domingo, 31 de julho de 2022

Primeiros passos na militância

 

O fato que pretendo discorrer neste texto, ocorreu em meados de julho, mais precisamente no dia quinze, uma sexta-feira agitada e ensolarada. Foi na sede de um Sindicato tradicional aqui na Paraíba que tive contato com um coletivo de esquerda.

Fui espontaneamente, sem convite ou razão que me obrigasse a estar presente numa rua que, raramente, costumo estar presente. Localizada no Centro de João Pessoa, a Duque de Caxias é uma rua que compõe uma das mais tradicionais áreas de comércio popular da nossa querida capital, o ponto mais oriental das Américas; ela é movimentada no decorrer da manhãzinha e da tarde, até fechar as portas ao final do dia, quando os trabalhadores paraibanos, em geral, se recolhem para um merecido repouso noturno. Provavelmente, a sua loja mais famosa é o Tamborim de Ouro, cuja seara é a venda de mercadorias ligadas à musica — lembro-me de ter comprado produtos nela há muitos anos atrás. Enfim, é muito simples de se chegar ao sindicato, embora, para aqueles que ignoram o sindicalismo paraibano, sua existência seja, relativamente, obscura.

 Em parte, tal como uma descida de paraquedas, esta viagem foi uma loucura venturosa e, secretamente, desejada, isto é, de incertezas e anseios à flor da pele; além do mais, ela foi, sem dúvidas, um encerramento da zona de conforto que caracterizou minha preguiçosa atuação política nos anos recentes. Bastam poucas palavras, poucas e breves alocuções para explicar esse intento. Acomodei-me, irresponsavelmente, ao conforto da casa por tempo demais. Estamos num tempo em que o silêncio presente será causa para vexames futuros. Não se trata de filiar-se a uma vertente política específica, mas de antagonizar, de mente e peito abertos, a besta que emerge para nos amordaçar com sua tirania pérfida.

Nos dias de hoje, aventurar-se na política sem qualquer perspectiva de ganho imediato e pessoal, ou, em termos mais românticos, entregar-se à realização de um sonho para si e para o mundo, é um indício de abnegação e, ao mesmo tempo, de heroísmo espartano. Afinal, todo contestador é um herói dos tempos modernos — iniciados justamente por uma revolução na França. Ele sabe que enfrentará uma maré de adversidades, inimigos com poder suficiente para lança-lo às masmorras da tortura, do terror e do silêncio, ou mesmo de pôr um fim à sua vida numa viela qualquer, sem que ninguém possa ao menos tomar nota de seu aviltante apagamento.

Não é coincidência que, geração após geração, os abutres do poder se esforcem em nos impor um verdadeiro vale de lágrimas, absolutamente castrado da mais vaga esperança. Em outras palavras, eles querem que nos submetamos a um mundo sem sonhos e sonhadores, sem questões e questionadores, sem transformações e transformadores, cujo desejo, violentamente reprimido, acabe por se converter em enfermidades psíquicas. Viver assim, tornou-se um convite ao martírio, mas sem o direito de santificação, sem possibilidade de qualquer honraria por quem quer que seja. Diante disso, o que nos resta senão a rebelião?

A cada dia que passa, suspeito que caminhamos para um esgotamento da ordem inaugurada em 1988. A despeito de anseios e esforços bem-intencionados, o bordão “defender as instituições” parece esgotar-se, incapaz de fazer emergir a nossa gente querida da sua completa desilusão política. A violência — nas suas mais variadas formas e acepções — se acentua a ponto de colocar em risco qualquer um que saia às ruas para defender seus ideais, especialmente se este sujeito for contrário a Bolsonaro, inimigo execrável da nação.

Nesse tumultuoso cenário, ser revolucionário não significa apenas destroçar o que condenamos externamente, mas se rebelar também no que se refere às falhas internas — como a sensação de impotência, o autoengano e a crença em promessas falsas e irrealizáveis —, além da impotência diante das maquinações dos encastelados. Não se trata somente de ter uma convicção férrea, há que se ver como artista libertário, cujo propósito sagrado é expressar no mundo sua inquietude visceral, ou seja, criar algo novo, enterrando, no passado, a decrépita ordem capitalista.

Fazer nascer a revolução socialista, sempre nos parecerá um sonho irrealizável, até que, para nosso espanto, novas condições propiciem uma súbita virada no tabuleiro. Nesse instante, nós daremos conta de que, mesmo aquilo que nos parece solidamente firmado na nossa realidade, está exposto à mudança da maré. Entretanto, por trás disso, deve haver um acúmulo de forças por parte da esquerda socialista, uma construção ininterrupta e inabalável das forças revolucionárias no seio das massas populares. Trata-se de uma labuta que, de fato, pode consumir uma vida inteira, exigindo do nosso ego uma doação apaixonada e despretensiosa.

Foi nesse sentido que trilhei o que a vida me propôs e, ao mesmo momento, parti em busca do que sonhei, mesmo que os sonhos estejam aferrados à mente que os alimentou em noites amargas, assombradas pela sensação de fracasso e marasmo. Sair de si mesmo, partindo à procura daquilo que se deseja, é a vocação — e a punição — dada pelo destino ao nosso coração humano. Se o negarmos, sofreremos o suplício do vexame, a tortura do desengano. Engaiolar-se numa alcova, é o armistício dos miseráveis; podar as nobres asas, dadas generosamente pela graça celeste, é a traição de quem se igualou aos vermes da terra. Se assim o fizermos, nunca mais ousaremos fitar a nobreza dos velhos heróis. Portanto, não nos acovardemos com as intempéries daquilo que se avizinha, pois há um suave prazer em se entregar ao mistério daquilo que, embora envolto em dúvidas e mistério, certamente virá. Encerro aqui minha digressão.

Voltemos, portanto, à questão primordial deste texto.

Houve quem apostasse que os piores dias da Pandemia eram “coisa do passado”, de modo que o terror perante a morte sumira do rosto de quem eu vi de perto, bem no Centro da capital nordestina. Se isso é correto ou não, já é outra discussão. As ruas efervesciam, as calçadas se achavam apinhadas por viajantes, consumidores e vendedores itinerantes. Os sinais da miséria e da fome, precarização e subemprego, saltavam à vista de todos, conquanto muitos tampassem a consciência para isso. Tal cenário alimentou minha obstinação, nutriu, fartamente, a certeza quanto àquilo que clamo para meu país: só uma mudança na estruturação da sociedade brasileira será capaz de dar um fim à macabra realidade que temos diante dos nossos olhos; só uma sociedade reinventada pela classe trabalhadora no poder, poderá dar uma justa oportunidade aos seus humilhados e explorados cidadãos e cidadãs. Resignar-se ao conforto de quatro paredes, não é mais uma opção humanamente aceitável.

Em minha história de vida pública, o evento na rua Duque de Caxias foi a segunda vez que estive num evento político. A primeira vez ocorrera em 2013, nas manifestações que viriam a ser conhecidas como "Jornadas de Junho". Nesse evento organizado por um coletivo jovens e estudantes, vários militantes fizeram suas alocuções, das quais nenhuma discordo por completo. Decerto, as análises pareceram acertadas, consistentes e responsáveis. E, mesmo se tratando de jovens na flor da idade, não vi sinais de esquerdismo, ou de qualquer voluntarismo atabalhoado. Por fim, a audiência não passava de quinze jovens, o que achei dentro do esperado; ela permaneceu calada até o encerramento do encontro.

Não nego que, às vezes, sinto um apelo em almejar a aristocracia, tal qual um duque consagrado e aceito pela nobreza britânica; isso vem daquela parte do meu ego mais inflado e pequeno-burguês, mexendo no meu lado mais ambicioso e individualista. Mas, ao me olhar no espelho do quarto, vejo um nordestino mestiço, nativo de um povo sempre visto como ralé, nascido de uma cultura desprezada até pelos seus conterrâneos. Sou da periferia de uma região periférica, explorada até o talo pela rapinagem de potências estrangeiras e de elites pútridas, traidoras imperdoáveis de sua pátria-mãe. A elas devemos dar um basta, lhes tomando o poder, antes que nos seja reservado o destino amargo de Canudos. Não quero, portanto, ser aceito nos salões de mármore, enquanto meu povo — o útero que me nutriu e me criou desde o primeiro dia — padece na mais vexaminosa pobreza e na mais constrangedora submissão. Quero a libertação da nossa gente paraibana, nordestina, brasileira e trabalhadora. Quero vê-los triunfar ainda nesta geração.

Não sei se o movimento em questão será a força política que tomará a dianteira do processo revolucionário brasileiro, ocupando o posto máximo do novo socialismo na América Latina. Ainda que isto seja viável, creio ser impossível prever este tipo de eventualidade no momento atual. Pois, nos encontramos na gênese de um processo em mutação permanente. As forças progressistas e reacionárias, no que diz respeito às suas mais diversas matizes e formas, avançam e recuam, ganham aqui e perdem acolá, sem que nenhuma seja capaz de criar um consenso que derrote, por inteiro, o seu respectivo opositor. Ao contrário, há um impasse difícil de ser superado. No momento em que escrevo este texto, nada está garantido. 

Nenhum movimento é perfeito; nenhuma liderança é impecável e o futuro que sonhamos será construído, inescapavelmente, com erros e acertos, tropeços e abraços. Mas, de uma forma muito pessoal, notei em mim uma dose pertencimento, tal como alguém que, finalmente, chega à sua casa.

No dia 29 de Julho, encontrei-me, na Praça da Paz, com uma liderança do partido, que me falou acerca da instituição que representava, seus aspectos mais gerais e publicamente conhecidos. Preocupado com a discrição da nossa discussão, o militante conversou comigo por meia hora num banco afastado, longe da atenção alheia. Seu rosto não demonstrava preocupação, mas se mantinha alerta quanto ao nosso entorno, mesmo quando parecia sorrir ou divagar. Certamente, ninguém parecia (e nem poderia) nos ouvir, mas permanecemos conversando em voz baixa, ainda que os assuntos debatidos nos avivassem a fala e o olhar.

Não sei se entrarei, definitivamente, no partido, por que isso não depende só de mim, nem posso afirmar que sou adaptável à instituição e sua rotina, haja vista que nunca fui fã de reuniões burocráticas, debates etc. — às vezes, prefiro manter-me como um intelectual caseiro, quase monástico, sem grandes obrigações com quem quer que seja; há nisso uma boa dose de tentação por parte de meu lado acomodado. Há algumas horas, fui incluído no grupo de jovens que desejam ser recrutados pelo partido. Acho que isso é um bom sinal, pois o movimento parece valorizar a entrada da juventude politizada. O resto, só o tempo é quem dirá.

Assim sendo, deixei a resignação para trás e abracei um novo tempo, mais incerto e perigoso, mas que há de ser, também, uma aurora libertadora para a nossa gente tão espezinhada, roubada e manipulada, mas que, desde já, nasceu com a vocação para a genuína liberdade, aquela à qual todos um dia irão alcançar. Viva o Brasil! Viva o povo brasileiro!

 

Daniel Viana de Sousa

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