terça-feira, 30 de novembro de 2021

Não há esperança

          Livrar-se das ilusões e suas falsas promessas é um processo tão amargo, que a maioria, por comodismo e insegurança, simplesmente prefere manter-se presa à sua bolha de fantasias e mentiras.

A sociedade ocidental tem como um dos seus mais preciosos fundamentos a noção de liberdade individual. Crê-se que cada um é livre para fazer o que bem entende, ainda que essa “liberdade”, normalmente, restrinja-se a consumir os produtos que fazem a roda do Capitalismo girar sobre os demais. Essa roda tem sido duramente questionada desde a Crise Financeira de 2007/2008, o que ajudou a renascer o Marxismo em meio às gerações mais jovens. Não é à toa que essa roda vem esmagando mais pesadamente os jovens; basta dizer que, nas estatísticas de desemprego, de informalidade, os Millennials ocupam as posições mais desfavoráveis ano após ano. E, ainda que o Comunismo não tenha a força de cem anos atrás, muitos capitalistas já enxergam a possibilidade de rever alguns dos seus dogmas neoliberais, tendência que se acentuou ainda mais com a crise econômica derivada da pandemia do novo coronavírus. Em suma, o famigerado “sistema” está em crise, o que, certamente, não é algo novo; contudo esse fato abre novas possibilidades para aqueles que realmente querem “sair da Matrix”.

Porém, a despeito do explosivo avanço tecnológico que temos observado nos últimos decênios, a psique do ser humano não evoluiu ao ponto de superar coletivamente seus dilemas, preconceitos e instintos mais primitivos. Nosso mindset não corresponde às aspirações que, às vezes, nos impomos uns sobre os outros. Na realidade, os meios para se controlar as massas nunca foram tão preocupantes e eficientes, como se pode perceber nas tecnologias de reconhecimento facial, de vigilância cibernética, de repressão policial, de rastreamento por satélite etc. Em nome de uma difusa noção de segurança nacional, bilhões de pessoas tornaram-se — contra a sua vontade — ratos de laboratório num experimento que nenhum indivíduo isolado tem total controle. Este, é um sistema altamente complexo, cuja plena compreensão ainda levará anos para ser alcançada. De fato, rebelar-se contra essa realidade é cada vez mais difícil. Ao contrário do que muitos advogam, a solução dos nossos problemas não virá da tecnologia, das novas revoluções industriais… Na realidade, tal como vimos em épocas passadas, a tecnologia é absolutamente capaz de agravar ainda mais o sofrimento coletivo.

Curiosamente, ao invés de fomentar a rebelião, tal conjuntura sociopolítica terminou por favorecer o comportamento de manada no ser humano. Nunca fomos tão acomodados e manipulados quanto agora. Pois, cada um renunciou ao dever da busca pela mudança, do questionamento, da procura por um mundo melhor, do embate contra os poderosos…. Não há mais revolucionários, tampouco líderes que inspirem os melhores anseios da humanidade. Sobram arrivistas de respostas rápidas, oportunistas com frases de efeito, cafajestes de apelo popular com suas simplificações mentirosas e grosseiras; todos estão à procura de espaço no noticiário, visualizações na internet etc. Ao mesmo tempo, desde que o comunismo soviético entrou em colapso, acentuou-se nas gerações mais novas um distanciamento em relação à política partidária e convencional, de modo a produzir uma verdadeira pulverização dos tradicionais movimentos de massas. Onde estão os movimentos estudantis? Onde estão os sindicatos? Onde está a força dos intelectuais e artistas? Onde estão os partidos populares? Tal vácuo foi preenchido por tecnocratas, demagogos e gângsteres da pior qualidade; todos plutocratas e antipopulares com visíveis tendências antidemocráticas. Portanto, torna-se necessário que o povo traga a política novamente ao seu dia a dia, debatendo, às claras, o nosso futuro enquanto sociedade. E, mesmo assim, este será só o primeiro passo de um processo que se estenderá por décadas à nossa frente.

Entretanto, cada vez mais, as pessoas se acomodam à própria servidão. Com efeito, a postura heroica de sair à procura de respostas para perguntas tão gritantes, não é habitual em nossa sociedade. Na realidade, isso não só é visto como algo demasiadamente excêntrico, como também é muito exigente e, ao menos em nossa cultura de entretenimento, pouco apelativo. É mais aceitável cair de cabeça num hedonismo imaturo e infrutífero, além de variados hobbies e entretenimento fútil. Parece que abandonamos o heroísmo dos míticos guerreiros que enfrentavam feras mitológicas, salvavam donzelas e superavam barreiras instransponíveis para os mortais; excetuando-se os filmes de super-heróis, os mitos antigos já não parecem inspirar em nós o mesmo que ocorrera com gregos da Antiguidade.

Sem heroísmo, orientação ou sentido para a vida, o ser humano torna-se vulnerável a todo tipo de doença mental. De fato, é de conhecimento geral que estamos passando por uma pandemia ainda pouco noticiada pela mídia: a da depressão. Indo muito além de aspectos como nacionalidade, raça, religião, gênero, idade, preferência política e condição social, a depressão aprisiona pessoas nas mais variadas circunstâncias e eventualidades. É claro que não há respostas fáceis para um problema dessa envergadura, porém não há como dissociar esta realidade do contexto socioeconômico ao qual estamos atrelados. O aumento das psicopatologias são, em parte, uma consequência da precarização da vida nas grandes metrópoles contemporâneas. À medida que assumimos o comportamento de um multitasking/workaholic, vamos nos imergindo num caminho que só poderá terminar em profunda perturbação mental, pois não somos capazes de atender demandas tão altas pelo tempo que se requer. Somos limitados, frágeis e precisamos frear o corpo e a mente de tempos em tempos para manter um certo nível de bem-estar psicossocial.

(Tal como um subproduto do Ocidente católico, consequência trágica da expansão dos impérios ibéricos, a América Latina mantém-se como mera receptora tardia de tendências eurocêntricas. Ainda que caminhemos para um século asiático, cujo protagonismo, pela primeira vez em séculos, dar-se-á no Extremo Oriente, mantemo-nos apegados à opinião dos velhos senhores, renegando, de maneira inegavelmente tola, a nossa vocação para a união continental. Deixamos de inovar, tememos imaginar novos mundos, renunciamos ao desafio de contestar os ditames repassados pelos nossos colonizadores. Aliás, após décadas de governos pretensamente democráticos e liberais, estamos, vagarosamente, nos dando conta de que não basta o direito de votar em quem quiser, é preciso uma verdadeira e profunda democratização do poder, da renda, do conhecimento, da terra, da cidade, da mídia, da tecnologia etc. Isso não se dará sem luta nas ruas, sem uma vanguarda política que assuma o protagonismo próprio de quem se vê imbuído do dever da mudança. Entretanto, em nosso horizonte imediato, tudo se resume a quem preferimos colocar na cadeira presidencial. Nada poderia ser mais tragicômico.)

            Não resta dúvidas de que grande parte das pessoas só passa a questionar a realidade após uma experiência traumática, tal como uma catástrofe, a morte de alguém querido ou um acidente violento. Caso tudo se mantenha em perfeito estado, o ser humano da nossa época segue sua vida ordinária como mais uma engrenagem da sociedade moderna, movendo-se bovinamente em direção ao matadouro. Há pessoas que chegariam a defender a estabilidade desse “sistema”, sua sobrevida vegetativa, em firme oposição aos que pregassem uma superação dessa realidade que nos oprime e fustiga, pois sua parca sobrevivência depende da permanência de tudo como está. Isso não é novidade. A história humana está repleta desses conflitos maniqueístas.

De fato, em nossa sociedade, quem descumpre a regra de caminhar junto à turba de iludidos é, de modo geral, acusado de insanidade e, por vezes, visto como ameaça ao “sistema” que nos governa — quem nunca foi acusado de esquisitão por seus pares, simplesmente, por não seguir o rebanho nos mesmos gostos e costumes? Contudo, nem sempre a realidade se apresentou dessa forma torpe. Na verdade, ainda há uma tradição, em certas regiões da Ásia, de homens que deixam tudo para trás e partem em busca duma sabedoria que escapa ao senso-comum. Ainda é comum encontrar ascetas, místicos, sábios e errantes na Índia e em outras regiões do continente asiático.

Entretanto, à medida que a Internet abre suas portas aos mais variados setores da sociedade humana, torna-se claro que o entretenimento rasteiro e barato é a verdadeira aspiração das massas digitais. A despeito de haver uma infinidade de opções de consumo — algumas genuinamente reflexivas e complexas —, tudo se resume a um conteúdo absolutamente vazio, simplista e mercadológico, feito para ser “a sensação do momento”, “o hit do verão” e nada mais que isso. Cada vez mais, tem se tornado difícil encontrar pessoas que tenham alguma familiaridade com o cânone da Literatura Brasileira, os clássicos da Música Popular Brasileira e assim por diante. E, mesmo que o ensino público tenha se universalizado no Brasil, a qualidade da Educação pública nunca foi tão baixa.

Não tenho dúvidas de que vivemos um processo de emburrecimento em massa — quase tão grave quanto o cenário retratado no filme Idiocracy (2006). Os sinais da catástrofe estão por todo lado. Para tanto, basta mencionar o negacionismo científico e o anti-intelectualismo, o movimento antivacina, o ressurgimento da extrema-direita, a proliferação de fake news e as redes sociais como único meio de socialização coletiva, a incapacidade de se lidar com a mudança climática, a incontrolável extinção de espécies, as crises financeiras, o fortalecimento do tráfico de drogas etc. Não há como ignorar o fato de que vivemos uma época de decadência estrutural da nossa sociedade.

Os budistas, por sua vez, testificam que vivemos um tempo de degenerescência, o que tornaria ainda mais desafiador alcançar um entendimento mínimo do Dharma. Atravessamos uma era de obscurecimento daquilo que os seguidores do Buda chamam de “a natureza mais profunda da realidade”, dificultando a prática diária de libertação dos condicionamentos aos quais estamos presos. Para eles, o Samsara simplesmente não tem concerto. Deve-se deixar de lado a esperança de que “tudo termine bem”. Afinal, foi a compreensão de que todos os seres estão condenados ao envelhecimento, à doença e à morte, que fez Sidarta Gautama sair em busca de uma resposta ao sofrimento inerente a tudo que nos rodeia.

Devo dizer que isso me traz um certo conforto, haja vista que me poupa de labutar por uma sociedade em que todos sejam plenamente felizes. Isso simplesmente não vai acontecer — o que não quer dizer que a luta por uma sociedade mais justa seja desnecessária, apenas não se alimenta a expectativa de que a mudança trará o antídoto para os nossos males.

Diante disso, o que deveríamos esperar? Eu não espero nada.

 

Daniel Viana

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