quinta-feira, 21 de maio de 2020

Dê um passo à frente



   As luzes são cativantes quando desaparecem; deixando seus rastros pela correnteza e na vastidão do céu que não podemos tocar, é assim com os rasgos violáceos pelo ar; pinturas feitas na despedida do Sol sobre o mar, é possível notar seus traços nas nuvens róseas, bem como nos tons mais rubros ao limiar do cosmo. Somos como essas luzes que partem em busca de outro lugar, que saem sempre à procura do que não sabem onde está, que ardem — ah, como ardem! — e que teimam em nunca se acabar. É assim, de mãos dadas, que partimos em direção aos barrancos mais afastados da enseada. Queremos ficar a sós.

      Cada passo à frente traz do poente clareza aos olhos; meu amor sente minha ânsia por felicidade, que é quente como o disco dourado que adormece na praia. Nosso ventre se une à sombra de uma nuvem que atenua o astro incandescente; mesmo assim, ela me abrasa com sua carne coberta de areia ardente: "Adentre! Adentre em mim com sua oferta! Esse ardor que me queima, que me acerta, lava-me da culpa de estar incerta entre a fuga em seus braços e minha vivência deserta". E foi como uma sereia, que não se refreia ante a lascívia da sua mente, mas clareia tudo para que exista inteiramente, que ela se esparramou em mim. Foi assim que dei toda vazão esperada à paixão pulsante em meu peito fervente.

      Me deito contigo nesse leito da praia que nos consente; é nela que se espraia a forma inocente do nosso libido totalmente amansado. Ah, como me deleito por me sentir o teu amante, o teu eleito, o teu companheiro mais ansiado! Pois, no teu jeito tão afeito a me olhar, me descubro satisfeito, bem como me aceito perante todos nesse mar! Contudo, à medida que vejo o astro repousar, uma inquietude faz a minha alma se agitar.

     Saiba que os meus olhos nunca se perdem quando você passa, mas é preciso reconhecer, após tanto caminhar, que todos os caminhos se dividem, mesmo que todos os rios anseiem por seu mar. É preciso ver como as luzes se despedem à beira-mar: seus raios nos rasgam ainda mais calorosos quando os vemos se apartar. É assim que devemos preservar a lembrança do nosso amor: sem brigas que possam nos desunir, sem mágoas que possam nos molestar. Por que se deter, dia após dia, ao mesmo lugar? Não será o apego uma forma de se iludir, ao invés de se amar? Viveremos só de recordar o passado?

        A partir daqui, as minhas promessas se esgotam. Eu não tenho, ainda que me peças, aquelas juras de felicidade eterna; eu te ofereço, isso sim, em cada uma dessas linhas, a quebra com todas as fantasias que nos ensinaram a acreditar. Tudo vai passar do seu tempo. Mesmo o ódio mais tenaz, às vezes tão súbito em seu surgimento, não consegue triunfar além de um mero instante fugaz. E mesmo que nos livrássemos de qualquer tormento, quem nos preservaria da morte, por exemplo? Quem se apega aos outros em excesso, arrisca-se a jamais se erguer no primeiro tropeço que qualquer relação traz. O mundo sempre se refaz das suas perdas; o humano, por sua vez, é frágil demais pra tantas quedas.

       Talvez você diga: "Lá vai mais um homem fugidio, cheio de escolhas repentinas, vagando à procura do que não sabe explicar". Na verdade, eu não nego que padeço de uma loucura: navegar o oceano incerto, onde as águas em movimento cortam as minhas raízes do chão. Quero ser um explorador da vida, um navegante perdido em sua imensidão. É imbuído desse sentimento, que navego sem qualquer direção ou apego pelo que já é, simplesmente, pura recordação. Mas, para dar esse passo, é sempre preciso abrir mão, ainda que se abra uma fissura em nosso coração.

        Dizem que o verdadeiro amor é aquele que não acaba, mas penso exatamente o contrário: o verdadeiro amor sempre abre espaço para o novo, ainda que o velho possa ser saudoso, cheio de brilho, como um astro luminoso. Já posso ouvir cantar, no limiar do horizonte, as aves migrantes. Ah, eu quero voar com elas: sem quaisquer entraves e muito acima dos mirantes. Preciso ir além dos suspiros de paixão à noite, onde o meu âmago acaba se tornando seu refém; preciso findar esse prazer, onde o meu corpo se detém ao seu, e que já não mais mereço. Escute: de todo fim se provém um recomeço. O mundo, certamente, te trará outros desejos, me tornando aquém aos seus anseios. Pois o futuro não contém qualquer feição, senão aquela que projetamos por esperança ou desespero; o futuro nos pede, somente, que saibamos sempre recomeçar.


Daniel Viana
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Publicado em 22 de Outubro de 2019

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