quinta-feira, 4 de junho de 2020

Um tributo a John Coltrane


     Ao ouvir Peace on Earth, me vejo diante da eternidade; um espaço amplo se abre diante de mim, como o cosmo multidimensional; nesse lugar, as miudezas terrenas parecem tão distantes, quase inexistentes, pois fomos alçados às alturas por obra dum espírito soberano, um místico John Coltrane; nesse ponto, o cansaço intrínseco à existência, dá lugar ao repouso no calor que emana além do meu ser. Não tenho mais medo; não venho com perguntas à espera de responder ou quaisquer culpas do que não pude realizar. Me coloco plenamente aberto, em pleno florescer, e me permito ser amado pelo célere som que logo vem, em notas pelo timbre do saxofone metálico. Ah, fui tocado no ponto mais íntimo do meu ser, no âmago das coisas que não posso dizer, pois, como você poder ver, as palavras falham quando o prazer transcende o mero viver.

    Uma cor floresce à minha volta, pacífica e intensa forma luminosa; tomando a forma dum raio violáceo, meio róseo em seu íntimo traço, que se une à minha essência na forma de gotas em pura incandescência, provavelmente derretidas duma estrela qualquer numa amálgama misteriosa, tal como um riacho luminoso que escorre pelo vazio do espaço transcendente — a presença dessa força insólita, criatura repleta de potência, se perdeu para sempre.

   Sei que tudo pode parecer uma vertigem de sonhos, um delírio singular pelo jazz americano, ou, ainda, um apelo hermético a um tipo de abstracionismo peculiar, mas tudo me envolve de maneira tal que nem quero saber o que você vai pensar, como o resto do mundo vai me julgar, porque isso que te digo sem vacilar, esse testemunho íntimo e particular, é próprio duma Consciência preocupada apenas em despertar, abrindo os olhos para aquilo que antes não podia ser contemplado, sentido ou experienciado. Meus olhos se enchem de lágrimas, de tal modo que um sorriso vem à tona, pois já não há o que temer; e uma sensação de triunfo sobre a morte, de emoção soberana me ocorre. Agora, me sinto prestes a retornar ao útero ancestral; me sinto com as asas que foram perdidas no passado; me sinto voando rumo aos céus, sem nada que possa me segurar. Somente John Coltrane é capaz disso.

Daniel Viana
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Publicado em 28 de Setembro de 2019

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