Livrar-se das ilusões e suas falsas promessas é um processo tão amargo, que a maioria, por comodismo e insegurança, simplesmente prefere manter-se presa à sua bolha de fantasias e mentiras.
A sociedade ocidental tem
como um dos seus mais preciosos fundamentos a noção de liberdade individual. Crê-se
que cada um é livre para fazer o que bem entende, ainda que essa “liberdade”, normalmente,
restrinja-se a consumir os produtos que fazem a roda do Capitalismo girar sobre
os demais. Essa roda tem sido duramente questionada desde a Crise Financeira de
2007/2008, o que ajudou a renascer o Marxismo em meio às gerações mais jovens. Não
é à toa que essa roda vem esmagando mais pesadamente os jovens; basta dizer
que, nas estatísticas de desemprego, de informalidade, os Millennials ocupam as posições mais desfavoráveis ano após ano. E,
ainda que o Comunismo não tenha a força de cem anos atrás, muitos capitalistas
já enxergam a possibilidade de rever alguns dos seus dogmas neoliberais,
tendência que se acentuou ainda mais com a crise econômica derivada da pandemia
do novo coronavírus. Em suma, o famigerado “sistema” está em crise, o que,
certamente, não é algo novo; contudo esse fato abre novas possibilidades para
aqueles que realmente querem “sair da Matrix”.
Porém, a despeito do explosivo
avanço tecnológico que temos observado nos últimos decênios, a psique do ser humano
não evoluiu ao ponto de superar coletivamente seus dilemas, preconceitos e instintos
mais primitivos. Nosso mindset não
corresponde às aspirações que, às vezes, nos impomos uns sobre os outros. Na
realidade, os meios para se controlar as massas nunca foram tão preocupantes e eficientes,
como se pode perceber nas tecnologias de reconhecimento facial, de vigilância
cibernética, de repressão policial, de rastreamento por satélite etc. Em nome
de uma difusa noção de segurança nacional, bilhões de pessoas tornaram-se —
contra a sua vontade — ratos de laboratório num experimento que nenhum indivíduo
isolado tem total controle. Este, é um sistema altamente complexo, cuja plena compreensão
ainda levará anos para ser alcançada. De fato, rebelar-se contra essa realidade
é cada vez mais difícil. Ao contrário do que muitos advogam, a solução dos
nossos problemas não virá da tecnologia, das novas revoluções industriais… Na
realidade, tal como vimos em épocas passadas, a tecnologia é absolutamente
capaz de agravar ainda mais o sofrimento coletivo.
Curiosamente, ao invés de
fomentar a rebelião, tal conjuntura sociopolítica terminou por favorecer o
comportamento de manada no ser humano. Nunca fomos tão acomodados e manipulados
quanto agora. Pois, cada um renunciou ao dever da busca pela mudança, do
questionamento, da procura por um mundo melhor, do embate contra os poderosos….
Não há mais revolucionários, tampouco líderes que inspirem os melhores anseios
da humanidade. Sobram arrivistas de respostas rápidas, oportunistas com frases
de efeito, cafajestes de apelo popular com suas simplificações mentirosas e grosseiras;
todos estão à procura de espaço no noticiário, visualizações na internet etc. Ao
mesmo tempo, desde que o comunismo soviético entrou em colapso, acentuou-se nas
gerações mais novas um distanciamento em relação à política partidária e convencional,
de modo a produzir uma verdadeira pulverização dos tradicionais movimentos de
massas. Onde estão os movimentos estudantis? Onde estão os sindicatos? Onde
está a força dos intelectuais e artistas? Onde estão os partidos populares? Tal
vácuo foi preenchido por tecnocratas, demagogos e gângsteres da pior qualidade;
todos plutocratas e antipopulares com visíveis tendências antidemocráticas. Portanto,
torna-se necessário que o povo traga a política novamente ao seu dia a dia,
debatendo, às claras, o nosso futuro enquanto sociedade. E, mesmo assim, este
será só o primeiro passo de um processo que se estenderá por décadas à nossa
frente.
Entretanto, cada vez mais,
as pessoas se acomodam à própria servidão. Com efeito, a postura heroica de sair
à procura de respostas para perguntas tão gritantes, não é habitual em nossa
sociedade. Na realidade, isso não só é visto como algo demasiadamente excêntrico,
como também é muito exigente e, ao menos em nossa cultura de entretenimento,
pouco apelativo. É mais aceitável cair de cabeça num hedonismo imaturo e infrutífero,
além de variados hobbies e
entretenimento fútil. Parece que abandonamos o heroísmo dos míticos guerreiros
que enfrentavam feras mitológicas, salvavam donzelas e superavam barreiras
instransponíveis para os mortais; excetuando-se os filmes de super-heróis, os mitos
antigos já não parecem inspirar em nós o mesmo que ocorrera com gregos da
Antiguidade.
Sem heroísmo, orientação
ou sentido para a vida, o ser humano torna-se vulnerável a todo tipo de doença
mental. De fato, é de conhecimento geral que estamos passando por uma pandemia ainda
pouco noticiada pela mídia: a da depressão. Indo muito além de aspectos como nacionalidade,
raça, religião, gênero, idade, preferência política e condição social, a
depressão aprisiona pessoas nas mais variadas circunstâncias e eventualidades.
É claro que não há respostas fáceis para um problema dessa envergadura, porém
não há como dissociar esta realidade do contexto socioeconômico ao qual estamos
atrelados. O aumento das psicopatologias são, em parte, uma consequência da
precarização da vida nas grandes metrópoles contemporâneas. À medida que
assumimos o comportamento de um multitasking/workaholic,
vamos nos imergindo num caminho que só poderá terminar em profunda perturbação
mental, pois não somos capazes de atender demandas tão altas pelo tempo que se
requer. Somos limitados, frágeis e precisamos frear o corpo e a mente de tempos
em tempos para manter um certo nível de bem-estar psicossocial.
(Tal como um subproduto
do Ocidente católico, consequência trágica da expansão dos impérios ibéricos, a
América Latina mantém-se como mera receptora tardia de tendências eurocêntricas.
Ainda que caminhemos para um século asiático, cujo protagonismo, pela primeira
vez em séculos, dar-se-á no Extremo Oriente, mantemo-nos apegados à opinião dos
velhos senhores, renegando, de maneira inegavelmente tola, a nossa vocação para
a união continental. Deixamos de inovar, tememos imaginar novos mundos, renunciamos
ao desafio de contestar os ditames repassados pelos nossos colonizadores. Aliás,
após décadas de governos pretensamente democráticos e liberais, estamos,
vagarosamente, nos dando conta de que não basta o direito de votar em quem
quiser, é preciso uma verdadeira e profunda democratização do poder, da renda,
do conhecimento, da terra, da cidade, da mídia, da tecnologia etc. Isso não se
dará sem luta nas ruas, sem uma vanguarda política que assuma o protagonismo
próprio de quem se vê imbuído do dever da mudança. Entretanto, em nosso
horizonte imediato, tudo se resume a quem preferimos colocar na cadeira
presidencial. Nada poderia ser mais tragicômico.)
Não
resta dúvidas de que grande parte das pessoas só passa a questionar a realidade
após uma experiência traumática, tal como uma catástrofe, a morte de alguém
querido ou um acidente violento. Caso tudo se mantenha em perfeito estado, o ser
humano da nossa época segue sua vida ordinária como mais uma engrenagem da sociedade
moderna, movendo-se bovinamente em direção ao matadouro. Há pessoas que chegariam
a defender a estabilidade desse “sistema”, sua sobrevida vegetativa, em firme oposição
aos que pregassem uma superação dessa realidade que nos oprime e fustiga, pois
sua parca sobrevivência depende da permanência de tudo como está. Isso não é
novidade. A história humana está repleta desses conflitos maniqueístas.
De fato, em nossa
sociedade, quem descumpre a regra de caminhar junto à turba de iludidos é, de
modo geral, acusado de insanidade e, por vezes, visto como ameaça ao “sistema”
que nos governa — quem nunca foi acusado de esquisitão por seus pares,
simplesmente, por não seguir o rebanho nos mesmos gostos e costumes? Contudo, nem
sempre a realidade se apresentou dessa forma torpe. Na verdade, ainda há uma
tradição, em certas regiões da Ásia, de homens que deixam tudo para trás e
partem em busca duma sabedoria que escapa ao senso-comum. Ainda é comum
encontrar ascetas, místicos, sábios e errantes na Índia e em outras regiões do
continente asiático.
Entretanto, à medida que
a Internet abre suas portas aos mais variados setores da sociedade humana,
torna-se claro que o entretenimento rasteiro e barato é a verdadeira aspiração
das massas digitais. A despeito de haver uma infinidade de opções de consumo —
algumas genuinamente reflexivas e complexas —, tudo se resume a um conteúdo
absolutamente vazio, simplista e mercadológico, feito para ser “a sensação do
momento”, “o hit do verão” e nada
mais que isso. Cada vez mais, tem se tornado difícil encontrar pessoas que
tenham alguma familiaridade com o cânone da Literatura Brasileira, os clássicos
da Música Popular Brasileira e assim por diante. E, mesmo que o ensino público
tenha se universalizado no Brasil, a qualidade da Educação pública nunca foi
tão baixa.
Não tenho dúvidas de que
vivemos um processo de emburrecimento em massa — quase tão grave quanto o
cenário retratado no filme Idiocracy
(2006). Os sinais da catástrofe estão por todo lado. Para tanto, basta
mencionar o negacionismo científico e o anti-intelectualismo, o movimento
antivacina, o ressurgimento da extrema-direita, a proliferação de fake news e as redes sociais como único meio
de socialização coletiva, a incapacidade de se lidar com a mudança climática, a
incontrolável extinção de espécies, as crises financeiras, o fortalecimento do
tráfico de drogas etc. Não há como ignorar o fato de que vivemos uma época de
decadência estrutural da nossa sociedade.
Os budistas, por sua vez,
testificam que vivemos um tempo de degenerescência, o que tornaria ainda mais
desafiador alcançar um entendimento mínimo do Dharma. Atravessamos uma era de obscurecimento daquilo que os
seguidores do Buda chamam de “a natureza mais profunda da realidade”,
dificultando a prática diária de libertação dos condicionamentos aos quais
estamos presos. Para eles, o Samsara
simplesmente não tem concerto. Deve-se deixar de lado a esperança de que “tudo
termine bem”. Afinal, foi a compreensão de que todos os seres estão condenados
ao envelhecimento, à doença e à morte, que fez Sidarta Gautama sair em busca de
uma resposta ao sofrimento inerente a tudo que nos rodeia.
Devo dizer que isso me traz
um certo conforto, haja vista que me poupa de labutar por uma sociedade em que
todos sejam plenamente felizes. Isso simplesmente não vai acontecer — o que não
quer dizer que a luta por uma sociedade mais justa seja desnecessária, apenas
não se alimenta a expectativa de que a mudança trará o antídoto para os nossos
males.
Diante disso, o que deveríamos
esperar? Eu não espero nada.
Daniel Viana
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