À medida que os dias passam, é cada
vez mais claro que chegamos a um ponto gravíssimo nas relações internacionais
do século XXI. As principais nações do mundo se veem às portas de um racha
similar à criação, em Agosto de 1961, do Muro de Berlim. Muitos já afirmam, sem
quaisquer dúvidas, que vivemos os primórdios de numa nova Guerra Fria. Se isso
representa um retrocesso a estágios primitivos da sociabilidade humana ou um
avanço para novas disputas, debates e conquistas sociopolíticas, só o tempo é
quem dirá. Em conjunturas como a atual, é comum que até os mais experientes
analistas se precipitem em vaticinar realidades que simplesmente não se
concretizam. Há que se ter cuidado, pois tudo pode mudar numa questão de dias
ou até de horas.
Quando se avalia as causas e
consequências da guerra na Ucrânia, naturalmente se comenta acerca da
decadência dos Estados Unidos da América (EUA), líder do mundo ocidental desde
o fim da Segunda Guerra Mundial, cuja liderança liberal e belicosa marcou,
profundamente, a vida de todos ao longo do século XX e do início do século XXI.
Nesse espaço de tempo, os EUA se tornou a maior força militar, política,
econômica, ideológica e cultural que a Humanidade jamais viu em toda sua
história. A despeito das duras derrotas que sofreu na Coreia, em Cuba, no
Vietnam e no Afeganistão, a águia norte-americana conseguiu chegar à terceira
década do novo século como um império multicontinental capaz de estrangular os
seus adversários com as mais diversas manobras geopolíticas: sanções e
bloqueios econômicos, golpes de estado, guerra midiática, assassinato de
líderes, intervenções militares etc. Antagonizar com um poderio destas
dimensões, requer uma unidade social, resiliência e soberania que, de fato, nem
todas as nações possuem em suas mãos, de tal maneira que se contam nos dedos os
reais adversários da Casa Branca que se mantêm de pé no mundo atual. Entretanto,
Vladimir Putin acaba de desafiar essa hegemonia com um conflito nas bordas da mais
importante área de influência norte-americana: a Europa.
Como
muitos jornalistas reafirmam repetidamente, não se via tamanha ousadia, por
parte dos russos, desde o inesperado fim da União Soviética. Realmente, a
Rússia que vemos no presente não é mais aquela dos tempos de Gorbatchev e Boris
Iéltsin; seu orgulho nacional está reavivado e sua confiança nas próprias forças
é nítido e amedrontador para quem esperava uma Rússia acomodada às próprias fronteiras.
Contudo, a despeito da descomunal superioridade militar dos russos sobre os
ucranianos, o cenário mantém-se aberto às mais diversas possibilidades. Nesta
seara, fazer previsões é demasiadamente arriscado. Entretanto, parece-me claro
que o desfecho da guerra entre os dois principais estados eslavos, ajudará a
avaliar se os falcões estão no princípio embrionário de sua fase terminal ou
não. Derrotas significativas se somaram ao longo dos anos recentes, como, por
exemplo, as quedas na Síria e no Afeganistão, reforçando um recuo cada vez mais
visível no alcance de seus objetivos estratégicos.
No
entanto, o que mais chama a minha atenção, neste momento, não é o aspecto estratégico-militar
do conflito, e sim a profunda e preocupante miséria que o acarretou. Tanto as
lideranças dos países emergentes quanto os assim denominados big players dão amostras diárias da sua
incapacidade em criar qualquer espécie de consenso e amenização das crescentes
tensões geopolíticas. Até o presente momento, prefere-se ameaçar os opositores
com sanções e isolamento diplomático, bem como de recorrer-se aos mais diversos
e danosos recursos militares, o que, certamente, acarretaria numa Terceira
Guerra Mundial, ou seja, o fim da Humanidade tal como a conhecemos hoje. Biden,
Putin, Macron, Scholz, Zelensky, Johnson, Jens Stoltenberg e Ursula von der
Leyen não foram preparados para ocupar os cargos de liderança das suas nações e
organizações. É aterrorizante que alguns destes líderes tenham, nesse exato
instante, o controle direto sobre armas nucleares, capazes de obliterar por
inteiro toda a espécie humana.
Os
russos recorrem à guerra não porque são bárbaros sanguinários e expansionistas,
mas porque o diálogo político, que vem se estendendo desde a anexação da
Crimeia, em 2014, se mostrou infrutífero para os seus interesses imediatos na
Europa Oriental — aqui, vale lembrar que esta é uma zona de influência russa há
séculos, de modo que não é uma surpresa que os russos se enfureçam com a
crescente influência estadunidense no seu “quintal ocidental”. Ao que parece, a
determinação e a ousadia de Putin foram subestimadas. A beligerância retórica
transformou-se, para a surpresa da maioria, numa ação concreta. Ele não poderia
permitir que seus conterrâneos o vissem como fraco, incapaz de defender o famoso
orgulho russo, que norteou czares e czarinas ao longo de séculos. Portanto, ao contemplar
a possibilidade do vizinho se juntar à União Europeia e à própria OTAN, Putin deu
um passo à frente no jogo de xadrez, embora o xeque-mate ainda não tenha se
materializado. Com efeito, enquanto escrevo esse texto, seu avanço terrestre tem
sido contido pelas forças de Zelensky. Não se pode negar a bravura dos
militares e civis ucranianos frente a um dos mais avançados exércitos do mundo.
Kiev ainda se mantém sob o controle do jovem e inexperiente presidente.
A
guerra de bravatas e adjetivos explodiu nas mídias virtuais, que são as únicas
que realmente têm repercussão junto às massas. Cada lado se comporta como se
fosse dono da verdade, portador dos valores mais elevados e altruístas. Frente a
isso, há que se manter a cautela e a coerência com os próprios valores. Para
mim, toda agressão militar é condenável, todo golpe de estado é reprovável,
toda dominação interestatal é inaceitável, toda repressão às minorias é
incompatível com os verdadeiros valores humanos. Não é uma surpresa que, para
justificar a assim chamada “operação especial”, Putin argumente que a Ucrânia
seja inseparável da Rússia, tal como um pequenino apêndice do corpo humano. Não
é à toa que, fazendo uso do aparato de repressão estatal, Putin se esforce
tanto em silenciar as contestações internas aos seus desmandos. No interior da
Rússia, ainda há quem discorde dessa postura militarista. Ao mesmo tempo, é incompreensível
que o Ocidente continue usando a OTAN para amedrontar alguém disposto a usar de
todos os meios possíveis para vencer a guerra. Não se trata de “pôr o rabo
entre as pernas”, mas de reconhecer que um passo em falso pode resultar numa
escalada apocalíptica e irreversível para todos os lados. Além do mais, isolar
o Kremlin economicamente, tal como vem sendo feito pelos países ocidentais,
coloca-o ainda mais nos braços de Xi Jinping, numa aliança que desafia os
falcões estadunidenses de uma maneira como jamais se viu antes. Estarão os
norte-americanos cavando a própria sepultura? O tempo certamente dirá.
Outro
sinal de decadência política e de guerra declarada é o uso exacerbado de hipérboles,
insultos e ameaças. Como era de se esperar em qualquer conflito, todos abandonaram
por completo a moderação. Usa-se, cada vez mais, recursos retóricos que
transmitam força bruta, confiança demasiada e determinação resoluta. Assim, pretende-se
convencer as massas de que o inimigo recuará e que os aliados triunfarão,
trazendo à pátria os espólios da conquista bélica. Quem se deixa levar por essas
leviandades discursivas, especialmente as que mexem com o que temos de mais sensível
e pessoal, acaba se distanciando do incontornável deserto do real. É difícil
manter-se desperto em meio ao tumulto de falas, imagens e emoções que vemos nas
mídias dia após dia. A guerra é muito mais complexa e intricada que um discurso
ideológico em rede nacional; a despeito das desculpas ideológicas, ela reflete
o que temos de mais brutal e animalesco, nossa insensatez mais primitiva e
violenta. Não sei se superaremos esse instinto belicoso, tão proveitoso ao
lucro de inúmeras empresas multinacionais, que colocam os seus interesses acima
de qualquer propósito humanitário. A guerra sempre interessou aos poderosos que
se serviam da carne dos pobres, infelizes que pegavam em armas para matar os desterrados
do outro lado da terra.
Para
aqueles que, como eu, sempre ansiaram por um mundo pacificado, preocupado tão
somente em gerar prosperidade e bem-estar coletivo, o que temos visto nas telas
de celulares, computadores e televisores é cada vez mais desolador.
Daniel Viana
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