domingo, 30 de abril de 2023

Trinta anos

 

         Sempre achei estranho que alguém se constrangesse em dizer a sua idade. O tempo vivido não deveria nos deixar cabisbaixos, nem arrependidos. Pelo contrário, deveríamos enaltecer a sabedoria conquistada a ferro e fogo, no suor de muitos passados, no sangue vertido em nome de sonhos e desejos; deveríamos reverenciar a vastidão de uma experiência acumulada ao longo de muitas décadas, pois ela é intransferível. Pode-se falar e ensinar, mas a vivência é única. Tal como nos ensina o senso-comum, só sabe quem, de fato, a viveu.

Talvez isso ocorra devido à consagração descompensada do corpo juvenil — com sua potência bela, mas explosiva —, tanto por parte da publicidade e da industrial cultural, quanto do mais rasteiro senso-comum. Não é por acaso que muitos tenham se convencido de que a velhice é um castigo horrendo, uma incorrigível falha biológica, contra a qual devemos nos municiar com cremes, terapias, remédios e, se for preciso, recorrer a cirurgias plásticas que nos convençam de que não somos aquilo que o espelho nos diz que é: uma juventude à base de silicone, construída por cima de uma gritante insegurança.

Se, na Idade Média, os cristãos tentavam alcançar a santidade por meio da abnegação e controle dos desejos, hoje, praticamente todos procuram o gozo individual e ininterrupto, a felicidade numa materialidade que está fora do nosso controle e que nunca nos saciará. Hoje, adoecemos pelo excesso de expectativas, de alimento, de barulho, de luzes, de trabalho, de compromissos, de conteúdo etc. Hoje, pode-se recorrer a uma crendice aqui e acolá, mas, para a maioria, a busca por Deus não é uma prioridade; atualmente, Ele se acha “engavetado”, tal qual um remédio para uma doença que pensamos ter deixado para trás, mas que será procurado novamente quando as nossas circunstâncias se agravarem. Trata-se de um comportamento repetido à exaustão; uma espécie de clichê espiritual da experiência humana na pós-modernidade fluída e fugaz.

É compreensível que a velhice seja, em muitos aspectos, sinônimo de impotência, demência e, principalmente, vulnerabilidade. Afinal, à medida que a vida dos seres humanos se estende, notamos o efeito do tempo em nossos corpos de uma forma nunca vista antes: os ossos se enfraquecem, as articulações doem, a visão se compromete, a audição se deteriora, a pele torna-se flácida, a mente se perde, a sociedade descarta etc. Portanto, temer a velhice não requer justificativas; ela é um processo de decrepitude física e mental sem volta e sem remédio, cujo final é, certamente, perturbador para aqueles que não prepararem suas almas para a última viagem.

Esse cenário se agrava quando levamos em conta o culto à juventude em nossa sociedade. Aliás, é fácil de se entender a ânsia em venerar e, concomitantemente, seduzir a juventude: o jovem vai ao cinema com a namorada; vai à academia para se fortalecer; vai ao cursinho do pré-vestibular; tem pressa em comprar um carro novo e, acima de tudo, é mão de obra barata. O capitalismo precisa inflar, no jovem, sua insaciabilidade e sua carência por mais mercadorias e mais ambição, haja vista que uma “juventude acomodada” é sinônimo de vagabundagem e fracasso por aqueles que definiram o que é “sucesso” no mundo capitalista. Nesse mundo, um jovem que abre mão de ser um mero consumidor, desafia o sistema de dominação à nossa volta. Esse sistema não afundará se pararmos de consumir, mas, certamente, vai sentir um espinho rasgar seu calcanhar.

Qual o valor da velhice nessa sociedade que nos clama a consumir e trabalhar a todo vapor? Certamente, não é lá muita coisa. Quem se identifica com os valores do capitalismo, isto é, ser barbaramente individualista, produtivo e arrancar para si um lugar no pódio, jamais aceitará ser velho. Pouco a pouco, a velhice dificultará a sobrevivência desse mindset ultramoderno, fabricado e implantado em nossas cabeças à revelia dos nossos desejos, até que, finalmente, acabaremos algemados à cama, sozinhos num quartinho de hospital, sem chances de conquistar para si aquele tão ansiado troféu. Nesse mundo, a velhice, quando não nos permite consumir, é vista como fardo inconveniente e cansativo, um peso nas costas de quem precisa sustentar um idoso em casa. Logo, não nos deveria causar surpresa que, ao final da sua vida, muitos idosos estejam profundamente deprimidos e solitários.

Em abril, eu fiz trinta anos. Sinto a juventude se dissipar, embora o cansaço da velhice esteja distante do meu horizonte. Ainda me canso com a futilidade e a hipocrisia à minha volta, mas vejo em tal condição uma dádiva dos céus, um sistema imunológico espiritual. Não é possível agradar a todos, da mesma forma que não são todos que podem me agradar. Quem é sábio, procura escolher, com cuidado e temperança, seus amigos e inimigos; caso contrário, cedo ou tarde, perderá tudo que tem, de tal maneira que, para o meu futuro, espero trágicas decepções. Afinal, o ser humano ainda é o que sempre foi: um animal temeroso e manipulado, incoerente e traiçoeiro com seu mundo ao redor — até mesmo Cristo, a despeito de sua divindade e compaixão por nossa espécie, passou pela traição, abandono, humilhação e morte, suportando, para a nossa salvação, o sinistro peso da nossa cruz em seu ombro ferido e imaculado.

A velhice é parte da jornada que nos aguarda. Atravessar estoicamente os instantes finais com toda sua intensidade, sentindo a frieza dos minutos derradeiros e a dor tomar conta dos órgãos, como dedos que nos apertam pouco a pouco, é a nossa última missão. Aliás, é válido recordar que, fazer um textinho, é bem mais fácil do que experimentar a morte em sua completude. A eutanásia parece um caminho menos doloroso e, de fato, necessário em circunstâncias de imenso sofrimento psicofísico, de modo que não me atrevo a julgar aqueles que optam por essa via. Na realidade, eu penso que ninguém deveria se sentir obrigado a perpetuar um suplício em nome de qualquer preceito religioso. Certa vez, um padre jesuíta me disse: Deus só quer de nós o que podemos dar. Portanto, se a dor for insuportável e o paciente estiver lúcido o suficiente para exigir o fim dela, é justo que encerremos a sua agonia.

Sentir pavor diante do próprio fim, é algo naturalmente humano. Afinal, quem pode nos provar o destino reservado para as nossas almas? Haverá algo além daquele quartinho de hospital ou mergulharemos num abismo escuro e sem volta? Serei perdoado por tudo que fiz ou banido do Reino Celeste? Haverá espaço para mim ao lado do Pai? Um animal simplório é incapaz de gerar elucubrações com tamanha complexidade. Fomos nós, os seres humanos, que criamos teorias, fábulas e divagações sobre algo que estaria além dessa vida trágica e mundana, repetindo histórias que se cruzam, a despeito das distâncias e particularidades que separam todas as culturas humanas. Seríamos capazes de suportar a inexistência completa de Deus e de tudo aquilo que cimenta a religiosidade humana? Suspeito que muitos sairiam à procura de novas histórias, para, assim, moldar novos deuses, novos profetas e novos mandamentos. Por outro lado, outros se permitiriam viver as paixões proibidas pelos dogmas mofados, canhestros e conservadores, antes capazes de nos assombrar com a condenação ao fogo infernal. Talvez, o caos se instalasse e as autoridades, subitamente, perdessem o poder de coerção sobre as massas insubmissas, responsáveis por implantar, enfim, um regime anárquico, no qual cada um viveria a partir dos próprios anseios e ideais, nada seria imposto a ninguém e todos agiriam de acordo com a consciência individual. Não foi à toa que as grandes religiões tenham, em algum momento de seu trajeto histórico, se aliado às forças dominantes e se apossado do destino das almas. Aliás, isso explica, em parte, o quão atípico tem sido a Modernidade até aqui, haja vista que foi ela quem separou a Igreja do Estado, permitindo que cada um fizesse seu próprio caminho sem se preocupar em ser queimado em praça pública.

Não faço a menor ideia de como será a minha velhice — nem sei se poderei ter uma vida longa. Talvez, eu releia este texto daqui a sessenta anos e dê uma boa gargalhada; afinal, os jovens sempre foram pretensiosos, especialmente, quando falam daquilo que ainda não conhecem. O que eu posso assegurar é que, ao longo dessas três décadas, eu me transformei inúmeras vezes. Não me refiro apenas ao processo biológico e psíquico de passar da infância à adolescência e desta para a juventude. Nos últimos dez anos, por exemplo, eu experimentei mudanças em convicções de enorme relevância pessoal, que não se devem tentar discutir publicamente. Sou um ardoroso defensor do respeito à privacidade de qualquer indivíduo.

Nos últimos anos, eu decidi que farei tudo que estiver ao meu alcance para chegar no século XXII com boa saúde e lucidez — em 2100, terei completado cento e sete anos de vida. Será difícil, mas creio que valerá a pena, porque viver também é belo, e cada estação que nos é dada, traz algo de novo, ainda que a pressa nos proíba de parar, silenciar-se e contemplar. O mundo mudará de tal maneira, que muito do que se vê hoje, não se verá amanhã; e muito do que não se sonha agora, surgirá diante de nós, inquirindo nosso espírito, tal como a esfinge de Sófocles. Logo, a maioria será devorada, ao passo que outros acharão, de alguma forma, uma saída para o enigma da existência coletiva e individual, universal e pessoal, carnal e espiritual.

Se formos afortunados, estaremos aptos para erguer, verdadeiramente, um mundo novo e uma vida nova, não apenas para nós, mas também para aqueles que não vieram ainda. Eu não tenho dúvidas de que, como toda batalha, muito sangue será vertido, mas cada lágrima será como chuva que rega o campo batido, trazendo a semente escondida no seio da terra. Agora, não a vemos, mas, se o lavrador for paciente, a vida surgirá diante dele numa generosa abundância. Lutemos sem descanso pelo mundo que virá.           

 

Daniel Viana de Sousa

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