domingo, 22 de novembro de 2020

Voragem Luminosa

O mal que nos consome

      Quando caminho a céu aberto, sentido o azul do alto me esquentar, me consterno ao notar que todos ao meu redor se predem à tela do celular. Será que ninguém percebe a direção para a qual estamos a rumar? Basta um tropeço no escuro e tudo pode se acabar dentro dum fosso qualquer. E, de fato, alguns terminam no fundo do poço, sem meios de se salvar dessa voragem luminosa. Parece que não adianta mais falar; parece que nos resta parar e esperar que os poucos sobreviventes saiam dessa perdição distópica, desfecho apocalíptico de proporções inéditas. Será que estou exagerando? Creio que não, meu amigo. Quer saber o que penso disso tudo?

As telas me sufocam; elas me cercam como abutres por todos os lados; seus corpos inertes são sustentados por peões catatônicos, incapazes de se verem livres dessas estranhas amarras virtuais; suas luzes artificiais giram à minha volta, como espíritos endiabrados trazidos dum universo paralelo, invocados por um ardiloso feiticeiro cuja primeva intenção fora nos ludibriar com falsas promessas de inesgotável felicidade. Sua fantasmática onipresença — modelada numa espectral miríade de formatos variados — é uma tortura ao meu bucólico espírito, já exaurido de tanta virtualidade, de tanto contato imaterial.

E digo mais: um preço está sendo pago por nossa geração. O distanciamento da realidade concreta nos custa a compreensão de quem realmente somos, do que de fato precisamos e para onde devemos rumar as nossas mentes e corações. Vagamos à toa, de clique em clique, de uma postagem para a outra, cada vez mais desunidos, dispersos e manipulados. Com efeito, nós alimentamos uma economia sedenta por nossa insatisfação, por nossa sensação de que algo está em falta; nós somos alvejados por padrões de consumo e de beleza que são, propositalmente, moldados para uma ínfima minoria de privilegiados, a fim de que estejamos, mais uma vez, insatisfeitos com a realidade presente; somos impelidos a repetir uns aos outros, em códigos de consumo de massa, no intuito de criar um senso coletivo de pertencimento à mesma alcateia de lobos famintos, à mesma turba de zumbis sanguinários.

Claro que eu poderia me trancar no quarto e fingir que esse mundo confuso não mais existe. Seria suficiente dar um giro na chave, para, em seguida, lança-la ao quinto dos infernos, depois, eu me cobriria com um lençol da cabeça aos pés, enterrando o rosto num travesseiro que sorvesse minhas lágrimas amarguradas. Tudo se resumiria ao silêncio do meu quarto, ou seja, eu reduziria a realidade ao que existe de mais simplista e banal. Em suma, eu tentaria ter em mãos um mínimo de controle sobre uma vida que é, por natureza, complexa e exuberante. Assim, eu daria um fim ao capitalismo decadente e tardio da nossa sociedade pós-moderna? Suspeito que nem os isolacionistas possam tanto com sua fuga da realidade. No entanto, para alguns, tudo funciona exatamente como aquela expressão estadunidense: “enough is enough”. Sem dúvidas, essa tem sido a escolha de muitos ultimamente: a reclusão final e peremptória.

Mas eu sou diferente. Creio que algo em mim prefere estar em meio à loucura que vivemos — e que se adensa à medida que o tempo passa, assimilando tecnologias sofisticadas, novas tendências e conflitos inauditos. Não temo as chamas do incêndio que nos acomete. Na verdade, mesmo com tantas dificuldades, ainda estamos respirando e sobrevivendo, usufruindo da oportunidade de transformarmos a realidade que nos cerca, de tal maneira que se aproxima a hora da decisão. Iremos nos render à realidade manifesta ou mudar tudo de uma vez por todas, como se a Revolução fosse um chamado ao momento decisivo que vivemos! Haveremos de nos decidir. Enquanto isso, vou vivendo o que posso de cada dia, vou aprendendo com essa realidade o que ela me apresenta. Acima de tudo, eu quero apreender o que se passa, a despeito da consternação que o presente acarreta.

 

Daniel Viana

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