Após um
pontificado de mais de uma década, o Papa Francisco faleceu nesta segunda-feira
(21), exatamente no começo do tempo pascal, época de renascimento e esperança
para os cristãos do mundo inteiro. Para quem crê no Evangelho, a partida do
pontífice ocorreu num momento simbólico, verdadeiramente marcante para toda a
cristandade.
Poucos
líderes religiosos buscaram tanto o diálogo ecumênico, o entendimento entre
diferentes grupos religiosos, políticos, étnicos e sociais. Possivelmente, seu
ponto alto na diplomacia papal foi a costura da reaproximação, em 2015, entre
Cuba e Estados Unidos, adversários ferrenhos por mais de seis décadas, algo que
pegou de surpresa a maioria dos observadores da geopolítica — e que sofreu um
duro revés com a vitória, em 2016, de Donald Trump —; ainda na seara
sociopolítica, merece destaque a campanha em prol dos imigrantes, seus embates
com extrema-direita global, a ênfase na solidariedade para com os pobres e
marginalizados e a publicação da Laudato
Si, um dos documentos mais importantes sobre as mudanças climáticas já
feitos por um papa. Em suma, Francisco extrapolou não só os muros do Vaticano, mas
também as barreiras da intolerância e do dogmatismo, transformando-se numa das
figuras mais queridas e marcantes do século XXI. Entretanto, não pretendo fazer
aqui uma retrospectiva de sua trajetória, algo que já circula em profusão nos
portais de notícia do mundo inteiro.
É
improvável que vejamos outro papa tão progressista quanto Bergoglio, que
surpreendeu o mundo já na sua eleição, há doze anos, ao ser escolhido para
comandar a mais influente e longeva instituição do Ocidente. À época do
conclave que o elegeu, Francisco se tornaria o primeiro jesuíta e o primeiro
latino-americano a comandar a Santa Sé; fatos tão surpreendentes quanto a
renúncia de Bento XVI, algo que não era visto há mais de seiscentos anos, ainda
na Idade Média, quando Gregório XII (1406-1415) abriu mão de conduzir a barca
de S. Pedro. Às vésperas de renunciar, o papa alemão encontrava-se cercado por
crises que estremeceram seu pontificado: as revelações de documentos
ultrassecretos por Paolo Gabriele, seu mordomo; os escândalos financeiros do “Vatileaks”
e, mais gravemente, o envolvimento de diversos clérigos em denúncias de pedofilia.
Ainda assim, ao se justificar perante o público, Bento XVI afirmou que
renunciava por conta de problemas relacionados à sua saúde; ele viveria mais
nove anos no mosteiro Mater Ecclesiae,
incrustado no interior do Vaticano, fazendo aparições ao lado de familiares, amigos
e admiradores, inclusive do seu sucessor. Desse modo, a Igreja Católica
atravessaria um capítulo peculiar de sua milenar história: um papa emérito convivendo,
ao mesmo tempo, com outro recém empossado. Tal coexistência renderia bons
frutos, como a publicação, ainda em 2013, de uma encíclica com contribuições de
ambas as partes: a Lumen Fidei (Luz
da Fé).
Entretanto,
sempre se alimentaram boatos da existência de intrigas, decepções e
manipulações, que, finalmente, vieram à tona no livro “Nada mais que a verdade”, publicado pelo arcebispo Georg Gänswein,
secretário pessoal de Bento XVI. Dentre as várias acusações, Gänswein afirmou
que o argentino buscou isolar o papa emérito devido a divergências teológicas e
que Bento sentia-se vigiado por Bergoglio. Ao dar sua resposta, Francisco
expressou, numa entrevista a Javier Martínez, a seguinte declaração: “que no dia do funeral seja publicado um livro
que me deixa chateado, que conta coisas que não são verdade, é muito triste. É
claro que isso não me afeta no sentido de que não me condiciona. Mas me
machucou que Bento XVI tenha sido usado”. Certamente, aquilo que o público
sabe, não deve chegar nem perto do que, de fato, ocorreu na relação entre os
dois líderes e suas respectivas facções, forças antagônicas no seio da Igreja. Enquanto
que um era enaltecido como teólogo e catedrático brilhante, o outro detinha um
carisma capaz de incendiar multidões; enquanto que Ratzinger enfatizava o papel
da doutrina e da tradição, Bergoglio reforçava o perdão e a caridade, o
acolhimento aos mais diversos grupos sociais. Como é de praxe nas relações
humanas, ambos agradaram a uns, ao mesmo tempo em que desagradaram a outros. Um
destes inimigos, o arcebispo italiano Viganò, acusou Francisco de ser “herege”,
“tirano” e “servo de satanás”, bem como de acobertar casos de pedofilia, o que
lhe rendeu uma excomunhão logo em seguida.
Ora, desde
os seus primórdios, quando os Apóstolos ainda caminhavam entre judeus e
gentios, a Igreja Católica sempre foi uma instituição complexa, com conflitos
acalorados e dissensões amargas que chegaram a pôr em xeque sua própria
existência. Algumas destas disputas tornaram-se capítulos em livros de História,
tais como o Grande Cisma (1054), a Reforma Luterana (1517) e a Reforma
Anglicana (1534), movimentos religiosos que desembocariam em guerras
devastadoras, sendo a pior delas a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), que
arrasou a Europa como nunca se vira antes, forçando os monarcas europeus a
criarem meios políticos e diplomáticos que evitassem a sua repetição. Nasceria
daí a Paz de Vestefália, marco do Estado Moderno, assim como da gradativa tolerância
religiosa entre católicos e protestantes. As futuras guerras europeias não
teriam mais um caráter religioso. Ao contrário, com o passar dos séculos, a
influência do Cristianismo na geopolítica diminuiria pouco a pouco, culminando
na Revolução Francesa (1789), que lançaria as bases do Estado laico que temos
hoje. O tempo das Cruzadas e da Inquisição, enfim, começara a ser deixado para
trás, e a Europa iniciaria seu período mais áureo, que só se encerraria no
começo do século XX, com a deflagração da Primeira Guerra Mundial.
Felizmente,
vivemos uma época em que os cristãos não mais usam a religião como desculpa
para cruzar a fronteira e cortar as cabeças uns dos outros. De fato, se isso
ocorresse em 2025, ficaríamos horrorizados. Questionaríamos, de imediato, a
própria fé de quem o fizesse, lembrando a mensagem dada pelo Cristo há dois mil
anos atrás: amai-vos uns aos outros, assim como Eu vos amei (João 15:12). Decerto,
mesmo na relação com outras religiões, como o Judaísmo e o Islamismo, os pontífices
que sucederam o Concílio Vaticano II (1962-1965) têm optado pelo ecumenismo, e
não há sinais de que isso mude do dia para a noite. Pois, ao contrário de Donald
Trump, que lança ao fogo o esforço geoestratégico dos seus antecessores, os papas
não são afeitos a cisões egocêntricas e desmesuradas. No Catolicismo, as
rupturas são raríssimas e, do ponto de vista doutrinário, praticamente
inexistentes. Prefere-se, ao invés disso, um movimento pendular, uma valsa de
muitas décadas, que, na visão dos modernistas mais afoitos, é puro imobilismo.
À primeira vista, a Igreja de Roma nos parece congelada no tempo, como uma
relíquia de museu. No entanto, ela rumina as mudanças em seu interior, mastigando,
no seu próprio ritmo, as ideias que lhe batem à porta. Para a Modernidade, tudo
isso parece antiquado e estranho, porém a Igreja Católica não é uma instituição
moderna; se o fosse, talvez já tivesse se partido em múltiplas dissensões, tal como
ocorre, quase todos os anos, com outras denominações pentecostais.
De S. João
XXIII e S. Paulo VI, responsáveis por presidir o último Concílio, até S. João
Paulo II, Bento XVI e Francisco, podem-se notar linhas de continuidade, a
despeito das grandes transformações sociais, econômicas, culturais e políticas,
dos sessenta e sete anos que nos separam da eleição, em 1958, de S. João XXIII,
o grande reformista do século passado. Essa é uma das razões que fizeram a
Igreja Católica ser o que é hoje: não seguir o ritmo que o mundo lhe pede, mas
o seu próprio caminhar, por mais vagaroso que nos pareça.
A questão
que desafia o futuro Conclave não é mais o conflito do catolicismo com o mundo
à sua volta, pois este simplesmente o ignora, trata-o com fria indiferença; há
décadas que o sujeito moderno deu as costas ao Cristianismo, especialmente na
Europa, que já fora seu bastião mais seguro. Hoje, o catolicismo precisa tratar
suas feridas internas, conciliar-se consigo mesmo, para, em seguida, ir ao
encontro do rebanho desgarrado. Pois ninguém se abriga numa casa prestes a desabar;
ninguém se salva numa barca prestes a afundar. Necessitamos de reformas
profundas, de uma santa ousadia, mas
também de um diálogo fraterno com grupos conservadores. Excetuando-se figuras paspalhas
como Viganò, há setores à direita com os quais o futuro papa precisará
entender-se, caso queira aprofundar as mudanças gestadas por Bergoglio. Por
enquanto, não parece haver espaço para uma guinada à direita. Ao menos essa foi
a mensagem transmitida, nesta terça-feira (22), por Dom Jaime Spengler, um dos
sete cardeais brasileiros que participarão do Conclave. “A maioria do colégio
cardinalício foi criado pelo próprio Papa Francisco. Eu creio, ou melhor,
imagino que um retrocesso nesse caminho realizado até aqui é impensável”, disse
o arcebispo de Porto Alegre.
Ao mesmo
tempo, há vozes que pedem um papa mais moderado, de centro-direita, que esteja
em sintonia com setores preteridos nos últimos doze anos.
Dentre os
135 cardeais aptos a votar, Francisco nomeou 108, de modo que a sua influência,
certamente, se fará presente na Capela Sistina. Graças a Bergoglio, o atual
Colégio de Cardeais nunca teve tantos representantes da periferia global, como,
por exemplo, Giorgio Marengo (Mongólia), Virgílio da Silva (Timor-Leste), John
Ribat (Papua-Nova Guiné) e Dominique Mathieu (Irã), que, embora não estejam na
lista dos cotados para comandar a Igreja, integrarão a leva de prelados que
poderão escolher o próximo Vigário de Cristo. Para tanto, tais grupos precisarão
agir em unidade, algo que é mais difícil do que parece, haja vista a pouca
familiaridade e o peso de grupos de considerável influência, como os cardeais norte-americanos,
conhecidos pelo seu viés conservador, dos quais o mais notório é o cardeal
Burke, famoso por opor-se a Francisco ao longo de todo o seu pontificado. Se os
jovens cardeais se fragmentarem, seja por inexperiência ou vaidade, os setores
conservadores terão a chance que precisam para eleger um possível contestador
das reformas de Francisco.
Na história
da Igreja, não é incomum que haja dificuldade em achar nomes que traduzam uma
consensualidade. No passado medieval, houve conclaves que chegaram a se
estender por anos a fio, com repetidas votações frustradas, até que fosse feita
a escolha de um perfil que agradasse um número mínimo de prelados votantes, de
modo que, até aqui, ninguém sabe qual será o desfecho do Conclave que avistamos
à nossa frente. No momento, temos apenas perguntas em aberto: haverá um Francisco
II? a ascensão da extrema-direita global determinará a escolha do próximo papa?
a Igreja, enfim, escolherá seu primeiro pontífice asiático, em resposta à
ascensão da China comunista, tal como Karol Wojtyla foi uma resposta à União
Soviética?
Há quem
diga que o Conclave é a eleição mais obscura do mundo. Pois, a despeito dos
inúmeros livros e filmes escritos a respeito, as disputas nos corredores do
Vaticano sempre foram nebulosas e inacessíveis à maioria dos interessados. Mesmo
os conclaves do passado ainda são envoltos por especulações e mistérios. O
próprio Bergoglio não chegara a ser cotado entre os papáveis que ocupavam a
manchete dos principais jornais vaticanistas, confirmando o célebre ditado
italiano "chi entra papa al
conclave, ne esce cardinale”, que poderia ser traduzido para “quem entra no
conclave como papa, sai como cardeal”.
O que
podemos nos assegurar é de que este ano — tal como ocorrera em 2005 e 2013 — será
decisivo para o futuro do Catolicismo, bem como para o mundo inteiro.
Daniel
Viana de Sousa
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