferocidade nas minhas veleidades artísticas — essa mania de querer ser um homem
das letras?
Desde
o tempo em que fui criança — lá no alvorecer dos anos 2000, época das minhas
primeiras descobertas literárias —, sonhei em arrebatar a atenção das pessoas
com um livro benfeito. Este desejo veio sem pedir licença, cobrando de mim
esforços hercúleos, que se traduziam em calos nas mãos machadas de tinta
escura, arroxeadas pela pressão da caneta à pele parda, doloridas pelo
repetitivo esforço de pressionar uma ponta de ferro contra a espessura de
dezenas de papéis acumulados. Um preço ínfimo se comparado à satisfação
infantil de ver laudas e mais laudas de folha rabiscada, com linhas e mais
linhas de história desconexa. Um troféu que seria engavetado na
escrivaninha de madeira clara, depósito de sonhos artísticos, um montículo
amarelado de velhas folhas recicladas.
Ora,
como havia dito anteriormente, eu queria escrever um livro, e queria que ele
fosse grande, como aqueles que passavam de mão em mão na nossa pequena família
de leitores de fantasia: O Senhor dos Anéis, O Hobbit e o Silmarillion. Nada de
pequenos fragmentos da realidade, como as crônicas que hoje escrevo, ou mesmo
de narrativas curtas, como os contos. Na época, eu queria uma trilogia de
fantasia com ares medievais, nos moldes daquela concebida por Tolkien, ou seja,
repleta de seres mitológicos, com tramas diabolicamente envolventes e de uma
profundidade inquestionavelmente erudita. Levaria ainda uns bons anos para que
eu soubesse apreciar a genialidade de grandes contistas, tais como Murilo
Rubião, Hemingway e Tchekhov. Tudo ao seu tempo.
Eu
me punha a delinear linhagens de reis míticos, a catalogar subespécies de
elfos, anões e dragões legendários e a desenhar estranhos mapas de terras
fantásticas. Tudo na ingênua esperança de repetir, com as minhas próprias mãos,
aquilo que o escritor sul-africano fizera décadas antes de eu nascer. Infelizmente,
de nada adiantou o meu esforço, mesmo que nunca perdesse o desejo primordial
pela escrita. Pois, aquilo que eu fazia, não passava de um mero pastiche do que
já fora realizado. Não havia originalidade, mas apenas imitação ruim, fruto de
uma fascinação juvenil. Eu não nego que às vezes me sentia um pacóvio, um tolo,
por tentar repetir o que já fora feito com refinadíssima maestria. Faltava-me
algo que eu não sabia bem o que era.
Ainda
assim, eu me mantinha escrevendo, como se este fosse o passatempo perfeito para
uma mente inquieta, sempre obcecada em criar mundos alternativos à realidade
circundante. Digo “passatempo”, pois ainda não enxergava a escrita como uma
atividade profissional, embora eu desejasse obter prestígio e dinheiro com ela.
De fato, às vezes eu me imaginava como um jovem autor de sucesso, cercado de
admiradores e de algumas beldades, lido por milhões de leitores e próximo de me
tornar, de uma vez por todas, o maior escritor vivo da Língua Portuguesa. Como
você pode ver, eu sempre sonhei alto, sempre busquei os tronos de fama e glória.
À
época, não me amedrontava a condição periférica na qual eu estava submetido: um
adolescente mestiço do nordeste brasileiro, proveniente de uma classe média
ameaçada de cair na pobreza, com educação literária mediana e sem acesso a
qualquer tipo de mídia que não fosse a “democrática” internet. Vivendo num país
que estranha a sua literatura nacional, que consume a cultura estrangeira, ao
invés da nossa cultura brasileira, criando o que Suassuna chamava de “gosto
médio”; um país chamado Brasil, que despreza o benfazejo saber acadêmico, enaltecendo
unicamente o improviso dos bons futebolistas, eu escolhia justamente um ofício que
me condenava à irrelevância social. Perceba: hoje, eu não me amedronto com a
solidão, com a má remuneração e a irrelevância do ofício que escolhi, pois
quero tão somente me realizar enquanto ser humano e artista, a despeito do
reconhecimento alheio ser, de fato, inexistente. Alegra-me saber que não sou o
primeiro a atravessar essa cortina de silêncio, porque outros grandes nomes me
precederam. Alguns escritores, como Franz Kafka, morreram praticamente
desconhecidos; outros, como Bulgákov, não viram os seus melhores trabalhos
publicados, devido à dureza do sistema em que viviam, e assim segue a roda da
história. Para lidar com o suplício do anonimato — cuja dureza começava,
lentamente, a questionar minhas capacidades —, tive de buscar outros ídolos com
os quais eu pudesse me consolar: na pintura, eu tinha Van Gogh; na escrita
literária, Charles Bukowski e assim por diante.
Não necessariamente eu lia suas obras, mas me inspirava em suas biografias, de
modo a crer que, de alguma maneira, aquilo que é imortal inevitavelmente
triunfa. E assim eu seguia, escrevendo aqui e acolá, ruminando textos que,
devido à falta de meios para publicar, acabavam engavetados, rasgados ou esquecidos
em alguma estante pela casa. Só meia dúzia de pessoas leu o que escrevi antes
de 2019; destas, nenhuma provavelmente se lembra de alguma coisa que pus no
papel.
Enquanto
isso, o tempo passava, os textos mudavam, as leituras evoluíam e as dúvidas se
amontoavam. Passei a ter diferentes questionamentos para diferentes problemas
que surgiam na minha mente: qual o sentido da vida? qual a origem do mal? qual
a maneira de superar a morte? como ser feliz no decorrer da existência? como
funciona o mundo atual? como superar o sofrimento?… Esses questionamentos não
vieram de repente, mas foram surgindo à medida que a realidade mudava e à
medida que eu mergulhava em elucubrações interiores. Tais investigações
geralmente eram um mar sem-fim de palavras, ou seja, não chegavam a uma
conclusão definitiva a respeito do que eu realmente pensava. Em suma, eu não
dava um ponto final às minhas divagações. Contudo, elas faziam com que eu
estendesse os limites do meu pensamento a novas fronteiras, de tal maneira que
eu já não era o mesmo de antes. Aos poucos, meus pensamentos iam saindo da
mesmice, do raciocínio habitual que permeia as ideias de tantas pessoas hoje em
dia. Todavia, eu ainda estava longe do que almejava para mim mesmo: um escritor
que se expressasse verdadeiramente por meio da linguagem. De fato, sempre pus
grandes expectativas sobre os meus ombros, o que não deixa de ser uma forma de
automutilação.
Até
que chegou o ano de 2019. Após anos sonhando alto e amargando frustrações,
cheguei à conclusão de que não adiantava mais esperar por uma oportunidade
aleatória. Era preciso publicar, colocar a cara no mundo. Assim sendo, eu dei
início à publicação de fragmentos num blog,
chamado “A forma da escrita”. Desde o princípio, eu já tinha em mente o que
escrever: crônicas e contos, narrativas curtas. Não só era o que eu acreditava
ser mais apropriado a esse tipo de mídia, como era o que eu me sentia à vontade
para oferecer aos futuros leitores Mas, após uns quatro meses, cansei-me com a
baixa receptividade e dei um fim repentino ao blog. Contudo, essa história não termina aqui.
Em
2020, a pandemia do novo coronavírus forçou-me a ficar em casa. Tudo se resumiu
às quatro paredes do meu quarto, de modo que não era mais possível recorrer a
desculpas para ficar estagnado. Os pensamentos fervilhavam em minha mente
inquieta. Novas ideias pediam vazão em forma de palavras. Portanto, era preciso
escrever, de tal maneira que o blog ressuscitou.
Após voltar a publicar os textos de 2019 e de ter em mãos a oportunidade de
escrever novas histórias, me pus a pensar a razão de ser um homem dedicado à
linguagem, cujo esforço se dá na formulação de uma mensagem à espera de ser
decodificada por pessoas que eu nem sequer conheço. Afinal, por que eu escrevo?
No passado, no tempo de criança, tive as minhas razões para escrever, mas,
agora, elas já não se sustentam mais. De fato, sou um novo homem. A grande maioria
dos seres humanos passa a vida sem se preocupar em deixar para trás algum
opúsculo qualquer. Então, por que eu faço parte desse grupo de pessoas, que
busca consolação no ato de escrever?
Para
responder a essa questão, te digo o seguinte: não fui eu quem escolhi a
escrita, mas a escrita quem me escolheu desde o princípio da minha vida. Aliás,
sei que não sou o primeiro a dizer essas palavras: outros já formularam esse
pensamento antes. Pois bem, foi essa força — misteriosa e sem nome — que fez de
mim seu súdito, seu servo mais ordinário. No entanto, estou mui longe do
patamar de Machado de Assis, Raduan Nassar e José Saramago. Sou um reles acólito
nessa religião particular. Resta-me escrever, pôr em prática aquilo para o qual
eu sou chamado dia após dia, como um escravo que se vê preso a um destino inescapável.
Claro que, ser destinado à escrita, não elimina a necessidade do esforço
diário, de descobrir como expressar aquilo que está preso dentro de mim, sem
cair numa verborragia incontrolável. Expressar-se requer mais que a mera
vontade de gesticular, de ligar sentenças aleatórias ou de balbuciar poemas mal
versados; para se expressar com desenvoltura, requer-se uma dedicação quase sacerdotal
à linguagem, aos seus meandros e amplos espaços à espera de serem desvendados. O
ato de escrever, portanto, requer mais que um gesto de voluntarismo; é uma
atitude perante a vida, outrossim é dom, oferecido pelos céus àqueles que se
dispõem a carregar o fardo de comunicar-se, de ir ao encontro dos outros, que
ele nem sabe bem quem é, mas que o examinarão com olhos de ferro. Eu escrevo
porque devo, porque preciso, porque amo estar nas linhas esmiuçadas,
espicaçadas e esfaceladas.
Daniel Viana
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