sábado, 27 de abril de 2024

Egos frágeis se queimam rápido


Nas últimas semanas, a crise política e militar no Oriente Médio adquiriu proporções alarmantes. Há quem afirme que, se nada for feito através dos meios diplomáticos diretos e indiretos, teremos uma conflagração entre Irã e Israel, algo que, a depender de sua extensão e gravidade, agravará ainda mais o desmoronamento da ordem mundial do pós-guerra, mudando para sempre a geopolítica do século em que vivemos.

O acirramento do conflito histórico entre israelenses e iranianos — sem contar, é claro, a matança em Gaza — entrou não somente em nosso repertório cotidiano, mas também no nosso espírito e até na nossa própria psique. Graças aos smartphones, nunca foi tão simples ter contato imediato com cenas de horror absoluto: seres desmembrados, escombros de uma vila, famílias soterradas, crianças às portas da morte… Imagens, palavras e sons que, se vistas ou ouvidas pela primeira vez, fazem o inferno se assemelhar a um parque de diversões. Logo, é natural que milhões de usuários tomem a iniciativa de falar o que pensam sobre algo tão incessante e perturbador.

Na realidade, em tempos de conexão acessível, quase todos se sentem aptos a dar sua “análise” acerca dos temas mais polêmicos. Para esses militantes aguerridos e inflamados, não basta absorver informação: é necessário vir a público para expor o que crê ser certo e justo; pois, caso não o faça, terminará perdendo a oportunidade de tornar o mundo em que vivemos “um lugar melhor”. Para eles, o ativismo virtual é um meio de deixar sua marca e de se apresentar no palco como um protagonista da própria história, isto é, adquirir notoriedade. Eles teriam rompido a venda que cobria seus olhos e, portanto, estariam obrigados a libertar o restante da espécie humana, vítima de uma manipulação em escala planetária, como num gesto de gratidão a um deus libertador ou a uma ideologia messiânica. De certa forma, isso lhes proporciona tesão pela vida, uma preciosa chama interior, haja vista a sensação insuportável que cerca a existência medíocre e frustrante da maioria das pessoas. Creio que seria injusto negar-lhes o pouco prazer que ainda sentem por estarem vivos.

Ora, tamanho fervor missionário revela não apenas o conteúdo raso da maior parte das pessoas, mas também os preconceitos de um proselitismo sem eira nem beira, desprovido de estudo, reflexão e, principalmente, autonomia crítica, isto é, tentar pensar com a própria cabeça. Se, em épocas passadas, as baboseiras do sujeito ordinário morriam na poltrona de casa ou na mesa de um bar, agora vemos elas alçarem status de análise crítica para uma parcela cada vez maior da opinião pública. Nesse mundo em que vivemos, qualquer falcatrua circense pode apresentar-se como “ciência” ou “veracidade”.

Neste blog, eu me arrisco até onde meu tempo me permite e até onde meu saber alcança. Afinal de contas, é absolutamente normal que surja alguém com uma visão mais acurada, uma sensibilidade que ainda nos falta florescer, uma compreensão que merece destacar-se na vastidão torrencial do universo virtual — quem se dispõe a dar a cara a tapa precisa aprender a lidar com isso; egos frágeis se queimam rápido como palha seca. Pare e tente imaginar, por exemplo, as centenas de milhões de usuários comentando, incessantemente, a guerra entre Rússia e Ucrânia, o massacre em Gaza, os mísseis lançados pelo Irã contra Israel… Pense nas filmagens que circulam em diversas línguas que mal sabemos pronunciar neste lado obscuro do Atlântico.

É ingênuo crer que estamos a par de tudo que acontecesse mundo afora, porque a maior parte do que nos chega é averiguado e repassado por agências de notícias internacionais ocidentais, as quais, certamente, têm seus interesses em primeiro lugar. Na realidade, mesmo com o advento de algumas iniciativas de jornalismo independente, temos pouquíssimos correspondentes internacionais com alguma autonomia, relevância e audiência de massas. Além disso, somos brutalmente influenciados pela perspectiva estadunidense dos fatos que afetam as relações interestatais, de tal maneira que a cobertura internacional das empresas de comunicação brasileiras é irrisória e colonizada.

É bom lembrar que a nossa querida Língua Portuguesa é uma selvagem flor às margens do mundo, não só no que concerne às mídias de papel, mas também às comunicações digitais. Embora sejamos um povo profundamente viciado em redes sociais, mantendo-se conectado à internet mais tempo que os japoneses, quase tudo que produzimos ainda é solenemente ignorado pelo resto do Ocidente, enquanto que os mangas e animes fazem sucesso mundo afora. Mesmo em países onde os cidadãos comuns são refratários a qualquer conteúdo estrangeiro, como os Estados Unidos, a cultura nipônica deixa sua marca no comportamento da juventude, na culinária, no vestuário, nas artes visuais… É impressionante ver a quantidade de jovens e adultos que ainda se vestem como personagens de animes japoneses em todo mundo! Para esses rapazes e moças, pouco importa a “estranheza” de um idioma asiático, geralmente visto como exótico e complicado. Na realidade, conheço muitos que se dispuseram, por puro encantamento, aprender essa língua, mergulhando na cultura desse povo tão distante e misterioso, mesmo que isso não lhes trouxesse nenhum benefício prático. Portanto, falar que, por conta de seu imperialismo, somente a cultura estadunidense seria capaz de moldar o imaginário do sujeito contemporâneo, é, no mínimo, impreciso. Por pior que seja admiti-lo, o fato é que outras nações sabem fazê-lo sem mísseis, espionagem ou golpes de estado. Aqui, termino esta breve digressão.

De fato, a maior parte do que é lançado na internet, dos memes até a produção científica mais avançada, está em inglês, ou seja, quem não sabe ao menos ler esse idioma está automaticamente defasado em relação aos seus pares bilíngues. Para os profissionais que lidam com ciência de ponta e comunicação, esperar que se traduza tudo para o português é equivalente a um suicídio intelectual. Infelizmente, a despeito da beleza da nossa língua, ela está num universo à parte da sua parentela ocidental. Eu diria que, hoje, para o “cidadão do mundo”, aprender os rudimentos do inglês é quase tão imprescindível quanto a sua língua nativa, e isso se manterá inalterado pelas próximas décadas. Não esperem que o mandarim consiga ameaçar o protagonismo do inglês a nível global, ainda que o povo chinês consiga a proeza de se tornar a maior economia do mundo nesta década.

Esse atraso nacional — consequência direta da nossa condição periférica — está diretamente relacionado ao tema deste ensaio.

Em geral, quando se trata de algum tema espinhoso, evito escrever e tornar público os meus textos no instante em que os fatos se desenrolam. Meus desafetos podem me acusar de ter medo ou qualquer coisa do gênero, porém o fato é que nunca foi tão complexo e arriscado compreender em profundidade e comentar com segurança a respeito dos fatos que incendeiam as discussões hoje em dia. Carecemos de bons intérpretes e de fontes fidedignas; enquanto que surgem, por toda parte, pessoas sinceramente dispostas a manipular a opinião pública ao seu bel-prazer, visando o trágico triunfo de sua agenda política, em detrimento de uma ínfima coerência pessoal.

Ser cético tem sido cada vez mais necessário, especialmente, se você não se acomoda a uma manada tangida pelas forças dominantes do capital e do establishment. Fuja das formulações rasteiras, das respostas rápidas e reducionistas, pois não há quase nada em nosso mundo que possa ser explicado em um tweet. Fazer generalizações às pressas, tendo por base um achismo pretenso e vulgar, não é o mesmo que fazer ciência ou jornalismo; trata-se, na verdade, de um charlatanismo espetaculoso e sensacionalista, mais ansioso em capturar a atenção da audiência do que em fazer conteúdo de qualidade. Não se permita cair nessa armadilha. Para esses monopólios, você não passa de uma carcaça à espera de ser vampirizada.

Aliado a isso, há uma pressa patológica, no sujeito contemporâneo, em estar constantemente informado acerca de todos os temas em discussão. Violência urbana, escândalos da nossa politicagem, entretenimento imbecilizante, a rotina das celebridades… Seria muita generosidade classificar esse tipo de conteúdo como “distração” ou “divertimento”. Sua utilidade pública é comparável à risada de um defunto. Assim, levando em conta que esse comportamento assumiu uma escala planetária, só poderíamos estar envoltos numa baderna generalizada. O fenômeno das fake news é um exemplo disso.

Creio que um dos fatos mais emblemáticos seja o bombardeio ao hospital Al-Ahli, ocorrido em outubro do ano passado, na Faixa de Gaza. No momento em que as informações nos chegaram, os primeiros a serem acusados, é claro, foram as forças armadas israelenses; o invasor sempre ocupou o papel de vilão na história das guerras, a despeito de Israel ter sofrido um gravíssimo ataque terrorista poucas semanas antes. Os apoiadores da criação de um estado palestino, bem como o Hamas e a Jihad Islâmica, inflaram seus pulmões, pondo o dedo em riste na cara dos invasores sionistas. Contudo, passadas algumas horas, Israel acusou a Jihad Islâmica de ter atingido o dito hospital acidentalmente. Análises feitas por serviços de inteligência e órgãos estrangeiros concluíram que o míssil teria saído de dentro do próprio território palestino. Cada lado angariou seus partidários mais devotos, ao mesmo tempo em que os mais sensatos se puseram em alerta. Resta-nos as seguintes perguntas: quem detém a verdade? Devo confiar nas maquinações dos sionistas ou nos ardis de fanáticos e terroristas? Afinal, como alguém na minha posição saberia a verdade? Ah, é sempre confortável transferir aos outros a responsabilidade sobre o que acreditamos e defendemos.

Hoje, posso dizer com segurança que há temas que eu jamais opinarei, pois tenho ciência da minha limitação em oferecer algo mais relevante do que aquilo que fora dito por autoridades competentes. Por que eu precisaria, por exemplo, argumentar algo a respeito da condenação de Lula, se sei pouquíssimo sobre Direito? Deixo essa tarefa miserável aos juristas, especialistas com farta formação acadêmica, e tomo as minhas conclusões em particular. Isto não é só uma escolha sensata: ela é o certo a ser feito. Não tenho o menor interesse em conhecer as leis e aplicá-las de maneira justa, que o faça, então, os profissionais preparados para tanto. Negar ao especialista seu destaque, é o mesmo que cuspir em todo sistema de ensino, privilegiando o improviso e o amadorismo de quem nunca se esforçou em aprender coisa alguma. Qual o sentido em dar as costas aos intelectuais? Só uma sociedade composta por tolos e farsantes agiria dessa forma. Ouçamos, primeiramente, os que estudaram noites a fio, e não o amador arrivista. Fazendo isso, colocaremos em xeque a relevância das redes sociais para o debate público.

Por outro lado, eu não poderia negar a existência de mal-intencionados no meio acadêmico e científico. É fato que todo cesto tem suas maças podres. Ainda assim, o estrago causado pela ignorância das massas parece ser muito maior do que a de um único cientista desprovido de caráter. Dentre os seus muitos estragos, o louvor à estupidez desmotiva as crianças e jovens a buscarem o aprendizado necessário, único caminho viável para concluir sua integração à sociedade moderna. Os semianalfabetos encontrarão, caso tenham sorte, um trabalho mal remunerado, perigoso e subvalorizado, tirando dele quase nada para sobreviverem com dignidade, e não há, no horizonte próximo, nada que indique uma mudança nesse fracasso coletivo do povo brasileiro. Sim, por maiores que tenham sido os esforços de grupos organizados e de indivíduos abnegados, fracassamos, mais uma vez, em preparar nossas crianças e jovens para o novo mundo que emerge diante de nós. Portanto, não deveríamos nos surpreender que a escola seja alvo de tamanho desprezo pelo poder público e parte da nossa sociedade. Pois, como Darcy Ribeiro nos ensinou, a crise da educação no Brasil é, antes de tudo, um projeto.

Se eu pudesse resumir os últimos parágrafos em algumas linhas, eu diria que, se queremos compreender a realidade que nos rodeia, alcançando uma liberdade genuína, é preciso, antes de mais nada, sair da zona de conforto e sempre desconfiar daqueles que posam como detentores da única interpretação possível da nossa era. Os extremismos se nutrem daqueles que puseram de lado qualquer senso crítico. Não se habitue ao comodismo, pois ele lhe cobrará um preço mais adiante.

  

Daniel Viana de Sousa

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