Nas
últimas semanas, a crise política e militar no Oriente Médio adquiriu proporções
alarmantes. Há quem afirme que, se nada for feito através dos meios
diplomáticos diretos e indiretos, teremos uma conflagração entre Irã e Israel,
algo que, a depender de sua extensão e gravidade, agravará ainda mais o
desmoronamento da ordem mundial do pós-guerra, mudando para sempre a
geopolítica do século em que vivemos.
O
acirramento do conflito histórico entre israelenses e iranianos — sem contar, é
claro, a matança em Gaza — entrou não somente em nosso repertório cotidiano, mas
também no nosso espírito e até na nossa própria psique. Graças aos smartphones, nunca foi tão simples ter
contato imediato com cenas de horror absoluto: seres desmembrados, escombros de
uma vila, famílias soterradas, crianças às portas da morte… Imagens, palavras e
sons que, se vistas ou ouvidas pela primeira vez, fazem o inferno se assemelhar
a um parque de diversões. Logo, é natural que milhões de usuários tomem a
iniciativa de falar o que pensam sobre algo tão incessante e perturbador.
Na
realidade, em tempos de conexão acessível, quase todos se sentem aptos a dar sua
“análise” acerca dos temas mais polêmicos. Para esses militantes aguerridos e
inflamados, não basta absorver informação: é necessário vir a público para
expor o que crê ser certo e justo; pois, caso não o faça, terminará perdendo a oportunidade
de tornar o mundo em que vivemos “um lugar melhor”. Para eles, o ativismo
virtual é um meio de deixar sua marca e de se apresentar no palco como um
protagonista da própria história, isto é, adquirir notoriedade. Eles teriam
rompido a venda que cobria seus olhos e, portanto, estariam obrigados a
libertar o restante da espécie humana, vítima de uma manipulação em escala
planetária, como num gesto de gratidão a um deus libertador ou a uma ideologia
messiânica. De certa forma, isso lhes proporciona tesão pela vida, uma preciosa
chama interior, haja vista a sensação insuportável que cerca a existência
medíocre e frustrante da maioria das pessoas. Creio que seria injusto
negar-lhes o pouco prazer que ainda sentem por estarem vivos.
Ora,
tamanho fervor missionário revela não apenas o conteúdo raso da maior parte das
pessoas, mas também os preconceitos de um proselitismo sem eira nem beira,
desprovido de estudo, reflexão e, principalmente, autonomia crítica, isto é,
tentar pensar com a própria cabeça. Se, em épocas passadas, as baboseiras do
sujeito ordinário morriam na poltrona de casa ou na mesa de um bar, agora vemos
elas alçarem status de análise crítica
para uma parcela cada vez maior da opinião pública. Nesse mundo em que vivemos,
qualquer falcatrua circense pode apresentar-se como “ciência” ou “veracidade”.
Neste
blog, eu me arrisco até onde meu tempo
me permite e até onde meu saber alcança. Afinal de contas, é absolutamente normal
que surja alguém com uma visão mais acurada, uma sensibilidade que ainda nos
falta florescer, uma compreensão que merece destacar-se na vastidão torrencial
do universo virtual — quem se dispõe a dar a cara a tapa precisa aprender a
lidar com isso; egos frágeis se queimam rápido como palha seca. Pare e tente
imaginar, por exemplo, as centenas de milhões de usuários comentando,
incessantemente, a guerra entre Rússia e Ucrânia, o massacre em Gaza, os
mísseis lançados pelo Irã contra Israel… Pense nas filmagens que circulam em
diversas línguas que mal sabemos pronunciar neste lado obscuro do Atlântico.
É
ingênuo crer que estamos a par de tudo que acontecesse mundo afora, porque a
maior parte do que nos chega é averiguado e repassado por agências de notícias
internacionais ocidentais, as quais, certamente, têm seus interesses em
primeiro lugar. Na realidade, mesmo com o advento de algumas iniciativas de
jornalismo independente, temos pouquíssimos correspondentes internacionais com
alguma autonomia, relevância e audiência de massas. Além disso, somos
brutalmente influenciados pela perspectiva estadunidense dos fatos que afetam
as relações interestatais, de tal maneira que a cobertura internacional das
empresas de comunicação brasileiras é irrisória e colonizada.
É
bom lembrar que a nossa querida Língua Portuguesa é uma selvagem flor às
margens do mundo, não só no que concerne às mídias de papel, mas também às comunicações
digitais. Embora sejamos um povo profundamente viciado em redes sociais,
mantendo-se conectado à internet mais tempo que os japoneses, quase tudo que
produzimos ainda é solenemente ignorado pelo resto do Ocidente, enquanto que os
mangas e animes fazem sucesso mundo afora. Mesmo em países onde os cidadãos comuns
são refratários a qualquer conteúdo estrangeiro, como os Estados Unidos, a
cultura nipônica deixa sua marca no comportamento da juventude, na culinária, no
vestuário, nas artes visuais… É impressionante ver a quantidade de jovens e
adultos que ainda se vestem como personagens de animes japoneses em todo mundo!
Para esses rapazes e moças, pouco importa a “estranheza” de um idioma asiático,
geralmente visto como exótico e complicado. Na realidade, conheço muitos que se
dispuseram, por puro encantamento, aprender essa língua, mergulhando na cultura
desse povo tão distante e misterioso, mesmo que isso não lhes trouxesse nenhum
benefício prático. Portanto, falar que, por conta de seu imperialismo, somente
a cultura estadunidense seria capaz de moldar o imaginário do sujeito
contemporâneo, é, no mínimo, impreciso. Por pior que seja admiti-lo, o fato é
que outras nações sabem fazê-lo sem mísseis, espionagem ou golpes de estado.
Aqui, termino esta breve digressão.
De
fato, a maior parte do que é lançado na internet, dos memes até a produção
científica mais avançada, está em inglês, ou seja, quem não sabe ao menos ler
esse idioma está automaticamente defasado em relação aos seus pares bilíngues. Para
os profissionais que lidam com ciência de ponta e comunicação, esperar que se
traduza tudo para o português é equivalente a um suicídio intelectual. Infelizmente,
a despeito da beleza da nossa língua, ela está num universo à parte da sua parentela
ocidental. Eu diria que, hoje, para o “cidadão do mundo”, aprender os
rudimentos do inglês é quase tão imprescindível quanto a sua língua nativa, e
isso se manterá inalterado pelas próximas décadas. Não esperem que o mandarim consiga
ameaçar o protagonismo do inglês a nível global, ainda que o povo chinês
consiga a proeza de se tornar a maior economia do mundo nesta década.
Esse
atraso nacional — consequência direta da nossa condição periférica — está
diretamente relacionado ao tema deste ensaio.
Em
geral, quando se trata de algum tema espinhoso, evito escrever e tornar público
os meus textos no instante em que os fatos se desenrolam. Meus desafetos podem
me acusar de ter medo ou qualquer coisa do gênero, porém o fato é que nunca foi
tão complexo e arriscado compreender em profundidade e comentar com segurança a
respeito dos fatos que incendeiam as discussões hoje em dia. Carecemos de bons
intérpretes e de fontes fidedignas; enquanto que surgem, por toda parte,
pessoas sinceramente dispostas a manipular a opinião pública ao seu bel-prazer,
visando o trágico triunfo de sua agenda política, em detrimento de uma ínfima
coerência pessoal.
Ser
cético tem sido cada vez mais necessário, especialmente, se você não se acomoda
a uma manada tangida pelas forças dominantes do capital e do establishment. Fuja das formulações
rasteiras, das respostas rápidas e reducionistas, pois não há quase nada em
nosso mundo que possa ser explicado em um tweet.
Fazer generalizações às pressas, tendo por base um achismo pretenso e vulgar,
não é o mesmo que fazer ciência ou jornalismo; trata-se, na verdade, de um
charlatanismo espetaculoso e sensacionalista, mais ansioso em capturar a
atenção da audiência do que em fazer conteúdo de qualidade. Não se permita cair
nessa armadilha. Para esses monopólios, você não passa de uma carcaça à espera
de ser vampirizada.
Aliado
a isso, há uma pressa patológica, no sujeito contemporâneo, em estar
constantemente informado acerca de todos os temas em discussão. Violência
urbana, escândalos da nossa politicagem, entretenimento imbecilizante, a rotina
das celebridades… Seria muita generosidade classificar esse tipo de conteúdo
como “distração” ou “divertimento”. Sua utilidade pública é comparável à risada
de um defunto. Assim, levando em conta que esse comportamento assumiu uma escala
planetária, só poderíamos estar envoltos numa baderna generalizada. O fenômeno
das fake news é um exemplo disso.
Creio
que um dos fatos mais emblemáticos seja o bombardeio ao hospital Al-Ahli, ocorrido
em outubro do ano passado, na Faixa de Gaza. No momento em que as informações
nos chegaram, os primeiros a serem acusados, é claro, foram as forças armadas
israelenses; o invasor sempre ocupou o papel de vilão na história das guerras,
a despeito de Israel ter sofrido um gravíssimo ataque terrorista poucas semanas
antes. Os apoiadores da criação de um estado palestino, bem como o Hamas e a
Jihad Islâmica, inflaram seus pulmões, pondo o dedo em riste na cara dos
invasores sionistas. Contudo, passadas algumas horas, Israel acusou a Jihad
Islâmica de ter atingido o dito hospital acidentalmente. Análises feitas por serviços
de inteligência e órgãos estrangeiros concluíram que o míssil teria saído de
dentro do próprio território palestino. Cada lado angariou seus partidários mais
devotos, ao mesmo tempo em que os mais sensatos se puseram em alerta. Resta-nos
as seguintes perguntas: quem detém a verdade? Devo confiar nas maquinações dos
sionistas ou nos ardis de fanáticos e terroristas? Afinal, como alguém na minha
posição saberia a verdade? Ah, é sempre confortável transferir aos outros a
responsabilidade sobre o que acreditamos e defendemos.
Hoje,
posso dizer com segurança que há temas que eu jamais opinarei, pois tenho
ciência da minha limitação em oferecer algo mais relevante do que aquilo que
fora dito por autoridades competentes. Por que eu precisaria, por exemplo,
argumentar algo a respeito da condenação de Lula, se sei pouquíssimo sobre
Direito? Deixo essa tarefa miserável aos juristas, especialistas com farta
formação acadêmica, e tomo as minhas conclusões em particular. Isto não é só
uma escolha sensata: ela é o certo a ser feito. Não tenho o menor interesse em
conhecer as leis e aplicá-las de maneira justa, que o faça, então, os
profissionais preparados para tanto. Negar ao especialista seu destaque, é o
mesmo que cuspir em todo sistema de ensino, privilegiando o improviso e o
amadorismo de quem nunca se esforçou em aprender coisa alguma. Qual o sentido
em dar as costas aos intelectuais? Só uma sociedade composta por tolos e
farsantes agiria dessa forma. Ouçamos, primeiramente, os que estudaram noites a
fio, e não o amador arrivista. Fazendo isso, colocaremos em xeque a relevância das
redes sociais para o debate público.
Por
outro lado, eu não poderia negar a existência de mal-intencionados no meio
acadêmico e científico. É fato que todo cesto tem suas maças podres. Ainda
assim, o estrago causado pela ignorância das massas parece ser muito maior do
que a de um único cientista desprovido de caráter. Dentre os seus muitos
estragos, o louvor à estupidez desmotiva as crianças e jovens a buscarem o aprendizado
necessário, único caminho viável para concluir sua integração à sociedade
moderna. Os semianalfabetos encontrarão, caso tenham sorte, um trabalho mal
remunerado, perigoso e subvalorizado, tirando dele quase nada para sobreviverem
com dignidade, e não há, no horizonte próximo, nada que indique uma mudança
nesse fracasso coletivo do povo brasileiro. Sim, por maiores que tenham sido os
esforços de grupos organizados e de indivíduos abnegados, fracassamos, mais uma
vez, em preparar nossas crianças e jovens para o novo mundo que emerge diante
de nós. Portanto, não deveríamos nos surpreender que a escola seja alvo de
tamanho desprezo pelo poder público e parte da nossa sociedade. Pois, como
Darcy Ribeiro nos ensinou, a crise da educação no Brasil é, antes de tudo, um
projeto.
Se
eu pudesse resumir os últimos parágrafos em algumas linhas, eu diria que, se
queremos compreender a realidade que nos rodeia, alcançando uma liberdade
genuína, é preciso, antes de mais nada, sair da zona de conforto e sempre
desconfiar daqueles que posam como detentores da única interpretação possível
da nossa era. Os extremismos se nutrem daqueles que puseram de lado qualquer
senso crítico. Não se habitue ao comodismo, pois ele lhe cobrará um preço mais
adiante.
Daniel
Viana de Sousa
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