sábado, 31 de dezembro de 2022

Esterco político e futuro promissor

 


Para o bem daqueles que sonham com um país renascido, um Brasil liberto de seus males inumanos e ancestrais, já podemos anunciar a plenos pulmões: o cativeiro acabou!

Que o energúmeno presidente vá embora de uma vez, e nunca mais volte a pisar nas terras que ajudou a arruinar. Sua fuga canhestra representa a vitória de todos os progressistas, socialistas e democratas, bem como a redenção dos diversos grupos sociais marginalizados e perseguidos pela extrema-direita.

Se Lula conduzirá uma gestão inovadora, responsável e eficiente, proporcionando justiça social, estabilidade socioeconômica e combate à corrupção, já é outra conversa. Deve-se dar um passo de cada vez, sem a arrogância de crer-se capaz de resolver tudo numa canetada.

Agora, com o fascismo derrotado eleitoralmente, de fato, emerge, ao alcance da vista mais exaltada, um momento de esperança há muito ansiado, pois se encerrou o ciclo político dos Bolsonaros e sua caterva, a mais parva, inepta, burlesca e criminosa gente a ocupar o Palácio do Planalto.

A despeito da desconfiança que uma chapa Lula-Alckmin pode vir a causar na militância socialista — na qual eu me incluo —, não se pode negar a mudança que se opera em nosso meio. A conclusão que qualquer um pode chegar é muito simples: o ressurgimento político de Alckmin é preferível a uma vitória da extrema-direita, que, felizmente, não ocorreu.

Mesmo com 58 milhões de votos conquistados, ou seja, o melhor desempenho de um presidente em eleições, Bolsonaro não soube fortalecer-se após o resultado das urnas, apequenando-se mais e mais, tanto aos olhos dos seus adversários quanto àqueles que se dispuseram a cercar os quarteis, ansiosos por se livrarem da democracia que, em 2018, os trouxe ao poder e que agora os devolve à lata de lixo da História. Ao contrário do Partido dos Trabalhadores (PT), que, em 2016, não hesitou em descer a rampa do Palácio que ocupara há mais de uma década, e que, nas eleições passadas, aceitou — num republicanismo inconteste — a derrota para a extrema-direita, Jair Bolsonaro cola em sua testa a figura de mau perdedor, mau-caráter e líder antidemocrático. Em suma, ele usufrui da democracia quando ela o favorece, porém a despreza quando o resultado é contrário aos seus interesses egocêntricos.

Não foi à toa que, desde o resultado das Eleições, vieram à tona as figuras mais histriônicas e hilárias. Ocupando as portas dos quartéis na vã esperança de que algum tipo de reviravolta tomasse de assalto a cadeira presidencial, os desmiolados da extrema-direita apelam à truculência, ao autoritarismo, ao voluntarismo mais delirante, ao sebastianismo mais vira-lata que já se viu em terras tupiniquins. No fundo, eles não têm o que fazer. Lamentam o fim das Eleições, tal qual lamentamos o fim da Copa do Mundo ou o desfecho de uma série muito querida. Falta-lhes assunto à mesa, algo que ocupe o vazio na cabeça — limitaram-se à pequenez da política cotidiana e, agora, precisarão purgar-se do consumo irresponsável de tanta mediocridade, caso contrário, chafurdarão no lamaçal desse sinistro obscurantismo, que nos afundou no atraso, na miséria, no isolamento e no adoecimento coletivo. Decerto, não tenho dúvidas de que até o lero-lero dessa subcultura extremista seja altamente prejudicial à alma humana. Logo, querem um terceiro, um quarto e um quinto turno, pelo menos até que Bolsonaro se reeleja, dando-lhes o conforto de uma ingênua certeza: “o país foi salvo do comunismo”.

Mesmo assim, Jair Bolsonaro não atendeu aos pedidos dos “patriotas”, comprovando que seus flertes autoritários resumiam-se a uma tosca bravata. Faltou-lhe um sinal claro por parte das Forças Armadas? Ainda não se sabe. Tais informações começarão a circular a partir de 2023, de modo que seria leviano afirmar hoje alguma coisa do tipo: “os militares são legalistas” ou “os militares de hoje não querem mais dar golpes”. A caserna nunca foi uma instituição, realmente, transparente e popular; tampouco, se alheou em definitivo da política após o fim da Ditadura (1964-1985); basta recordar a agitação e desconfiança, por parte alguns de seus setores mais retrógrados, com a Comissão da Verdade, que se estendeu de 2011 a 2014, no primeiro mandato de Dilma Rousseff. Assim diz o célebre ditado popular: quem não deve, não teme.

E, de fato, Bolsonaro tem razões para preocupar-se. Dentro de poucos dias, a corda estará em seu pescoço, estrangulando-o mais e mais. A viagem aos Estados Unidos pode ser uma de suas rotas de fuga. Há tempos que as irregularidades e ilicitudes se acumulam não só à sua volta mas também no âmago da sua família, mas não vou me ater ao ocaso da linhagem bolsonarista, pois isso exigiria demasiada informação neste textinho que estou a escrever.

Como disse, sua prioridade será fugir da cadeia, guardando para si os restos de sua relevância política no seio do espectro anticomunista e reacionário da sociedade brasileira. Por enquanto, não há nada de novo nesse esgoto emporcalhado da extrema-direita brasileira, de modo que se mantém viva a possibilidade de que Bolsonaro — ou um de seus filhos — se candidate em 2026, especialmente se Lula definhar e Trump conseguir a façanha de voltar à Casa Branca, repetindo outra vez a ascensão do autoritarismo no hemisfério ocidental. Resta saber se Lula fará um mandato minimamente digno do seu retorno ao centro político do país. Caso isso se concretize, o retorno da velhacaria bolsonarista irá demorar mais quatro anos.

Ademais, ao contrário de Lula, Bolsonaro não deixará qualquer legado às gerações vindouras, exceto sua tragicômica lembrança. Em décadas futuras, a marca do seu curto mandato será a de um sujeito bocudo, agressivo, insensato e insensível, um salteador do cofre público, absolutamente, incompetente e desumano, cuja conquista foi cevar a guerra em nossa terra, já tão sofrida por males e enganos. Diante disso, devemos nos perguntar: qual foi sua grande obra? qual transformação Bolsonaro foi capaz de implementar em benefício dos mais pobres? o que deixou para aqueles que o sucederem? A resposta é, simplesmente, NADA. As inumeráveis celeumas que protagonizou, a desavergonhada inépcia diante dos obstáculos socioeconômicos do nosso país, reconhecendo, ainda em 2019, que não nascera para ser presidente, e a aberrante gestão da saúde pública no decorrer da Pandemia do Novo Coronavírus, foram algumas das principais marcas do seu mandato catastrófico. 

(Se você chegou até aqui, provavelmente já notou que há um inesgotável leque de possibilidades para se adjetivar Bolsonaro e sua claque de larápios. Para mim, encontrar tantas palavras para descrever esse desgoverno, não é uma labuta intelectual extenuante, tampouco um esforço para chamar a sua atenção; trata-se, antes de tudo, de um divertimento.)

Enfim, não se pode negar que passamos pela fase mais dramática da Redemocratização. Há até quem diga, com boas razões, que esta foi a maior crise de toda nossa história. Pois, se somarmos os eventos acumulados desde Junho de 2013, as crises passadas não nos dividiram tão violentamente quanto esta que se aproxima do seu término. As projeções mais recentes acerca do PIB indicam que 2023 será um ano de crescimento minguado, tal como ocorrera na década passada. No entanto, uma economia fraca não é necessariamente um estopim de crises maiores, tampouco se trata de um mal irremediável. Em geral, as grandes crises são o desenlace conjunto de fatores altamente explosivos, que se acumularam ano após ano, sem que os governantes se dispusessem a encontrar uma solução que as desarmassem; a princípio, tais crises põem em risco uma sociedade por inteiro, porém, no capitalismo, é a classe trabalhadora quem arca com os custos, enquanto que a casta dos abastados desfruta de um patrimônio quase intocado. No atual sistema econômico, como os marxistas nos falam há mais de um século, a crise se constitui como um aspecto orgânico do sistema em si. Achar uma solução definitiva para essa repetição sucessivas de crises, implica, necessariamente, em superar o próprio capitalismo, porém, em certos ambientes, discutir a superação do capitalismo ora é visto como piada, ora é tratado como um tabu.

Enquanto o capitalismo não morre, voltemos às nossas questões que, embora pareçam provincianas, impactam todo o sistema-mundo.

Foi-se embora o emblemático cercadinho; os caminhões da mudança já expurgaram os salões presidenciais, e aquilo que, há alguns meses atrás, parecia distante, está se consumando diante dos nossos olhos. Bolsonaro perdeu! O esterco está sendo varrido, tal qual um câncer é extirpado de um corpo adoentado; sua persistente sobrevida marcou a todos, lacerou a carne de inocentes, vitimou os mais vulneráveis… porém nada sobrevive à mudança dos tempos. As vítimas de sua gestão devem ser lembradas e redimidas, de modo que, anistiar os algozes da matança bolsonarista, seria o maior tropeço da recém-inaugurada presidência petista. Há que se fazer justiça, a fim de que não se repita a impunidade criminosa em relação aos inconciliáveis crimes da Ditadura Militar.

Amanhã, a despeito das críticas que se possa fazer a Lula e ao PT, se iniciará um novo tempo para o povo brasileiro.

 

 

Daniel Viana de Sousa

© Todos os direitos reservados

sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

Livros lidos em 2022

 

      O ano de 2022 marcou, profundamente, minha vida pessoal, espiritual e intelectual. Os detalhes dessa aventura estão espalhados em textos que publiquei ao longo dos meses, além de outros que pretendo terminar futuramente — à exceção daquilo que pretendo reservar àqueles que me veem de perto. Afinal, todos têm direito a um pouco de discrição em suas vidas.

Aquilo que vou apresentar aqui, ao final de mais um ciclo formativo, é a lista dos livros e autores que li em 2022. Eventualmente, o leitor notará que, neste ano que está prestes a acabar, li quase o mesmo que em anos passados. No entanto, quero deixar claro minha insatisfação quanto ao resultado final. Obviamente, ler não é uma prova de atletismo ou uma espécie de exibição circense, isto é, quantidade e velocidade não são o mesmo que qualidade. Pois há livros e escritores incontornáveis, cuja densidade e complexidade equivalem a dezenas de autores medianos; quem se dedica à leitura sabe bem do que estou falando. Contudo, tenho clareza de que, como escritor e ambicioso aspirante a humanista, eu deveria ler ao menos o triplo do que apresentarei aqui.

Há muito por se aprender, meus estimados leitores e leitoras! O universo cultural e científico criado, ao longo dos últimos milênios, pelos mais notáveis da Humanidade é algo que beira ao infinito; de fato, ninguém pode declarar que sua jornada intelectual concluiu-se, que chegou ao seu limite. Com efeito, quanto mais me dedico à leitura e ao estudo, mais compreendo a profunda dimensão da minha vexatória ignorância. É por causa disso que me frustro com os resultados do meu esforço. Não escondo meu lado preguiçoso e indisciplinado, prisioneiro da procrastinação mais entorpecida e irresponsável. Muitos ainda esperam que isso se resolverá em algum momento do futuro, mas, estando prestes a completar trinta anos, desconfio que esse traço da minha personalidade se manterá inalterado. Enfim, suspeito que serei discípulo dos velhos mestres até o fim da minha vida, o que não se configura como algo necessariamente ruim.

Por fim, espero que esta listinha propicie, aos meus leitores e leitoras, uma noção aproximada do meu percurso ao longo do ano. Evidentemente, não incluí na lista os textos que li na internet, pois a quantidade é demasiadamente elevada, além de estarem dispersos em vários sites e colunas.

 

1.      Vida e morte no budismo tibetano, Chagdud Tulku Rinpoche (Makara); Portões da prática budista, Chagdud Tulku Rinpoche (Makara);

2.      Chamamento ao povo brasileiro, Marighella (UBU);

3.      A política armada, Hector Luís Saint-Pierre (Editora UNESP);

4.      A igreja militante, Charles R. Boxer (Companhia das Letras);

5.      China Tropical, Gilberto Freyre (Global Editora);

6.      Nordeste, Gilberto Freyre (Brasiliense);

7.      Revolução Coreana, Paulo Fagundes Visentini, Helena Hoppen Melchionna, Ana Lúcia Danilevicz Pereira (UNESP); Revolução Cubana, Luís Fernando Ayerbe (UNESP);

8.      Ensaios escolhidos, Augusto Meyer (José Olympio Editora);

9.      Machado de Assis – Vida e Obra Vol. 2, Magalhães Júnior (Record);

10.  Os sofrimentos do jovem Werther, Goethe (Penguin – Companhia);

11.  A arte do Romance, Milan Kundera (Companhia das Letras);

12.  Por que escrevo, George Orwell, (Penguin – Companhia);

13.  O Estrangeiro, Albert Camus (Record);

14.  O Mito de Sísifo, Albert Camus (Record);

15. Mensagem, Fernando Pessoa (Nova Fronteira).

 

Daniel Viana de Sousa

© Todos os direitos reservados

sábado, 29 de outubro de 2022

Memórias deste mês de Setembro (Parte II)

 

Dizer que somos perpetradores e vítimas do nosso entorno é uma obviedade. Tanto contribuímos quanto somos vitimados pelas escolhas dos outros. Reconhecer a própria responsabilidade nessa tempestade que nos devora, é um sinal raro de lucidez e uma amostra de maturidade. De fato, mesmo aqueles que se dizem “neutros”, são construtores da realidade que nos rodeia, pois se recusam a combater, apoiar ou criar um novo lado na cotidiana batalha das ideias. Sempre há algo por ser dito, uma palavra que, ao ser proferida, desvia levemente o rumo ou a interpretação dos acontecimentos diários. Silenciar-se não é ausentar-se, mas se envolver na indiferença por outros meios.

A indiferença da nação no 7 de Setembro de 2022 foi um grito paralisante e sintomático, um sinal do nosso Brasil nessa terceira década do século XXI. Com duzentos anos de “independência” completos, nos comportamos com uma indisfarçável apatia política: fomos à praia, à piscina do prédio, ao cinema da esquina ou à casa da namorada, como se fosse um feriado qualquer, uma insossa data festiva, sem qualquer significância pessoal ou coletiva. Ao invés de nos mobilizarmos na data mais emblemática da nossa nacionalidade, optamos pela distração e o gozo individual. Certamente, não cabe a mim fazer qualquer juízo moralizante acerca do comportamento das pessoas. Afinal, o esgotamento físico e mental ao longo de sucessivas semanas de trabalho merece o devido descanso.

Contudo, a realidade não se transforma sem ação.

Muito poderia ter sido feito, tal qual ocorrera há cem anos atrás, na Semana de Arte Moderna. Nossos compatriotas não são infecundos, nem insensíveis ao que vem ocorrendo nos últimos decênios; aliás, suspeito que haja muita inventividade contida nas periferias, onde não se teme ousar, atrever-se a dar à luz a algo novo, insurgindo-se contra os ditames das classes dominantes. Contudo, no ano do Bicentenário da Independência, não se noticiou nada que contagiasse os jovens, os artistas e os demais grupos sociais que compõem a sociedade brasileira contemporânea. A indiferença coletiva se manifestou num marasmo completo, um desleixo contagioso e desanimador.

Mas, afinal, qual liderança conduziria tal processo de forma diferente?

Há um desencantamento que nos salta os olhos por toda parte, seja na escola ou na fábrica, na delegacia ou na praça… há quem fale que o Brasil falhou, definitivamente, como nação, incapaz de achar uma solução para seus dilemas, mazelas e contradições — será que isso explicaria a indiferença quanto ao Sete de Setembro? Ao longo da História, houve quem tentasse explicar tal sensação íntima — e ao mesmo tempo coletiva — de fracasso nacional. Por incrível que pareça, já disseram que o calor tropical seria a razão que nos condenaria ao subdesenvolvimento! Não creio que possa apresentar aqui uma solução, haja vista que isso requereria a reflexão conjunta de economistas, sociólogos, ambientalistas, empreendedores, políticos etc., profissões que estou longe de querer exercer. Entretanto, estando na condição de cidadão, acho que posso dar algumas opiniões sobre o que vem ocorrendo no Brasil.

Trago este texto às vésperas do segundo turno das Eleições de 2022, de tal maneira que posso lhe afirmar que, independentemente de quem triunfar, o Brasil se conservará fendido, gravemente enfermo das contradições que tem acumulado, no mínimo, desde o impeachment de Dilma Rousseff (2011-2016). Se olharmos numa perspectiva histórica mais abrangente, chegaríamos no Golpe de 1964, responsável por aniquilar um genuíno movimento democrático-popular que lutaria a favor das Reformas de Bases, propostas pelo presidente Jango (1961-1964). Bem mais que os governos do PT e o PSDB, o Golpe de 64 construiu boa parte da sociedade que temos hoje: uma brutal desigualdade social, a favelização dos grandes centros urbanos, a formação de monopólios da comunicação, a concentração de terras em grandes latifúndios etc.

Sempre que pensamos no Brasil que temos — e no Brasil que virá —, lidamos, diretamente, com a herança de gerações passadas, aquelas que lidaram com os desafios de se construir um país como esse, nascido do escravismo, do colonialismo, do extermínio, do obscurantismo, da monocultura e do racismo. Reduzir tais elementos a meras “coisas do passado”, como se seus efeitos se dissociassem do presente, é um erro crasso e um claro apagamento das lutas populares contra as sucessivas opressões que se formaram em nossa história nacional. Os descendentes destes canalhas não querem que o povo tenha memória, muito menos ânimo para lutar nas ruas, pois recordar significa resgatar a luta dos esquecidos, dos vencidos e dos traídos.

Há uma obra inconclusa à espera de um líder capaz de soerguer toda uma nação que sai da sua pior década aos frangalhos. Deixando à parte os bilionários, quase todos sofreram — cada um na sua própria bolha socioeconômica — duríssimos golpes na pandemia, sem contar as vítimas diretas e indiretas da doença em si. Somando-se isso aos demais fatores econômicos e políticos, é cada vez mais claro que o Brasil se vê afogado em crises sistêmicas, convencendo alguns de que não há solução dentro da ordem democrática, de modo a conjecturar rupturas com a Constituição de 1988. A necessidade da sustentação (ou não) dessa democracia que temos há mais de três décadas, será discutida por mim em outro texto.

O trabalho de reconstruir esse país desde suas fundações, cuja responsabilidade, provavelmente, recairá nos ombros de Lula (2003-2010), não se encerrará em poucos anos. Se Jair Bolsonaro (2019-2022) for derrotado, tanto nas urnas quanto nas ruas, veremos o fascismo varrido do Palácio do Planalto, mas não o veremos extirpado do seio do Brasil. Brasília não é o Brasil! Há uma discrepância abissal entre a realidade cotidiana do povo e a vidinha maçante do parlamentar brasileiro. O destino do país sempre esteve nas mãos da classe trabalhadora — mesmo que inconsciente disso —, e não nas mãos dos congressistas engravatados, títeres das forças econômicas que nos tiranizam há mais de cinco séculos. Se as massas se mobilizarem a favor da liberdade, da soberania e da igualdade, o status quo estremecerá e as janelas se abrirão para um novo momento histórico do povo brasileiro.

Há que se ter paciência generosa, confiança e coragem heroicas. Caso contrário, nos afundaremos na depressão e no desespero. O momento em que vivemos, nos exige um sacrifício genuíno por uma causa maior que qualquer individualidade, tendo sempre em mente aqueles que estão por vir e que, certamente, nos julgarão do futuro. Nossas decisões se preservarão por muitos anos na carne, na terra, na água e na memória coletiva. O que diremos a eles? Ergueremos nossa fronte orgulhosamente ou seremos tomados por um vexame súbito? Trata-se de um divisor de águas para mim e você, para quem virá ou que está chegando agora, de modo que a responsabilidade pelo futuro pertence a todos. Nesse cenário, tal como ocorrera em Abril de 1964, não há espaço para isenção ou descompromisso, neutralidade ou bom-mocismo.

Portanto, a luta deve ser renhida e a disciplina precisa ser espartana, sem dar descanso ao fascismo que espreita. Lutemos nas praças, nas escolas, nos presídios, nas favelas, nas florestas e nas praias. Viva o Brasil! Viva o povo brasileiro!

 

 

Daniel Viana de Sousa

© Todos os direitos reservados

sexta-feira, 30 de setembro de 2022

Memórias deste mês de Setembro (Parte I)

 

Fui no sábado (10/09), com meus irmãos, ao show de despedida do Bituca. Que honra! Poucas vezes havia feito uma viagem que me desse tanto prazer.

Esse não foi meu primeiro show de Milton Nascimento, nem foi o mais impactante que presenciei, contudo, quando se está acompanhado de grandes amigos, tudo merece ser lembrado por muitos anos; trata-se de uma experiência sensitiva e espiritual insubstituível, pois nada e nem ninguém repetirá cada brilho, cada explosão sonora, cada surpresa que nos imergiu num oceano revolto de sensações únicas. Esses momentos não tornarão a ocorrer, de tal maneira que será criada, em nós que lá estivemos, a marca de que passamos por algo que toca a magia de se viver, que sombreia o enigmático sentido de estarmos no aqui e agora.

Esse foi um dia feito para se viver vagarosamente, sem pressa de sentir cada sensação interior; ao mesmo tempo, ele também foi feito para conversar a respeito do que anda rolando por aí. Refiro-me, claro, à política, que entra em ebulição à medida que Setembro se despede, dando lugar às expectativas de Outubro. É preocupante como tantas pessoas depositam, no embate do próximo mês, a principal condição para continuarem felizes ou não, isto é, o triunfo do petismo ou da extrema-direita. Qualquer que seja o resultado, muitos, ao se darem conta de sua derrota, vão perder a cabeça por algumas horas, dias ou semanas. Portanto, deve-se ter cuidado após a abertura das urnas. Afinal, a política não se encerra nas eleições, e ainda persiste a possibilidade de Bolsonaro recorrer a manobras inconstitucionais, isto é, um Golpe de Estado.

Voltemos ao show de Bituca.

Milton foi sensível e nostálgico, capaz de entrar em contato com o que temos de mais íntimo. Poucos detêm a chave que acessa tais profundezas, despertando em nosso peito os sentimentos mais singelos. Hoje, a maioria dos “artistas” executam performances espetaculosas, regurgitando uma cacofonia sonora e compondo letras de gosto duvidoso. Nos casos menos catastróficos, “os artistas” fazem pastiche, imitações de meia-tigela, que lhes rendem algum espaço no mercado da subcultura, de tal maneira que acabam angariando alguma fortuna para si e, obviamente, para aqueles que mexem os pauzinhos por trás da cortina.

Este não é o caso da maioria dos artistas brasileiros que obtiveram algum sucesso comercial. Seria tolo ignorar, por exemplo, o êxito estético e comercial de uma canção belíssima como Garota de Ipanema, ou fazer vista grossa para a obra de nomes como Chico Science, Raul Seixas, Baden Powell, Ney Matogrosso, Cartola, Tim Maia, Elis Regina etc. Certamente, Tom Jobim e Vinicius não são os únicos da nossa terra a ocupar o panteão da música nacional e internacional. Ao contrário, muitos ainda emergem da multidão anônima, graças ao seu sacrifício, talento, esforço e, claro, alguma dose de apadrinhamento.

Por outro lado, gênios de verve afiada ainda morrem na praia, sem gozarem de um merecido reconhecimento por sua excepcional inventividade. Bastaria citar o nome trágico do maior afro-brasileiro que se enveredou pela poesia: Cruz e Sousa. O poeta de Desterro nasceu, amadureceu e morreu sem os louros que lhe eram devidos; encoberto pelo racismo e elitismo de uma época em que o escravismo reinava soberanamente, foi oprimido pela miséria e pela indiferença dos seus pares, embriagados com o parnasianismo reinante. Entretanto, bastaria algumas décadas para que ele ingressasse a plêiade dos nossos melhores escritores, sendo visto como um dos poetas mais extraordinários que nasceram no lado de cá do Atlântico. Claro que houveram outros como Cruz e Sousa, tanto antes como após sua morte; na realidade, temo ser esta a sina da maioria, insuportavelmente, posta à parte de qualquer possibilidade de triunfo.

Cabe às novas gerações pôr-se a estudar os que nos precederam, resgatando quem foi esquecido, perdido ou deixado à margem pelas mais variadas razões, refletindo acerca das imposições e circunstâncias que os fizeram perder-se na obscuridade. Afinal, cada época cria — algumas vezes de forma arbitrária e injusta — seus heróis, vilões e figurantes. É salutar criticar-se, de tempos em tempos, o que levou certas figuras a ocupar os altares ou as sarjetas. Quanto a tais regras de julgamento, nós também estamos incluídos, embora seja do costume da crítica não assumir tal falibilidade.

E quanto a Milton Nascimento?

Este músico, nascido de uma mãe solteira e formado no seio de Minas Gerais, é um destes seres cujo vulto, ao atravessar tantos tempos, engrandece a nação, sua gente e sua época. Milton é mais que um musicista habilidoso, ou um compositor bem-sucedido: ele é parte do que nos faz intimamente humanos, capazes de ir muito além do que pensávamos poder. Saber que estamos testemunhando sua partida, é algo que me marca. Pois, ainda me lembro das aulinhas, há vinte anos atrás, na escola pública Maria Geny de Sousa Timoteo, quando a professora nos fez sentar para ouvir, atentamente, “Canção da América” e “Coração de Estudante”. Também me lembro quando meu pai ouvia “Caçador de mim”, dizendo ser esta a canção da sua vida, e minha mãe sentia o mesmo com “Maria, maria”.

Portanto, assim como eu, muitos outros foram tocados por esse artista, que construiu parcerias emblemáticas para a nossa MPB. Estou me referindo àquelas canções com Chico Buarque, Caetano Veloso, Mercedes Sosa, Gilberto Gil etc., listar aqui cada uma delas, demandaria de você, caro leitor, ainda mais de seu exíguo e precioso tempo. Ademais, sendo politizado e sensível às causas sociais, Milton é impecável também nos seus posicionamentos públicos, sem precisar de palavreado para dizer o que ferve no peito para ser dito. Em tempos como este ano atribulado, tal atributo não só é raro, como também é de uma urgência libertadora, tal como se estivéssemos num cativeiro inescapável e dantesco. (Onde estão os nossos libertadores?) Acumulam-se em nosso meio os artistas insossos, tão ingenuamente conformados ao bom-mocismo que lhes é ensinado — ou imposto — desde bem cedo. Buscam agradar gregos e troianos, sendo que ninguém pode fazê-lo sem implodir a própria consciência. Milton os supera com larguíssima vantagem.

Entretanto, digo a quem me lê que este ensaio não é uma crítica musical — ofício do qual estou longe de qualquer pretensão. Na verdade, escrevo aqui um simples depoimento, cujo intuito é tratar sobre sentimentos e algumas memórias pessoais; uma espécie de cântico beneditino, misturado a uma despretensão franciscana, ou seja, extirpado de ambições jesuíticas, com seus noctívagos circunlóquios pascais. Enfim, que cada um tire destes pensamentos o que for aproveitável para si. Para mim, seria uma grande alegria saber que ao menos uma pessoa sentiu uma faísca inquietante em seu coração.

E por que a despretensão franciscana?

Nesse momento em que me atrevo a escrever, sinto-me incapaz de conceber aventuras novelísticas, de modo que escolhi me acomodar a rápidas pinceladas, feitas às pressas em noites insones, permeadas pelo sigilo do silêncio noturno e agitadas pelo sibilar da brisa fria no meu quarto voltado ao oceano escuro. Falta-me fôlego para nadar num rio demasiadamente agitado e pedregoso, tais como romances e afins. Mesmo os gêneros breves me intimidam, por exemplo, com sua feitura labiríntica e intricada sobreposição de camadas interpretativas. Portanto, reconheço que perdi aquele atrevimento típico da mais incauta petulância, quando os Elíseos parecem ao alcance de mãos mundanas, quando a sombra olímpica ascende no limiar das possibilidades mais venturosas.

Até que, de repente, me achei preso ao marasmo do anonimato, quando os sonhos ecoam, na mente alheia, como uma fábula abobada, um anseio que beira a maluquice completa. Sonhar para quê? Essa sempre foi uma pergunta tola para os sonhadores e, ao mesmo tempo, onipresente para os pragmáticos que teimam em “manter os pés no chão”. Por outro lado, como diz o saber popular: sonhar não custa nada. É prazeroso antever, nas miragens interiores, um cenário de triunfo sobre todos os obstáculos. Afinal, quem não quer, em algum momento do futuro próximo, “ser feliz pra valer”? Entretanto, a existência que partilhamos não está sob o nosso comando. Podemos agir para dobrá-la à nossa vontade pessoal, mas sempre persistirá a possibilidade de que a reação do nosso entorno seja contrária às nossas expectativas.

 

Daniel Viana de Sousa

© Todos os direitos reservados

sábado, 20 de agosto de 2022

Cálice Profano

 


Alheio às velhas luzes distantes,

cujo seráfico vagar eu me aparto,

bebo do cálice de visões delirantes,

santo sumo, profano e catártico.

 

As hostes me banem do espaço

sem poder ferir meu furor radiante,

pois nasci para o fragor famigerado

de ser completo a todo instante.

 

Ferve nisso o Maligno inebriante,

cujo prazer é permanente fardo.

São vermes vorazes de amante

possuídas sem me deixarem farto.

 

Trago, assim, a rijeza do diamante

e a rebeldia de quem é incauto,

e abrir espaço no mar fustigante

para fazer emergir meu último ato.

 

Não fui estimado pelo celebrante

do ritual com o qual não comparto.

Pois, sou proscrito sem atenuante,

vadio apócrifo desde o próprio parto.

 

 

 

Daniel Viana de Sousa

© Todos os direitos reservados

domingo, 31 de julho de 2022

Primeiros passos na militância

 

O fato que pretendo discorrer neste texto, ocorreu em meados de julho, mais precisamente no dia quinze, uma sexta-feira agitada e ensolarada. Foi na sede de um Sindicato tradicional aqui na Paraíba que tive contato com um coletivo de esquerda.

Fui espontaneamente, sem convite ou razão que me obrigasse a estar presente numa rua que, raramente, costumo estar presente. Localizada no Centro de João Pessoa, a Duque de Caxias é uma rua que compõe uma das mais tradicionais áreas de comércio popular da nossa querida capital, o ponto mais oriental das Américas; ela é movimentada no decorrer da manhãzinha e da tarde, até fechar as portas ao final do dia, quando os trabalhadores paraibanos, em geral, se recolhem para um merecido repouso noturno. Provavelmente, a sua loja mais famosa é o Tamborim de Ouro, cuja seara é a venda de mercadorias ligadas à musica — lembro-me de ter comprado produtos nela há muitos anos atrás. Enfim, é muito simples de se chegar ao sindicato, embora, para aqueles que ignoram o sindicalismo paraibano, sua existência seja, relativamente, obscura.

 Em parte, tal como uma descida de paraquedas, esta viagem foi uma loucura venturosa e, secretamente, desejada, isto é, de incertezas e anseios à flor da pele; além do mais, ela foi, sem dúvidas, um encerramento da zona de conforto que caracterizou minha preguiçosa atuação política nos anos recentes. Bastam poucas palavras, poucas e breves alocuções para explicar esse intento. Acomodei-me, irresponsavelmente, ao conforto da casa por tempo demais. Estamos num tempo em que o silêncio presente será causa para vexames futuros. Não se trata de filiar-se a uma vertente política específica, mas de antagonizar, de mente e peito abertos, a besta que emerge para nos amordaçar com sua tirania pérfida.

Nos dias de hoje, aventurar-se na política sem qualquer perspectiva de ganho imediato e pessoal, ou, em termos mais românticos, entregar-se à realização de um sonho para si e para o mundo, é um indício de abnegação e, ao mesmo tempo, de heroísmo espartano. Afinal, todo contestador é um herói dos tempos modernos — iniciados justamente por uma revolução na França. Ele sabe que enfrentará uma maré de adversidades, inimigos com poder suficiente para lança-lo às masmorras da tortura, do terror e do silêncio, ou mesmo de pôr um fim à sua vida numa viela qualquer, sem que ninguém possa ao menos tomar nota de seu aviltante apagamento.

Não é coincidência que, geração após geração, os abutres do poder se esforcem em nos impor um verdadeiro vale de lágrimas, absolutamente castrado da mais vaga esperança. Em outras palavras, eles querem que nos submetamos a um mundo sem sonhos e sonhadores, sem questões e questionadores, sem transformações e transformadores, cujo desejo, violentamente reprimido, acabe por se converter em enfermidades psíquicas. Viver assim, tornou-se um convite ao martírio, mas sem o direito de santificação, sem possibilidade de qualquer honraria por quem quer que seja. Diante disso, o que nos resta senão a rebelião?

A cada dia que passa, suspeito que caminhamos para um esgotamento da ordem inaugurada em 1988. A despeito de anseios e esforços bem-intencionados, o bordão “defender as instituições” parece esgotar-se, incapaz de fazer emergir a nossa gente querida da sua completa desilusão política. A violência — nas suas mais variadas formas e acepções — se acentua a ponto de colocar em risco qualquer um que saia às ruas para defender seus ideais, especialmente se este sujeito for contrário a Bolsonaro, inimigo execrável da nação.

Nesse tumultuoso cenário, ser revolucionário não significa apenas destroçar o que condenamos externamente, mas se rebelar também no que se refere às falhas internas — como a sensação de impotência, o autoengano e a crença em promessas falsas e irrealizáveis —, além da impotência diante das maquinações dos encastelados. Não se trata somente de ter uma convicção férrea, há que se ver como artista libertário, cujo propósito sagrado é expressar no mundo sua inquietude visceral, ou seja, criar algo novo, enterrando, no passado, a decrépita ordem capitalista.

Fazer nascer a revolução socialista, sempre nos parecerá um sonho irrealizável, até que, para nosso espanto, novas condições propiciem uma súbita virada no tabuleiro. Nesse instante, nós daremos conta de que, mesmo aquilo que nos parece solidamente firmado na nossa realidade, está exposto à mudança da maré. Entretanto, por trás disso, deve haver um acúmulo de forças por parte da esquerda socialista, uma construção ininterrupta e inabalável das forças revolucionárias no seio das massas populares. Trata-se de uma labuta que, de fato, pode consumir uma vida inteira, exigindo do nosso ego uma doação apaixonada e despretensiosa.

Foi nesse sentido que trilhei o que a vida me propôs e, ao mesmo momento, parti em busca do que sonhei, mesmo que os sonhos estejam aferrados à mente que os alimentou em noites amargas, assombradas pela sensação de fracasso e marasmo. Sair de si mesmo, partindo à procura daquilo que se deseja, é a vocação — e a punição — dada pelo destino ao nosso coração humano. Se o negarmos, sofreremos o suplício do vexame, a tortura do desengano. Engaiolar-se numa alcova, é o armistício dos miseráveis; podar as nobres asas, dadas generosamente pela graça celeste, é a traição de quem se igualou aos vermes da terra. Se assim o fizermos, nunca mais ousaremos fitar a nobreza dos velhos heróis. Portanto, não nos acovardemos com as intempéries daquilo que se avizinha, pois há um suave prazer em se entregar ao mistério daquilo que, embora envolto em dúvidas e mistério, certamente virá. Encerro aqui minha digressão.

Voltemos, portanto, à questão primordial deste texto.

Houve quem apostasse que os piores dias da Pandemia eram “coisa do passado”, de modo que o terror perante a morte sumira do rosto de quem eu vi de perto, bem no Centro da capital nordestina. Se isso é correto ou não, já é outra discussão. As ruas efervesciam, as calçadas se achavam apinhadas por viajantes, consumidores e vendedores itinerantes. Os sinais da miséria e da fome, precarização e subemprego, saltavam à vista de todos, conquanto muitos tampassem a consciência para isso. Tal cenário alimentou minha obstinação, nutriu, fartamente, a certeza quanto àquilo que clamo para meu país: só uma mudança na estruturação da sociedade brasileira será capaz de dar um fim à macabra realidade que temos diante dos nossos olhos; só uma sociedade reinventada pela classe trabalhadora no poder, poderá dar uma justa oportunidade aos seus humilhados e explorados cidadãos e cidadãs. Resignar-se ao conforto de quatro paredes, não é mais uma opção humanamente aceitável.

Em minha história de vida pública, o evento na rua Duque de Caxias foi a segunda vez que estive num evento político. A primeira vez ocorrera em 2013, nas manifestações que viriam a ser conhecidas como "Jornadas de Junho". Nesse evento organizado por um coletivo jovens e estudantes, vários militantes fizeram suas alocuções, das quais nenhuma discordo por completo. Decerto, as análises pareceram acertadas, consistentes e responsáveis. E, mesmo se tratando de jovens na flor da idade, não vi sinais de esquerdismo, ou de qualquer voluntarismo atabalhoado. Por fim, a audiência não passava de quinze jovens, o que achei dentro do esperado; ela permaneceu calada até o encerramento do encontro.

Não nego que, às vezes, sinto um apelo em almejar a aristocracia, tal qual um duque consagrado e aceito pela nobreza britânica; isso vem daquela parte do meu ego mais inflado e pequeno-burguês, mexendo no meu lado mais ambicioso e individualista. Mas, ao me olhar no espelho do quarto, vejo um nordestino mestiço, nativo de um povo sempre visto como ralé, nascido de uma cultura desprezada até pelos seus conterrâneos. Sou da periferia de uma região periférica, explorada até o talo pela rapinagem de potências estrangeiras e de elites pútridas, traidoras imperdoáveis de sua pátria-mãe. A elas devemos dar um basta, lhes tomando o poder, antes que nos seja reservado o destino amargo de Canudos. Não quero, portanto, ser aceito nos salões de mármore, enquanto meu povo — o útero que me nutriu e me criou desde o primeiro dia — padece na mais vexaminosa pobreza e na mais constrangedora submissão. Quero a libertação da nossa gente paraibana, nordestina, brasileira e trabalhadora. Quero vê-los triunfar ainda nesta geração.

Não sei se o movimento em questão será a força política que tomará a dianteira do processo revolucionário brasileiro, ocupando o posto máximo do novo socialismo na América Latina. Ainda que isto seja viável, creio ser impossível prever este tipo de eventualidade no momento atual. Pois, nos encontramos na gênese de um processo em mutação permanente. As forças progressistas e reacionárias, no que diz respeito às suas mais diversas matizes e formas, avançam e recuam, ganham aqui e perdem acolá, sem que nenhuma seja capaz de criar um consenso que derrote, por inteiro, o seu respectivo opositor. Ao contrário, há um impasse difícil de ser superado. No momento em que escrevo este texto, nada está garantido. 

Nenhum movimento é perfeito; nenhuma liderança é impecável e o futuro que sonhamos será construído, inescapavelmente, com erros e acertos, tropeços e abraços. Mas, de uma forma muito pessoal, notei em mim uma dose pertencimento, tal como alguém que, finalmente, chega à sua casa.

No dia 29 de Julho, encontrei-me, na Praça da Paz, com uma liderança do partido, que me falou acerca da instituição que representava, seus aspectos mais gerais e publicamente conhecidos. Preocupado com a discrição da nossa discussão, o militante conversou comigo por meia hora num banco afastado, longe da atenção alheia. Seu rosto não demonstrava preocupação, mas se mantinha alerta quanto ao nosso entorno, mesmo quando parecia sorrir ou divagar. Certamente, ninguém parecia (e nem poderia) nos ouvir, mas permanecemos conversando em voz baixa, ainda que os assuntos debatidos nos avivassem a fala e o olhar.

Não sei se entrarei, definitivamente, no partido, por que isso não depende só de mim, nem posso afirmar que sou adaptável à instituição e sua rotina, haja vista que nunca fui fã de reuniões burocráticas, debates etc. — às vezes, prefiro manter-me como um intelectual caseiro, quase monástico, sem grandes obrigações com quem quer que seja; há nisso uma boa dose de tentação por parte de meu lado acomodado. Há algumas horas, fui incluído no grupo de jovens que desejam ser recrutados pelo partido. Acho que isso é um bom sinal, pois o movimento parece valorizar a entrada da juventude politizada. O resto, só o tempo é quem dirá.

Assim sendo, deixei a resignação para trás e abracei um novo tempo, mais incerto e perigoso, mas que há de ser, também, uma aurora libertadora para a nossa gente tão espezinhada, roubada e manipulada, mas que, desde já, nasceu com a vocação para a genuína liberdade, aquela à qual todos um dia irão alcançar. Viva o Brasil! Viva o povo brasileiro!

 

Daniel Viana de Sousa

© Todos os direitos reservados

quinta-feira, 30 de junho de 2022

A miséria que nos ronda (Parte II)

 

Nosso povo carece de elementos básicos do bem-estar humano, de tal maneira que sua vida está circunscrita a uma sobrevivência elementar, quase selvagem, tal como se vivesse numa etapa anterior à mais parca civilidade.

Falta saneamento às casas, acesso à alimentação, saúde e à educação de qualidade, emprego às massas, segurança nas ruas e respeito aos direitos humanos, liberdade à imprensa e minorias sociais, combate infatigável a todas as formas de discriminação, cumprimento pleno e respeito inquestionável à Constituição, reconhecimento e valorização da nossa Cultura, fim imediato dos crimes ambientais, reforma agrária, tributária, penitenciária, política e urbana, autêntica soberania na política externa nacional etc.

Nossa crianças e jovens, em especial, sofrem agruras semelhantes àquelas que vemos em países conflagrados por conflitos civis. A violência excruciante, o desemprego generalizado e o esfacelamento familiar são alguns dos elementos que compõem a sua realidade. Isso é — e permanecerá sendo — responsável por um sofrimento geracional a ser transmitido para o futuro, ou seja, a menos que haja uma transformação profunda e imediata na realidade da juventude, o Brasil colherá frutos ainda mais perniciosos que aqueles do nosso momento presente. Se quisermos saber a direção para a qual caminha o nosso país, basta olharmos como está a juventude, o que, sem dúvidas, deveria comover e agravar as preocupações das mentes lúcidas e dos corações ardentemente humanos.

No entanto, expressar-se, hoje em dia, num tom radical, não soa bem para quem vê no radicalismo uma semente da sua própria ruína enquanto classe dominante; também não soa bem para quem se esforça em ascender a certos rendez-vous regados a vinho, licor e champanhe, nas coberturas gourmet com vista panorâmica. Já houve tempos em que ser radical “estava na moda”, até soava culto ser “contra o sistema” e “sonhar com outro mundo”; refiro-me aos efervescentes anos sessenta, mais especificamente ao Maio de 1968, a nossa derradeira era revolucionária — hoje tão distante da postura bem-comportada e resignada de quem não se atreve a “assustar os investidores” ou causar “pânico nos mercados”. De fato, em muitos círculos autointitulados progressistas, é concebida a ideia de moderado como alguém inteligente, atento às necessidades dos “diversos setores da sociedade”, disposto a ouvir “quem trabalha e quem produz”. Assim, expurga-se qualquer linguagem inconformista do vocabulário político, reduzindo os incautos a uma consciência ingênua e manufaturando a mesmice que vemos nas campanhas dos sucessivos pleitos eleitorais. Vê-se, entretanto, um rechaço popular, uma rejeição que vem das íntimas entranhas da nossa gente, sabiamente reprimida por quem prefere, a qualquer custo, preservar o status quo.

Confia-se cada vez menos nos políticos, nos partidos, nas alianças e promessas, nos conchavos e em todos os artefatos simbólicos que caracterizam a democracia liberal gestada no Ocidente. Uma parte dessa gente fez um movimento à direita, dando sinais de adesão a um fascismo repaginado para a mediocridade pós-moderna, enquanto que outros ainda trilham às cegas pelas vielas tortuosas do cotidiano, apreensivos quanto ao que veem na paisagem concreta e na virtual, lutando para assimilar o que ocorre num mundo vulcanizado por abalos sísmicos. Mesmo os intelectuais mais bem preparados dão claros sinais de dúvida e, quando perguntados acerca do que virá, perdem-se como estudantes recém-chegados aos corredores universitários. Nesse contexto, quem alimenta dogmatismo a partir de preceitos ideológicos, em geral, tropeça nas próprias pernas, ilude-se e afoga-se na sua íntima verborragia, precisando rever suas premissas ao sabor das estações, pois aquilo que deu forma ao seu proselitismo mofado, foi superado por mudanças que se acumulam à revelia das nossas afeições particulares, desejos arraigados e obstinações patológicas. Às vezes, parece tratar-se de um apego infantil a um traje de festa démodé para os novos tempos que se anunciam.

Desde a crise financeira da primeira década do Século XXI, os ocidentais se veem envoltos na penumbra do incerto, no negrume das brumas pantanosas. Seu orgulho — de origem escravagista e imperialista — quanto à superioridade inconteste da civilização ocidental abalou-se de tal modo que, para o bem ou para o mal, pode jamais se erguer outra vez neste século. Nossa geração terá de salvar aquilo que traz consigo algum mérito, que foi bem-intencionado em sua concepção e feitura, e olhar para o futuro à nossa frente, pois já não há nada que se possa fazer para salvar o velho e mofado Ocidente de séculos passados. Tal como os monges cristãos que, em meio às invasões dos “povos bárbaros” ao Império Romano, recolheram os manuscritos da cultura greco-latina em seus mosteiros, nós também devemos salvar aquilo que foi libertador para a Humanidade.

Nesses tempos de iconoclastia, vandalismo e autoflagelação, é comum encontrar pessoas nascidas no Ocidente que cospem em elementos controversos da sua própria cultura. Isso reflete uma crise mais ampla, que venho tentando — em meio às minhas inúmeras limitações — expor. Acumulam-se os casos de incêndio a igrejas, destruição de monumentos e desprezo a autores e artistas antes enaltecidos. Esse tema exigiria uma reflexão mais cuidadosa e aprofundada, mas é perceptível que essa rebelião generalizada ocorra simultaneamente à decrepitude das instituições do Ocidente. Questiona-se tudo que antes fora considerado espaço inexpugnável, inviolável por qualquer um que nascesse na espécie humana. O questionamento do próprio gênero, por exemplo, é uma dessas rebeliões que emergiram subitamente, surpreendendo até os liberais mais visionários e progressistas, seres afeitos ao sabor das mudanças. Num espaço de poucas décadas, tudo passou a ser transitável e transmutado, um meio constantemente movediço e mutável, cujas possibilidades beiram a mais estimulante infinidade.

Quem se preparou para um mundo assim?

Creio que, individualmente, ninguém pôde se preparar; quem soube fazê-lo com desenvoltura, apenas se dispôs a ouvir os diferentes cantos, lamentos e vozes, tanto aquelas do topo quanto aquelas da sarjeta, os privilegiados e os espoliados. Reter-se a apenas uma margem do rio da História, uma feição do rosto humano, significa não apenas a perda de uma perspectiva única e preciosa, como também o autoengano quanto à veracidade das próprias narrativas e conclusões. Portanto, é absorvendo o pluralismo das diferentes experiências, a completude da — paradoxal — união dos antagonismos, que se pode realizar algo próximo à felicidade pessoal e coletiva.

Porém, idealismos à parte, os fatos apontam para uma crise sistêmica.

Há quem fale que estamos presenciando o fim da ordem unipolar, liderada pelos Estados Unidos da América desde o fim da Guerra Fria; outros creem que está sendo construído um arranjo multipolar, no qual as nações emergentes, enfim, superarão a condição de meros coadjuvantes, ocupando os espaços deixados pelas velhas potências imperialistas; por fim, há quem alimente a visão de que — tendo o século passado se caracterizado pelo triunfo dos EUA — este será o século chinês ou, no mínimo, o século asiático, haja vista toda a potencialidade deste imenso continente, especialmente nas interações socioeconômicas e geopolíticas entre China, Rússia, Irã, Índia, as Coreias e o Japão.

A curto prazo, o diálogo entre esses gigantes é complexo e, em alguns casos, problemático, haja vista as rivalidades ancestrais, desencontros e disputas fronteiriças. Isso sem contar o perigo rotineiro de uma escalada bélica de potências nucleares, como é o caso da turbulenta relação entre Paquistão e Índia. Ademais, não se pode ignorar o risco de proliferação do jihadismo nas regiões de maioria muçulmana, como é o caso do Xinjiang, na China, e da Chechênia, na Rússia — também assombra as cúpulas governantes o apelo separatista de regiões como o Tibete, Hong Kong etc. Mesmo assim, está claro o quão nítido é o potencial de uma coalisão regional em torno de processos e interesses compartilhados. Possivelmente, a inciativa mais célebre seja a Nova Rota da Seda, fomentada pelos comunistas chineses, que, se vier à tona, viabilizará uma prosperidade nunca antes vista nos países afiliados a tal projeto. Sem dúvidas, estamos no nascedouro de uma grande mudança que vem ganhando forma a passos de criança.

Uma coisa é certa: a nova ordem internacional encontra-se numa fase embrionária, demandando décadas para se firmar incontestavelmente. A despeito das substantivas transformações geradas pelas derrotas militares no Afeganistão e na Síria, pela Pandemia do Novo Coronavírus e pela Guerra da Ucrânia, ainda há um caminho tortuoso pela frente. Engana-se quem se apressa em soar as trombetas, tal como se a China houvesse cruzado o Rubicão. Ela — ainda — não o fez, conquanto recorde o mundo acerca de sua vocação ao protagonismo, imbuído de orgulho ancestralmente milenar. Não há como recusá-la esse papel, tornando-a um satélite da política externa ianque, tais como Japão, Coreia do Sul, Taiwan, Filipinas e Austrália. Por fim, ao se definir como socialista em pleno Século XXI, na sua essência mais íntima, a China aprofunda os temores de Washington, que começa a ver a ressurgência do conflito ideológico da Guerra Fria, ainda que Pequim negue a disseminação da sua revolução e do seu modelo de governança. Hoje, no que depender da cúpula chinesa, não haverá revolução socialista mundial, tal qual fora ansiado, em 1917, pelos bolcheviques, e sim uma afirmação nacionalista do povo chinês em meio ao sistema-mundo capitalista. Em sua perspectiva, a China está retomando o papel que lhe cabe: ser o Reino do Meio, em torno do qual orbita toda Humanidade.

Contudo, as rivalidades e atritos entre as facções mais aguerridas dos diferentes hemisférios mundiais, os sino-russos e os anglo-americanos, não se encerrarão com a ascensão chinesa ou, ainda, com a paz na Ucrânia e no estreito de Taiwan. Pelo contrário, tais tensões tendem a se agigantar, na medida em que os anglo-americanos e seus satélites se aferram ao domínio que tomaram à força e conservaram à base de colonização, escravidão, espoliação e extermínio nos últimos cinco séculos, refutando qualquer possibilidade de cooperação no rearranjo de uma ordem global mais diversa, fraterna e generosa. Esta visão imperialista está entranhada na cosmovisão dos líderes do Ocidente, de modo que qualquer contestação ao status quo deve ser tratada como um crime de lesa-pátria, um anátema intolerável, digno de excomunhão imediata. Foi o que ocorreu, por exemplo, com Cuba e Venezuela; foi o que justificou os golpes militares no nosso continente, tanto no século passado quanto no tempo presente; e é o que se sucederá com as periferias que se rebelarem aos ditames vindos do norte. Não há espaço para vozes dissonantes.

A América Latina e o Caribe serão, sem dúvidas, um dos campos de batalha mais disputados pela supremacia dessas coalisões antagônicas, não só devido aos seus recursos e potencialidades vastíssimas, mas também pela sua vantajosa localização geográfica: o sensível ventre dos Estados Unidos da América.

Além disso, ainda é possível que o cenário geopolítico dê uma espécie de “cavalo de pau”, isto é, que os ianques recuperem a dianteira, postergando sua queda por mais algumas gerações à nossa frente; também é possível que, cientes de sua queda a um papel secundário, os imperialistas mais insanos recorram à sandice de uma hecatombe nuclear, apagando toda Humanidade da face da Terra. Dessa forma, seria encerrada a dramática jornada da espécie humana, marcada tanto por sonhos messiânicos e belezas graciosas quanto por tiranias e loucuras diabólicas. Por mais sinistro e aviltante que seja esta hipótese, ela ainda está sob a mesa dos donos do poder, tolos embevecidos por seu militarismo despótico e soberbo. Crer que o bom senso irá nortear as tomadas de decisão desses gentlemen encastelados, é um autoengano de quem prefere se cegar a assumir que está sendo conduzido ao abatedouro. Em suma, a força militar, cultural e econômica da nação estadunidense ainda é sobrepujante, excede qualquer outra potência do nosso passado recente e alcança todos os cantos do planeta.

 

Daniel Viana de Sousa

© Todos os direitos reservados

terça-feira, 31 de maio de 2022

A miséria que nos ronda (Parte I)

 

         O fato de Mario Vargas Llosa apoiar a reeleição de Jair Bolsonaro, testifica a decrepitude da direita liberal, algo que, aliás, não é inédito na História do nosso flagelado continente — tampouco um dado isolado dos fenômenos em operação na atualidade nacional e internacional. É só mais um atestado quanto àquilo que os pobres e marginalizados sempre sentiram na própria pele: violência, desumanidade, exploração e o mais vil desprezo.

     Quero antecipar de antemão que não pretendo fazer uma crítica à obra literária do autor peruano, mas refletir acerca de seu mais recente posicionamento político quanto às Eleições Gerais de 2022.

         Em primeiro lugar, é preciso que se diga que a afeição da direita liberal pelo que há de pior na política do nosso continente não é um ponto fora curva, ou uma indesejável fatalidade que proveria de um período histórico caracterizado por “extremismos” de ambas as partes do espectro político.

O fato é que, ao longo de séculos de dominação por parte das elites escravagistas, sempre fomos explorados pelos políticos “preocupados com o mau humor do mercado”, “o intervencionismo do Estado na Economia” ou aqueles que profetizavam “a iminente fuga de investidores”. Estes plutocratas e oligarcas não só ajudaram a perpetuar regimes tirânicos — como as ditaduras gestadas nos conflitos da Guerra Fria —, como também fizeram vista grossa a tragédias devastadoras, como, por exemplo, o morticínio da Pandemia do Novo Coronavírus. Isso reflete sua completa indiferença quanto aos apelos por moradia, segurança, emprego, acesso à cultura, educação e saúde de qualidade, bem como o fim da inflação, da desigualdade social e da fome.

            De fato, a direita liberal e a extrema-direita caminham lada a lado quando o assunto é a perpetuação da exploração da classe trabalhadora e a submissão vexatória dos povos da América Latina à Casa Branca. Se o farão explicitamente agora, assumindo uma aliança execrável, tal como ocorreu em 2018, é só um detalhe periférico. Nos bastidores, tudo caminha de acordo com os desejos das classes dominantes, que sabem estar no comando de todo o processo de sucessão (ou não) de Jair Bolsonaro, o presidente troglodita e mentecapto.

            Isto evidencia o fato que, em nosso atribulado continente, o conflito de classes assume um aspecto mais brutal, movediço e perigoso que em qualquer outra região do capitalismo. Ainda assim, até o momento em que escrevo este texto, nenhum postulante ao Palácio do Planalto que se oponha a Bolsonaro promete convocar e conduzir as massas a um processo de disputa pela hegemonia social, cultural e política do Brasil. Tratam-se de cabos eleitorais com vastíssima expertise quanto ao processo eleitoral, conquanto incapazes de abrir novos horizontes, novas possibilidades para as massas angustiadas. Para uns, Lula é mais do mesmo; enquanto que, para outros, Bolsonaro é o pior do mesmo.

A aliança de Lula com Geraldo Alckmin e as demais oligarquias do Nordeste — embora tenha sido uma “boa jogada política” — reafirmou a vocação do ex-presidente como um homem de conciliações de cúpula, de conchavos em buffets nababescos e requintados, um espaço no qual as demandas do povo não são discutidas ou levadas em conta. É claro que os seguidores do ex-presidente apontarão o fato que ele também janta com os pobres, algo incomum se levarmos em conta a biografia dos seus antecessores. Mas, não é preciso ser um experiente analista político para saber que, a despeito de enaltecer sua origem nordestina e operária, quem faz a cabeça de Lula são os gentlemen da Faria Lima e da Avenida Paulista. O apreço de Lula por suas raízes populares, ainda que possa denotar uma sincera afeição pessoal, me parece uma elaboração discursiva para causar arrepios nos ouvintes das camadas populares.

Não é difícil ver que Lula fará todo tipo de arremedo estratégico, movendo-se mais e mais para o centro político, de modo a convencer as elites de que fará uma gestão bem-comportada e equilibrada, sem grandes surpresas ou radicalismos. Daí o convite ao ex-governador Alckmin, ilustre emissário dos endinheirados paulistas. Isso é tudo que eles mais querem: tranquilidade social para fazerem seus negócios com os estrangeiros sem quaisquer sustos no âmbito doméstico, ou seja, pôr o povo para hibernar e deixar passar a boiada. Para tanto, Lula não vacilará em se aliar aos que derrotaram Dilma Rousseff, fizeram base de apoio a Michel Temer, elegeram Bolsonaro etc. Afinal, o ex-presidente nunca deixou de enfatizar que, para governar, é preciso dialogar com quem o povo elege, sem jamais apelar às ruas, ao calor das massas. Certamente, seria ingenuidade esperar que houvesse uma mudança no repertório de Lula a essa altura da sua trajetória política. O ex-presidente jamais será um revolucionário, um antagonista do sistema que o colocou na cadeira presidencial por oito anos seguidos.

Não nego que exista uma larguíssima diferença entre estas duas personalidades políticas, Lula e Bolsonaro, especialmente no fato de que o ex-presidente seja o mais autêntico dos democratas e o mais popular dos nossos presidentes, muito mais fiel à ordem instaurada após 1988 que o capitão reformado. Porém, nenhum dos dois é capaz de romper com uma das piores chagas do sistema representativo brasileiro: a corrupção. Pois, ao longo de suas trajetórias políticas, nenhum dos postulantes confrontou, abertamente, esta odiosa chaga, que parece sobreviver a qualquer sistema político, seja ele uma Ditadura Militar, uma República oligárquica ou uma Democracia populista. De fato, a despeito da instabilidade provocada pela Operação Lava Jato, a corrupção parece proliferar em qualquer ambiente ou conjuntura, perpetuando-se geração após geração, sem que nenhum esforço político seja capaz de derrota-la. E uma parcela expressiva do povo, sem abrir mão de suas preferências, há muito tempo se deu conta disso. Entretanto, seria preciso escrever outro texto para me aprofundar no tema da corrupção.

            Diante do antagonismo de dois “populistas” — maneira pela qual os meios de comunicação costumam rotular tanto Bolsonaro quanto Lula —, a direita liberal faz sua escolha natural e previsível: aliar-se ao extremismo de direita. De fato, quem a conhece de perto, não foi pego de surpresa com a fala de Mario Vargas Llosa, haja vista que, em tempos de instabilidade social e crise aguda do capitalismo, o liberalismo de direita sempre abre mão de seus escrúpulos para reter o controle da política econômica, enquanto o extremismo executa suas arbitrariedades e perseguições mais abomináveis, ou seja, são dois lados da mesma moeda.

Na realidade, para manter ou alcançar o poder, a extrema-direita e a direita liberal se habituaram não somente a costurarem entre si uma aliança espúria, mas também a recorrer às forças aquarteladas, ao pequeno e grande empresariado, aos devaneios da grande imprensa, aos medos da classe média decadente, aos evangélicos e católicos ultraconservadores e à intervenção direta de Washington. Este é um script que os latino-americanos estão acostumados a ver se repetir uma geração após a outra, como se fossemos eternas vítimas de uma doença hereditária e incurável, capaz de se renovar à revelia dos nossos mais extenuantes esforços políticos. Basta poucas palavras para resumir nossa condição: os senhores da matança expulsam e executam nossos líderes, matam de fome e ignorância nossos filhos, destroem a ferro e fogo nossos biomas, colocam à venda nossas riquezas, espezinham nossa cultura, saqueiam nosso patrimônio, apagam nosso passado, escrevem nosso futuro e escravizam nossos braços.

Como escapar dessa condição subdesenvolvida, sub-humana e, terrivelmente, dantesca? Certamente, o triunfo dos povos oprimidos não provirá da sapiência de uma direita liberal, que se vê como uma nata esclarecida, requintada, racional e cosmopolita. Isso é gabolice deseducada e provinciana, um excremento intelectual feito sob medida para ludibriar um eleitorado iletrado, despolitizado e desesperançado, sempre à procura da mais recente novidade no mercado de quinquilharias ideológicas do nosso capitalismo periférico.

Algo tão ruim e antipopular só poderia vicejar em regimes ditatoriais, através de estelionatos eleitorais ou, como é o nosso caso, numa crise aberta do sistema político e institucional, iniciado após mais de vinte anos de Ditadura Militar e a promulgação, em 1988, da Constituição Cidadã. Sem dúvidas, trata-se de uma crise de enorme gravidade e, ao mesmo tempo, profundamente peculiar, capaz de oferecer oportunidades inauditas para setores da política que antes estavam à margem da tediosa, simbiótica e amorfa díade PSDB-PT. O radicalismo, o inconformismo e a possibilidade de ruptura completa com tudo que se construiu, estão novamente em pauta, na boca do seu Zé e da dona Maria. Isso alimenta temores em muitos, tanto quem mora no andar de cima quanto aqueles que ainda se lembram do Regime Militar. Como partido da ordem, o PT luta ferrenhamente pela manutenção do sistema que colocou Lula na presidência, ou seja, com a chave do cofre público. Em outras palavras, “que se dane o socialismo”!

Claro que os petistas terão nostalgia dos tempos em que o tucanato era seu amado arquirrival, já que suas vitórias mais contundentes se deram sobre o Picolé de Chuchu, o vingativo Aécio Neves e José Serra, com sua implacável bolinha de papel. A miséria ideológica dos tucanos terminou por ser a mola propulsora do lulismo; com efeito, muitos brasileiros passaram a votar no PT em reação ao neoliberalismo propalado pelas gestões tucanas, enquanto que, movidos pelos escândalos de corrupção, outra parcela de brasileiros aferrou-se a votar contra o PT, de tal maneira que se consumou o “voto da negação” ao candidato mais rejeitado publicamente. Nas eleições que se aproximam, esse voto, movido por emoções e rancores intestinais, determinará o vencedor.

O tempo, por sua vez, teima em se colocar em movimento, pondo em marcha potências e impulsos irrefreáveis, sejam eles racionais ou não. Por mais que as forças dominantes se esforcem em manter as massas sob o seu controle despótico, a mudança dos ventos insiste em bater à nossa porta, estejamos de prontidão ou flagrados em crime de lesa-pátria. O que hoje — devido a entraves e circunstâncias momentâneas — pode parecer insuperável, amanhã se mostra irremediavelmente moribundo, frágil como uma torre de areia à beira-mar. Por vezes, quem se encontra no olho do furacão, tende a “tampar o sol com a peneira”, ou seja, encontrar soluções fugazes e parciais para problemas que excedem em demasia suas capacidades de resolução. O sucesso passageiro dessas tomadas de decisão ilude os ocupantes do poder ou do simples gerenciamento do país, no caso, refiro-me ao próprio Lula e seu círculo decisório. Eles foram incapazes de perceber que seu modus operandi não só consagrou sua própria derrocada moral, como também os cegou para a iminência da ruína consumada com o impeachment de Dilma Rousseff, a condenação e prisão de Lula, bem como a eleição de Bolsonaro. De repente, os aliados lhes deram as costas, as massas não atenderam seu grito por socorro e os adversários os golpearam sem compaixão. Em suma, a entropia das forças políticas e sociais é inadiável.

Ainda assim, estamos num país que anseia por soluções imediatas, haja vista as catástrofes que se repetem ano após ano, dia após dia, sem que possamos repousar a cabeça no leito sem sangue na pele, lágrimas no rosto e um nó na garganta. É duro ser filho do Brasil, um rapaz “latino-americano sem dinheiro no banco, sem parentes importantes e vindo do interior”. Cito uma catástrofe envolvendo deslizamentos de terra, agora em Recife, que ceifou, numa única e trágica noite, a vida de mais de cem brasileiros, incluindo crianças e bebês; todos eram pobres e a vasta maioria era de origem africana. Há poucos meses atrás, mais de duzentas pessoas morreram soterradas em Petrópolis, também por conta de deslizamentos, sem contar as vítimas empobrecidas, desabrigadas e traumatizadas, bem como as crianças largadas na orfandade. Só quem sofre na pele, sabe a dimensão concreta e completa das palavras que ponho aqui. Faz-se necessário que as ouçamos amorosamente, assimilando seu desamparo, angústia e revolta.

Isso é inaceitável para um país que aspira possibilitar um mínimo de dignidade para a sua gente, cujos antepassados sofreram agruras iguais ou ainda piores. Encarar com indiferença e fatalismo esse episódio, perpetua a condição de miserabilidade do povo trabalhador. É preciso se erguer e mobilizar as massas para uma mudança minimamente substantiva, caso contrário os nossos mortos se acumularão aos montes, normalizando um cotidiano macabro para as gerações presentes e futuras.

Pois, esta é somente a ponta de um iceberg de enormes proporções, um exemplo mórbido que remete a uma série de elementos internos e conjunturais, múltiplos retalhos de uma crise sistêmica altamente explosiva e complexa, que responsabiliza todos os ocupantes de posições de comando no Estado e na sociedade brasileira em geral. Refiro-me aos presidentes vivos e mortos, deputados, senadores, dirigentes partidários, vereadores, prefeitos e governadores; também me refiro os latifundiários, banqueiros, militares entreguistas, magnatas da indústria e todos os membros togados do Judiciário — eu poderia citar nominalmente as figuras, mas isso tornaria o texto mais alongado que o desejado. Em outras palavras, colocar toda responsabilidade numa única figura, é coisa de quem procura, espertamente, manipular a opinião pública ao seu bel-prazer.

Porém, para compreender a crise brasileira em sua completa profundidade, é preciso analisar o resultado das Eleições de 2018. Portanto, voltemos os olhos mais uma vez à ascensão da extrema-direita.

Antes de mais nada, cabe aqui uma pergunta indigesta: quem conhecia o atual presidente antes da facada, do impeachment de Dilma, da Operação Lava Jato ou mesmo das Jornadas de Junho? Medíocre politicamente, Bolsonaro sempre foi uma figura burlesca e coadjuvante no Congresso, chamando mais atenção por ser parlapatão e loroteiro que qualquer outra coisa que pudesse fazer. No entanto, ele venceu o invencível PT; foi Bolsonaro quem melhor soube aproveitar a fissura no status quo do famigerado establishment político-partidário nacional. Por pura sorte ou instinto visceral, ele escutou como ninguém o clamor da chamada silent majority, expressão largamente popularizada pelo corrupto Richard Nixon, protagonista do escândalo Watergate. É claro que, como expressarei nas próximas linhas, este não foi o único fator que contribuiu para a consagração do amalucado presidente. Porém, é preciso que se diga que, esse assombroso êxito, representa uma nova etapa na dinâmica da luta de classes no Brasil.

O pleito de 2018 foi estremecido pela prisão de Lula, a principal figura do campo progressista na América Latina, figura de proa do maior partido da centro-esquerda latino-americana. As consequências desse fato histórico ainda reverberam em nosso cenário político-social. Além disso, é preciso destacar os seguintes fatores: a brutal recessão econômica do biênio 2015/2016 — responsabilizada em Dilma Rousseff e sua equipe ministerial —, um antipetismo cada vez mais enraivecido, a cisão de Ciro Gomes com a cúpula do PT, a propagação sistemática de fake news, uma cruzada da extrema-direita trompista a nível mundial, personificada por Steve Bannon, uma adesão em massa da classe média à propaganda anticorrupção da Lava-Jato, a cristalização do voto evangélico e um apoio inédito de uma parcela das Forças Armadas ao então milico presidenciável.

A combinação desses elementos, conduziu o processo eleitoral a um cenário cada vez mais incerto e tumultuado, de modo que o debate das questões mais graves e prementes da nossa crise acabou ceifado outra vez, dando lugar ao personalismo mais rasteiro e ignaro que tive a “oportunidade” de ver na vida pública brasileira. Limitamo-nos a escolher o “messias” de predileção, sem levar em conta o fato de que essa crise não se resolverá unicamente a partir da pessoa ou do partido que escolhemos pôr na presidência. Há que se ter um projeto de Brasil claro, coeso e bem definido, que não atenda somente aos plutocratas e suas matrizes externas, mas essencialmente a todos os brasileiros e brasileiras, a fim de que se dê um basta ao improviso que costuma caracterizar a gestão pública nos últimos decênios.

Na realidade, os múltiplos elementos que caracterizam a crise brasileira se estendem há décadas (em alguns casos, há séculos), independentemente da bandeira partidária ou da figura que os ignóbeis teimam em mitificar. Aliás, parece haver um desejo maquiavélico, por parte dos polos dominantes da atual conjuntura, em ocultar por completo as partes que compõem o quadro catastrófico no qual estamos imersos, colocando por debaixo do tapete o que poderia servir como flagelo nas mãos de um adversário eloquente, carismático e, principalmente, sem rabo preso. Cada lado culpa o outro, rebaixando o debate público ao nível mais esterilizante e vexaminoso que se poderia imaginar, algo digno de uma tragicomédia sofrível e imprestável. Excetuando-se Ciro Gomes, ninguém que pleiteia a presidência da República busca conscientizar as massas sobre a real dimensão dos dilemas e desafios que temos de solucionar enquanto nação em busca do justo progresso, da paz premente e da soberania irrecusável.

De fato, para Lula, o povo quer ter de volta o direito de comer picanha e cerveja, o que pode ser verdade; contudo, não é comendo carne nobre e cerveja gelada que os nossos entraves serão superados e o Brasil alcançará o desenvolvimento pleno de suas imensas potencialidades. Perde-se, portanto, a preciosa oportunidade de transformar o processo eleitoral numa grande arena educativa, apostando as fichas na sabedoria da gente comum e não no vazio da sua barriga. A jogada de Lula se traduz num consumismo alienante, despolitizado e popularesco, feito sob medida para esfriar de vez o clima nas ruas, lançando o Brasil em mais um ciclo de euforia passageira: o nosso conhecidíssimo “voo de galinha”. Dessa maneira, o PT atesta sua vocação para gerir e resguardar os interesses das famílias abastadas, aquelas que ocupam o diminuto topo da pirâmide social, e que há muito não se sentem ameaçadas por qualquer forma de agitação popular.

Até que, para o espanto generalizado, a violência se consumou no dia 6 de Setembro de 2018, com a facada perpetrada contra Jair Bolsonaro. Antes do golpe físico à sua pessoa, Bolsonaro se configurava como um coadjuvante com uma singela possibilidade de ir para o segundo turno, mas, após esse fato inédito, o capitão reformado se tornou — aos olhares de seus apoiadores — um mártir cruelmente vitimado, ou até mesmo o alvo predileto de um suposto complô esquerdista, que não seria capaz de ceder ao clamor popular, disposto a pagar qualquer preço por um revés petista. Pois, para estes delirantes incautos, devido à sua propalada incorruptibilidade cívica, só Bolsonaro representaria uma “ameaça ao sistema”. Daí se originaria a sua grotesca mitificação por parte dos apoiadores mais bitolados.

Por outro lado, é preciso asseverar que, na minha opinião, muitos votaram no fascista sem se darem conta da gravidade que seu discurso representava para todos nós e, de modo especial, para com as mulheres e as minorias atormentadas pelo ardor inquisitorial do extremismo neoconservador. Estou me referindo àquele sujeito que, na seara política, abre mão da árdua tarefa de cultivar um espírito crítico, preferindo se comportar como um maria-vai-com-as-outras, em geral, por medo da condenação dos parentes, amores e amigos que o cercam. Com efeito, não se pode desprezar o fardo de ser isolado por conta das próprias posições político-partidárias, acabando como uma ilha num mar de ódio à sua volta, sem ninguém que se disponha a dar um ombro amigo, uma escuta atenta e compassiva. Quem crê ser fácil remar contra a maré, indo de encontro a tudo que se diz, se acredita e se faz publicamente, certamente está cercado de sequazes que pensam o mesmo que si mesmo, isto é, vive numa pequenina bolha, sem contato direto com um argumento minimamente divergente.

Na realidade, é duríssimo ser isolado por aqueles que se ama e se convive diariamente, visto como um traidor dos valores e costumes do meio em que se vive.

Todos temos essa espécie de cultura política que normatiza os votos a partir do próprio umbigo, sem levar em conta o fato de que o outro nem sempre compartilha dos mesmos princípios e perspectivas que nós cremos como algo indiscutível. A verdade que nos orienta individualmente não é facilmente transferível ou compartilhável, tal como um post na internet; a verdade que cada um de nós carrega consigo é fruto de anos de formação, experiências, traumas, loucuras e inclinações, essencialmente, individuais, ou seja, cada pessoa é regida por uma vastíssima constelação de elementos próprios e especificidades que transcende o mero olhar, a rotulação rasteira e inútil que vemos nos “debates” das redes sociais. Isto se agrava muito mais se levarmos em conta o fato de que, a grande maioria não apenas desconhece os demais à sua volta, ela também não conhece a si mesma. É neste ponto preciso que está a missão de cada um de nós, cujas vidas estão fadadas a desvanecer no crepúsculo dos últimos dias. A morte é o destino do corpo que carregamos, mas o que construímos e dizemos pode, para o bem ou para o mal, manter-se vivo por mais algum tempo, contribuindo para a desgraça ou a prosperidade da família, do povo e do mundo que deixamos para trás. Avançaríamos muito enquanto sociedade se cada um se ocupasse em inquirir o próprio ser, ao invés de perder tempo com o que vê no jardim alheio. Enfim, os dois partícipes mais notórios das Eleições de 2022 foram tirados das entranhas da gente comum, isto é, são faces fidelíssimas, nesse momento histórico, da nação brasileira, de modo que, para quem deseja ver-se livre deles, deve começar a mudar a si mesmo e, se for possível, o entorno em que gasta seus dias.

Para muitos que acompanham os tremores sísmicos da vida pública pós-2013, o clima que se iniciou após a vitória da extrema-direita é de beligerância permanente, antagonismo a tudo que se oponha ao presidente beócio, exatamente como alguns dos seus seguidores costumam se posicionar: “contra tudo e contra todos”. Isso é atraente para quem está à procura de uma desculpa para descarregar sua frustração e ódio no teclado do computador, nas matanças perpetradas nas favelas ou dentro da própria família. É como se o período eleitoral não chegasse ao fim nunca, prolongando-se indefinidamente, como um duelo sem hora para acabar. Isso implica um sério desgaste psicofísico nas pessoas envolvidas, diariamente, com celeumas constrangedoras e degeneradas, cujas consequências nem todos estão aptos para suportar. Fala-se que, nos anos seguidos pela vitória de Bolsonaro, a procura por atendimento psicoterápico aumentou, explodindo de vez com a chegada da pandemia. Sem dúvidas, trata-se de um dado que reflete os tempos em que vivemos.

O militante “profissional”, por sua vez, esse personagem destemido e bizarro, tem pouco traquejo e sensibilidade para assimilar as circunstâncias práticas e mundanas do eleitor maria-vai-com-as-outras; devido ao seu partidarismo juvenil, crédulo e sectário, ele crê que votar na sua liderança predileta, é uma obviedade lógica e acertada. Considera-se guardião e propagador de uma mensagem libertadora para as massas, sem notar que sua voz, em geral, não carrega nada de especial para quem o ouve dia após dia, seja em casa, na praça, na escola ou no sindicato. 

Penso que os militantes seriam mais úteis à sociedade se dessem ouvidos justamente às pessoas mais despolitizadas, no intuito de compreende-las em seu contexto socioeconômico, familiar e cultural. Ao invés de posarem de esclarecidos, iluminados por uma sapiência reservada aos iniciados, estes sujeitos deveriam aprender a acolher quem se apresenta à sua frente, independente da condição do ser humano em questão.

Sem dúvidas, o militante partidário também é um batalhador na sua perigosa empreitada, principalmente quando o faz por heroísmo bravio e inciativa pessoal, remando contra a maré do obscurantismo que nega a política por pendores moralistas e individualistas. É justo lembrar que, no Brasil, mata-se militante todo ano sem qualquer compaixão; esta é a carranca mais hedionda do “capitalismo com face humana”; e a maioria dessas investigações acabam engavetadas.

Porém, de tempos em tempos, ouvimos falar da decepção de um desses coitados, que achava ter encontrado a facção detentora do único caminho luminoso para a pátria, mas que, enfim, se dá conta de que não passa de um peão nas tramoias dos verdadeiros senhores do jogo, aqueles que mechem os pauzinhos à revelia da militância; até que, após ser feito de idiota à exaustão, o fatigado militante decide deixar a vida partidária e recolher-se às discussões meteorológicas, futebolísticas e matrimoniais. Com o passar do tempo, ele percebe que jogou fora dias preciosos da sua vida e, acima de tudo, tremendo esforço com aquilo que nunca foi capaz de conduzir ou controlar. Tratava-se de uma boa distração para quem é cheio de sonhos febris e delírios de grandeza.


Daniel Viana de Sousa

© Todos os direitos reservados