quinta-feira, 11 de junho de 2020

Um elogio à Psicanálise


      Após um ano e meio de terapia psicanalítica, chego a conclusões que gostaria de partilhar, pois, assim como outros pacientes, fui à procura de respostas para uma crise pessoal que colocou em xeque uma série de certezas que tinha a respeito de mim mesmo.

       Naquela época, meu conhecimento acerca da Psicanálise era nulo. Já tinha ouvido falar de Freud, do inconsciente e do famigerado divã, mas nada que fosse além do senso comum. Também nunca tinha tido um interesse especial por qualquer forma de psicoterapia, de modo que nada disso teria ocorrido sem a coexistência dos seguintes fatores: a crise pessoal, a busca consciente por uma saída dela, o amparo familiar e a experiência benéfica que outras pessoas, próximas a mim, já tinham tido antes. "Se essa terapia já transformou outras vidas, então, por que não a minha também?", foi o que eu pensei.

       Agora, tendo passado por um processo significativo de autodescoberta e de autoconhecimento, que ainda está longe de ser finalizado por completo, estou plenamente convencido de que a Psicanálise não apenas me transformou, como também tem muito a oferecer às pessoas dispostas a seguir por essa estrada. Assim sendo, resolvi escrever a respeito, mesmo sabendo que seria impossível pôr em palavras tudo que foi vivido. Na realidade, esse texto é um modesto elogio à Psicanálise, um singelo reconhecimento da mudança que eu mesmo passei.

       Em primeiro lugar, querer ser ouvido não é sintoma de esquisitice, nem de falta de amigos, mas parte do fato de que certas coisas não vão ter a atenção que merecemos, a escuta necessária. Pois as pessoas que mais amamos, por serem humanas, podem acabar esquecendo de nos ouvir quando mais precisamos; outras, infelizmente, nem sequer sabem ouvir a si mesmas, ao seu próprio coração falando; então, como elas poderiam nos dar o que não permitem ao seu espírito?

       Trazer à tona o que foi tantas vezes silenciado, por censura ou medo, tendo sempre o sigilo como garantia fundamental, não é sinal de covardia. Pois a nossa vida íntima, ao contrário de uma mercadoria banal, não precisa ficar à mostra numa vitrine, não vale a partir de quantos a veem ou a conhecem, não deve satisfações a ninguém. Hoje, estou convencido de que a privacidade é indispensável à saúde mental dos indivíduos, bem como imprescindível ao bem-estar coletivo de uma sociedade. Além do mais, certos assuntos, quando compartilhados com alguém, acabam perdendo um pouco do seu peso inerente, aquela importância exagerada que teimamos em atribuir — possivelmente, pela força do hábito. Esse processo, que muitas vezes é longo, sinuoso e cheio de surpresas, atenua o sofrimento que sentimos por levar esses dilemas sozinhos.

    Terapia psicanalítica não é lugar de autocomplacência. Pelo contrário, ao sermos confrontados com a manifestação do inconsciente, resta-nos duas opções: lidar com o conteúdo proveniente de nós mesmos ou irmos embora. De fato, recusar o que sai da boca, é negar aquilo que é mais próprio de cada um: a dor silenciada, o desejo acobertado, o remorso negado etc. No final das contas, cada um faz a sua escolha, assumindo (ou não) responsabilidade sobre o que é dito no divã. O mais importante, ao menos no meu entendimento, é a evolução que tal descoberta de si é capaz de propiciar.

    Enfim, buscar ajuda de um(a) profissional da saúde mental, não o torna menos capaz do que os outros; ao contrário, isso nos lembra a infância, aquele momento em que, após sofrer uma queda muito dura, terminamos pedindo ajuda para, primeiro, se erguer, em seguida, dar um passo à frente e, finalmente, voltar a se valer das próprias pernas. Recusar ajuda, por sua vez, acaba por revelar uma teimosia que só é verdadeiramente prejudicial a si mesmo. Sempre há espaço para um novo aprendizado e um reaprendizado de si, um novo olhar para o mundo que nos cerca e a identidade que construímos para nós mesmos.

De repente, me dei conta de que já não era o mesmo de antes. À medida que saía do consultório para a rua movimentada, do espaço íntimo ao espaço público, do mundo particular à realidade externa, era tomado por uma alegria contagiante, um sorriso indisfarçável; pois sabia que aquele que havia passado pela porta de entrada não era o mesmo que, agora, atravessava a porta de saída. Expressar em palavras o que havia dentro de mim, dando outra forma à maneira como me enxergava, era um meio de transformar a mim mesmo, uma espécie de cura pela fala.

       Por fim, a Psicanálise me mostrou que ir à procura de uma psicoterapia, não quer dizer que você está fraco, mas que você está forte o suficiente para se cuidar. Só quem se cuida é capaz de se amar, de reconhecer o valor da própria existência, e o amor próprio é condição para amar ao próximo, ou seja, para ser humano em plenitude.

Daniel Viana
© Todos os direitos reservados
Publicado em 24 de Agosto de 2019.

quinta-feira, 4 de junho de 2020

Um tributo a John Coltrane


     Ao ouvir Peace on Earth, me vejo diante da eternidade; um espaço amplo se abre diante de mim, como o cosmo multidimensional; nesse lugar, as miudezas terrenas parecem tão distantes, quase inexistentes, pois fomos alçados às alturas por obra dum espírito soberano, um místico John Coltrane; nesse ponto, o cansaço intrínseco à existência, dá lugar ao repouso no calor que emana além do meu ser. Não tenho mais medo; não venho com perguntas à espera de responder ou quaisquer culpas do que não pude realizar. Me coloco plenamente aberto, em pleno florescer, e me permito ser amado pelo célere som que logo vem, em notas pelo timbre do saxofone metálico. Ah, fui tocado no ponto mais íntimo do meu ser, no âmago das coisas que não posso dizer, pois, como você poder ver, as palavras falham quando o prazer transcende o mero viver.

    Uma cor floresce à minha volta, pacífica e intensa forma luminosa; tomando a forma dum raio violáceo, meio róseo em seu íntimo traço, que se une à minha essência na forma de gotas em pura incandescência, provavelmente derretidas duma estrela qualquer numa amálgama misteriosa, tal como um riacho luminoso que escorre pelo vazio do espaço transcendente — a presença dessa força insólita, criatura repleta de potência, se perdeu para sempre.

   Sei que tudo pode parecer uma vertigem de sonhos, um delírio singular pelo jazz americano, ou, ainda, um apelo hermético a um tipo de abstracionismo peculiar, mas tudo me envolve de maneira tal que nem quero saber o que você vai pensar, como o resto do mundo vai me julgar, porque isso que te digo sem vacilar, esse testemunho íntimo e particular, é próprio duma Consciência preocupada apenas em despertar, abrindo os olhos para aquilo que antes não podia ser contemplado, sentido ou experienciado. Meus olhos se enchem de lágrimas, de tal modo que um sorriso vem à tona, pois já não há o que temer; e uma sensação de triunfo sobre a morte, de emoção soberana me ocorre. Agora, me sinto prestes a retornar ao útero ancestral; me sinto com as asas que foram perdidas no passado; me sinto voando rumo aos céus, sem nada que possa me segurar. Somente John Coltrane é capaz disso.

Daniel Viana
© Todos os direitos reservados
Publicado em 28 de Setembro de 2019