quinta-feira, 31 de julho de 2025

A causa nacional

 

      Mais uma vez, somos confrontados por uma polêmica que, de tempos em tempos, volta a inflamar o debate público. Esse é um tema que nunca perde a capacidade de nos capturar, seduzindo-nos com seu apelo ao sentido mais profundo de quem somos aqui e agora, nesse espaço que compartilhamos uns com os outros. Trata-se da causa nacional, revivida pela interferência da maior potência da nossa época, os Estados Unidos da América (EUA), em relação à soberania brasileira.

Assim que se sentiram as garras do falcão sobre a nossa consciência amedrontada, vozes se enfileiraram diante do púlpito e punhos se ergueram em tom de indignação. Lembramo-nos que ainda somos comida servida à mesa de quem pode se servir da nossa amada terra — tão singela e acolhedora com os que nos visitam —, a despeito de cedermos ou não a tal condição. No momento em que escrevo, instauram-se debates ferrenhos mesmo nos sujeitos mais indiferentes ao cotidiano da política, aqueles que se habituaram a dar de ombros para os temas comezinhos de Brasília, pois, quando se mancha o orgulho da nação, sentimos que alguém próximo foi ferido em combate. Erguem-se de imediato as falanges patrióticas, os defensores da camisa canarinho, munidos com seus insuportáveis cânticos futebolísticos. Nacionalismo e soberania, enfim, voltaram à baila.

No entanto, sei bem que caminho por um terreno sinuoso. Muitos se apressarão em dizer que o nacionalismo inspirou crimes imperdoáveis; outros afirmarão que se trata de uma ideologia burguesa, feita para dividir e dominar o proletariado internacional; por fim, haverá quem reclame de que toda essa discussão é excessivamente démodée, pois estaríamos todos em um “mundo sem fronteiras”, uma única “aldeia global”. Vá com calma, camarada! Minha intenção não é aliciar militantes para uma causa ou soldados para uma guerra. Por ora, vamos nos ater aos fatos do noticiário.

O presidente estadunidense, Donald Trump, ameaça o funcionamento do Judiciário brasileiro, em especial a atuação do ministro Alexandre de Moraes, responsável por investigar os ataques golpistas do 8 de Janeiro, bem como os dois principais nomes da família Bolsonaro: Jair Bolsonaro e seu filho Eduardo. Com seu notório estilo impulsivo, Trump quer forçar o Supremo Tribunal Federal (STF) a conceder uma anistia aos seus aliados ideológicos no Brasil, tendo por base uma suposta caça às bruxas liderada pelos membros do mesmo tribunal. Há quem especule, com boas razões, que as semelhanças entre os ataques golpistas ocorridos na Praça dos Três Poderes e aqueles ocorridos, dois anos antes, na invasão ao Capitólio, deram mais razões para que o presidente norte-americano se dispusesse a socorrer Bolsonaro.

De fato, Darren Beattie, secretário da gestão Trump, declarou (24/07) que Alexandre de Moraes “é o coração pulsante do complexo de perseguição e censura contra Jair Bolsonaro”, de modo que a ofensiva trumpista segue se agravando a cada dia que passa. O Secretário de Estado dos EUA, Marco Rubio, anunciou a revogação do visto de Alexandre de Moraes e seus familiares. Tal medida foi uma resposta à imposição do ministro para que o ex-presidente usasse tornozeleira eletrônica, algo que o próprio Bolsonaro classificou, diante das câmeras que o filmavam, como “suprema humilhação”. Além disso, foram punidos outros sete ministros do STF, bem como o Procurador-Geral da República, Paulo Gonet, e seus familiares. Trata-se, sem dúvidas, de algo inédito na história entre os dois países, cuja relação bicentenária é marcada por golpes e alianças, crises e afagos, desconfiança e submissão. Se, por um lado, os EUA foram um dos primeiros países a reconhecer a Independência do Brasil, por outro lado, esse mesmo país chancelou o golpe de 1964 e a ditadura que se formaria a partir dele, momento mais crítico da nossa história no século passado.

Até o momento em que escrevo esse texto — estou nos últimos dias de julho —, não há sinais de que Trump queira recuar das suas investidas contra a economia das terras de cá. Ao contrário, alguns antecipam que o republicano possa aprofundar seus ataques no que diz respeito às tarifas impostas contra os produtos brasileiros, golpeando, em especial, o agronegócio, tido como um dos pilares fundamentais da estrutura econômica brasileira e do próprio movimento bolsonarista. Assim, se nada for feito, milhares de empregos serão perdidos e empresas quebrarão, de tal maneira que a economia pode mergulhar numa espiral cataclísmica, cuja consequência a médio e longo prazo ainda é incerta. Enquanto isso, o próprio Eduardo Bolsonaro declarou que não temeria um cenário de “terra arrasada [no Brasil]”, desde que se sentisse “vingado”. Com essa afirmação abjeta, o clã Bolsonaro comprova que seu pretenso amor à pátria não se equivale ao “amor familiar”, ou seja, nada importa mais que o seu instinto de sobrevivência, mesmo que todos afundemos por isso. Poucas vezes se viu tamanho servilismo por parte de uma liderança brasileira em terras estrangeiras.

Diante disso, alguns se apressam em assumir que os ataques à nossa soberania são “uma surpresa” da gestão Trump, nada mais que outra maluquice de um presidente patético. Puro engano! Por mais ridículo que seja Donald Trump e seu movimento político, tais golpes não são um episódio isolado. Ao contrário, eles se inserem na geopolítica estadunidense de oprimir as nações latino-americanas, proibindo-nos de sermos senhores do nosso destino e fazendo daqui o seu bom e velho quintal. Nesse sentido, pouco importa se a Casa Branca é ocupada por um republicano ou democrata. Acaso nos esquecemos dos escândalos de espionagem revelados por Edward Snowden em 2013? Acaso nos esquecemos do apoio dado pelo Departamento de Justiça à Operação Lava Jato? Acaso nos esquecemos da reativação da Quarta Frota em 2008? Afinal, quantas “surpresas” terão de se repetir para que nos convençamos dos interesses irreconciliáveis entre nós e quem governa a Casa Branca? Portanto, se queremos entender o que tem ocorrido nas últimas semanas, precisamos fazer com que a palavra “imperialismo” volte ao vocabulário político das massas, e não há melhor maneira de fazê-lo senão olhando o nosso passado.

         Historicamente, a soberania brasileira foi desafiada em diversos momentos e de diversas formas. Como, por exemplo, na Questão Christie (1861-1865), em que oficiais do Império Britânico, após fazerem arruaça na capital, acabaram presos pela polícia local, o que gerou uma reação explosiva do embaixador William Dougal Christie, representante dos britânicos na Corte do Rio de Janeiro. Tamanha animosidade se iniciara com o saque, por parte de brasileiros, do navio Prince of Wales, que naufragara, acidentalmente, em abril de 1861, na zona costeira do Rio Grande do Sul. A Coroa Britânica demandou indenização pelos prejuízos da pilhagem, mas a questão mantinha-se em aberto. Veio, então, a baderna dos oficiais no bairro da Tijuca. Christie exigiu não só a prisão dos policiais cariocas, seguida pela libertação dos baderneiros, como também uma indenização, acrescida por um injustificável pedido de desculpas. Vendo que sua exigência patética não era atendida, o embaixador ordenou que cinco navios mercantes brasileiros fossem apreendidos na Baía de Guanabara pela Marinha Inglesa, além de tomar o porto carioca à força, violando abertamente a soberania do Brasil. Como é de praxe, os imperialistas aplicaram a sua odiosa “diplomacia das canhoneiras” sobre os povos da periferia. Anos antes, os britânicos haviam operado a mesma estratégia nas Guerras do Ópio, com um sucesso tão fragoroso que os chineses jamais se esqueceriam das implicações de tamanha humilhação. Entretanto, Dom Pedro II comportou-se como estadista à altura daqueles meses conturbados; ao perceber que o embaixador estrangeiro não tinha a menor deferência pelas leis e pelo nosso povo, o imperador, auxiliado pelo notável Marquês de Abrantes e João Batista Calógeras, ordenou que as relações diplomáticas entre as duas nações fossem formalmente rompidas. Acabava-se a estadia de William Christie em nossas terras.

Aqui, é importante ressaltar que os nossos governantes confrontavam, ainda que só diplomaticamente, o maior império do seu tempo, cujo poderio bélico — e solidez econômica — era muito, muito superior ao nosso. Havia razões para crer que, numa eventual escalada, os brasileiros poderiam ser forçados a pagar um preço amargo por sua altivez. Porém, ambas as partes desistiram de entrar em guerra. Novamente, o Marquês de Abrantes e João Batista Calógeras, em sintonia com D. Pedro II, cumpriram um papel decisivo nas negociações por uma disputa que não dependesse da força das armas, terreno seguro para a famigerada armada inglesa. Naquele momento, era preciso posicionar-se num terreno em que as nossas forças se equilibrassem, por mais árdua que fosse a busca por tal solução. Foi decidido que se optasse pelo caminho jurídico. O caso foi julgado pelo rei da Bélgica, Leopoldo I, que era tio da própria Rainha Vitória. O monarca belga surpreendeu a muitos, dando parecer favorável aos brasileiros. O poderoso Império Britânico teve de pedir desculpas, de modo que as relações entre os dois impérios só seriam reestabelecidas em 1865, e nunca mais um oficial estrangeiro ousou comportar-se mal em terras brasileiras. A lição foi aprendida.

Ainda hoje, a Questão Christie é lembrada como um ponto alto da diplomacia brasileira e, especialmente, da liderança de Dom Pedro II, alguém que não se amedrontou diante da possibilidade de ter de enfrentar um império que, como se dizia, não via o sol se pôr. Com essa vitória mais que simbólica, o imperador marcaria a sua época de uma maneira que, se tivesse ocorrido nos EUA, já teria inspirado filmes e séries de televisão, mas, tragicamente, insistimos em dar as costas ao passado, mesmo quando ele deveria nos encher de orgulho patriótico. Pois, a despeito das enormes discrepâncias entre os dois adversários, o Brasil conseguiu se sobressair perante um opositor colossal e afirmar-se como país soberano num século em que ainda engatinhava no concerto das nações. Certamente, o caminho mais cômodo teria sido a “cautela”, a “moderação” e o “pragmatismo”, isto é, atender às ordens do prepotente diplomata britânico, de modo a não pôr em risco as relações com a nação que, em 1822, intermediara a nossa Independência de Portugal. No entanto, os caminhos fáceis, capazes de nos seduzir à primeira vista, acabam nos conduzindo a armadilhas muito piores do que aquilo que havíamos imaginado. Enfim, o tempo provou que aquele embate era mais que justo: ele era necessário para a nossa afirmação nacional.

Diante disso, como uma nação periférica e subdesenvolvida como a nossa pode vir a ser soberana?

Logo de cara, é importante frisar que, no tabuleiro geopolítico, ser soberano não é algo simples. Um dos caminhos escolhidos — e o mais controverso de todos — é o desenvolvimento da sua própria bomba atômica. O regime norte-coreano pagou caro para adquirir seu arsenal nuclear: décadas de cerco e sanções, fome e isolamento. Agora, quem se atreve a invadir Pyongyang e derrubar Kim Jong-un? Em 1994, os ucranianos optaram, em nome de uma boa relação com o Kremlin, por abrir mão do seu arsenal nuclear, algo em torno de três mil ogivas. Que receio Vladimir Putin teve de anexar a Crimeia e, oito anos depois, de invadi-los na maior guerra da nossa geração? Ao que parece, a única linguagem que as grandes potências reconhecem é a capacidade de destruição máxima, de aniquilamento completo da espécie humana. Em um mundo ideal, trataríamos as nossas divergências numa mesa de negociações aberta e igualitária, mas, infelizmente, esta não é a realidade na qual nos encontramos. O mundo atual tem ficado cada vez mais instável e perigoso para os estados que abrem mão de qualquer capacidade de dissuasão, especialmente aqueles que se encontram sob a mira dos interesses das grandes potências. Ignorar isso pode ter um custo muito caro, tendo em vista que, sem a dissuasão nuclear, tornou-se corriqueiro para os ocidentais derrubarem ditaduras: Saddam Hussein, no Iraque; Gaddafi, na Líbia; Bashar al-Assad, na Síria. Nos últimos meses, faltou pouco para que o regime iraniano se somasse a essa lista.

É evidente que, para manter o Judiciário funcionando minimamente, não precisamos recorrer a mísseis balísticos apontados em direção a Washington. Até por que, se o fizéssemos, seríamos o alvo imediato do Pentágono, que nunca permitiria uma nuclearização da América Latina, haja vista a Crise dos Mísseis em Cuba. Por enquanto, nossa verdadeira Independência não passa de um sonho de uma noite de verão, mas isso não significa que devamos adotar vira-latismo como doutrina da política externa, que é o desejo íntimo da gangue Bolsonaro. A extrema-direita não tem nada a nos oferecer enquanto projeto de nação, pois, para sermos soberanos, teremos de sair da sombra dos ditames dos Estados Unidos, um processo violentamente interrompido pelo Golpe de 64 e que os governos progressistas não se mostraram capazes de concretizar. Temos de reaver a consciência do papel que cumprimos no cenário internacional, isto é, nação periférica e subdesenvolvida, para, em seguida, sabermos aonde queremos e precisamos chegar. Essa é a nossa incontornável sina.

Tal como sabem todas as nações verdadeiramente livres, a nossa liberdade não será dada de mão beijada. Nunca o foi e nem poderá ser. Devemos, portanto, defender com orgulho a causa nacional. Devemos ir muito além de cantar o Hino Nacional aos berros, como se estivéssemos em um estádio de futebol. Caso contrário, seremos pisoteados pelos interesses imperiais, que nunca viram com bons olhos a emancipação verdadeira do povo brasileiro. 


Daniel Viana de Sousa

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