Quando mais um ano se
encerra, algo nosso acaba deixado para trás; são dezenas e dezenas de alvoradas
e noitadas que acabam pela estrada do rotineiro, do nosso mundinho habitual,
que construímos, seja por vontade própria, seja às cegas, até chegarmos aqui e
nos dispormos a dar uma olhada rápida para a estrada que se encerra. Afinal, de
uma forma ou de outra, essa estrada se esgotará. Nada em nosso mundo foi feito
para ser eterno, a menos que você confie na existência de Deus.
Neste
texto, apresentarei alguns encontros, ansiosamente, aguardados desde o início
de 2023, bem como aquelas surpresas que nos dão um sabor diferenciado para cada
dia que experimentamos viver de verdade — aqueles lapsos de deslumbramento em
meio à vida repetitiva e sem graça do ser humano contemporâneo. Afinal, somos
todos marcados pela incógnita do evento inesperado, por aquilo que nos alcança
de súbito e que mal sabemos explicar direito o seu porquê em nossas jornadas.
Sem dúvidas, alguns dos melhores encontros literários que tive me pegaram de
surpresa, como um espectro que ronda a margem dos canais fétidos, coberto de um
negrume impenetrável e apavorante.
Em
geral, quando um ano se inicia, eu não planejo os livros que tentarei ler. Ao
contrário, busco, ao máximo, ser guiado pelo instinto pessoal, pela bússola da minha
própria alma. Sei bem que toda essa subjetividade é, no que diz respeito à minha
formação, uma escolha problemática. Pois, um ficcionista deve ler ficção até
onde sua obstinação puder leva-lo, até onde as pestanas forem capazes de se
manterem de pé, e, tendo em vista que o nosso tempo é limitado, passar os dias
lendo dezenas de ensaios marxista-leninistas é contraproducente. Em suma, há
muita Literatura à espera da nossa atenção, muitos autores e autoras de
elevadíssimo calibre que nos exigem um estudo atento e demorado.
De
fato, sei que li menos que o minimamente necessário. Logo, devo reconhecer que,
nesse momento, encontro-me numa posição de momentânea derrota, tendo em vista
que, há alguns anos, eu me apresento como artista das letras, alguém que a posteriori se confirmará como autor de
inovações — reconhecidas ou não —no campo da escrita ficcional em Língua
Portuguesa. Pois, para se concretizar um êxito dessa envergadura, há que se
esforçar com disposição hercúlea ao longo de dezenas de anos, com a diligência
de um Sísifo dos trópicos, sem temer contemplar a pedra despencar ladeira
abaixo mais uma vez.
Enfim,
cinquenta livros lidos por ano — tendo em vista tudo que ficará de fora — é uma
meta razoável para quem se dedica profissionalmente à Literatura. Aliás, para
um ficcionista, ler cinquenta livros de ficção é ótimo, mas ele também deve
investigar outros materiais que enriqueçam seu estilo e cosmovisão, como
biografias, teoria literária e história, o que complica sua rotina ainda mais. Somos
limitados por inúmeras obrigações e defeitos, como a falta de atenção necessária
para concluir a leitura de um calhamaço mastodôntico, que, curiosamente, sempre
nos deixam uma saudade danada. Por fim, alguns dizem que não é a quantidade de
livros lidos que realmente importa, mas a qualidade daquilo que se lê e de como
se lê. Mas não entrarei nessa discussão agora.
Não
duvido que a falta de sistematização na leitura tenha consequências negativas
para a formação do aspirante à ficcionista. Entretanto, até hoje, eu pude ser
abrangente sem me perder por completo nas brumas dessa vida solitária. E olhe
que nunca foi tão fácil se desorientar no mar tempestuoso da internet, agitado
dia e noite por futilidades e esquisitices, absolutamente, dispensáveis e
esquecíveis. Hoje, somos todos convidados a desperdiçar nosso tempo com as mais
estultas banalidades concebíveis, e nunca foi tão árduo desenvolver a atenção
plena naquilo que se está a fazer. Ainda assim, ao concluir uma leitura, tenho
me permitido sair um pouco pra fora da curva nas escolhas dos livros. Como
disse antes, um escritor precisa abrir asas o máximo que puder.
Pois,
todo escritor precisa manter viva sua curiosidade: uma espécie de voracidade pelo
que ainda não lhe veio, como se, dessa novidade, brotasse o poder de abrir
portas inatingíveis por outros meios, isto é, uma compreensão maior daquilo que
antes era entendido por uma perspectiva estreita, típica de um principiante nos
meandros literários. Com efeito, ao nos dispormos a receber a vida em sua
totalidade, terminaremos atingidos por todos os lados, por todos os ângulos e
particularidades visíveis e invisíveis, até acabarmos nos tornando o que somos
hoje, de tal maneira que construímo-nos a partir do que lemos, ouvimos e
saboreamos. A princípio, podemos duvidá-lo, mas o tempo e a vivência do
cotidiano se encarregará de nos mostrar o indisfarçável peso das nossas
escolhas literárias. Em certos casos, a própria escolha de não ler absolutamente
nada, trará à tona, da pior maneira possível, os resultados dessa infeliz
decisão.
Eis,
então, a lista dos livros lidos por mim em 2023:
1.
Crônicas
Escolhidas, Machado de Assis (Penguim-Companhia);
2. Van
Gogh - A vida, Steven Naifeh
e Gregory White Smith (Companhia das Letras);
3.
As
flores das flores do mal, Guilherme de Almeida e Charles
Baudelaire (Editora 34);
4.
A
tradução como manipulação, Cyril Aslanov (Perspectiva);
5.
A personagem
de ficção, Antônio Candido, Anatol Rosenfeld, Décio de Almeida
Prado, Paulo Emílio Salles Gomes (Perspectiva);
6.
O
pássaro secreto, Marilia Arnaud (Editora José Olympio);
7.
Cândido,
Voltaire (Antofágica);
8.
Novo
mundo nos trópicos, Gilberto Freyre (2ª Edição - Universidade);
9.
Guia
do estilo de vida do Boddhisatva, Shantideva (Tharpa);
10. Tesouros do Pico do Junípero – Padmasambhava
(Lúcida Letra);
11. Formação social da mente, L. S. Vygotsky (Martins Fontes);
12. A segunda Guerra Fria,
Moniz Bandeira (Civilização brasileira);
13. As últimas testemunhas, Svetlana
Aleksiévitch (Companhia das Letras);
14. Vozes de Chernobyl, Svetlana
Aleksiévitch (Companhia das Letras);
Daniel Viana de Sousa
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