Há
décadas que a Faixa de Gaza é um horror a olhos vistos, uma aberração fabricada
pelo que há de pior na engenhosidade diabólica do Homem. Ainda assim, o
suplício dos palestinos adquiriu, nas últimas semanas, proporções catastróficas;
algo que se aproxima, cada vez mais, de um extermínio em massa, isto é, um
genocídio étnico com feições macabras, próprio de um retrato, genuinamente,
dantesco da nossa bestialidade. Não se compadecer por tamanho sofrimento
humano, é um gesto de desumanidade indesculpável e é um fracasso irredimível da
nossa época.
Ver
bebês, crianças, idosos, gestantes, médicos, jornalistas etc., serem esquartejados,
explodidos, soterrados e traumatizados, sem a mínima chance de se defenderem ou
de escaparem por quaisquer rotas de fuga, fere minha sedenta esperança por uma
redenção da nossa espécie humana. Ainda podemos sonhar em ser algo superior às
piores feras? Quem pode nos assegurar dessa pretensa superioridade frente aos
outros animais? Tamanha virulência, cólera cegamente incontida, só pode ser
vista em nossa mente insensata e convulsiva.
Na
realidade, os adjetivos nunca me pareceram tão impotentes em conceber,
suficientemente, o retrato que vemos na Faixa de Gaza, bem como o ataque dos
fundamentalistas no dia sete de Outubro. Ambos são aviltantes à dignidade da
vida, independentemente da religião, nacionalidade, classe social ou etnia dos
assassinados. Dizer que o Hamas estaria no direito de responder à violência de
Israel por quaisquer meios, incluindo o fuzilamento de famílias e a chacina de
jovens numa inocente festa, é a defesa de um canalha despudorado.
Nesse
cenário de aterrador morticínio, resta-nos condenar e refletir sobre os
escombros de mais uma tragédia feita de lágrimas amargas, sangue inocente e dor
irreparável. O conflito entre Israel e Hamas é parte da discórdia histórica de
parte dos judeus — e Ocidentais — com os povos árabes, numa tentativa
deliberada de se apossar e colonizar aquela que é tida, por Telavive, como
território pertencente ao povo judeu; essa contenda não pode ser explicada com
bravatas e reducionismos ideológicos.
Em
nome de uma vendeta contra o Hamas, cuja legitimidade, nas primeiras semanas de
Outubro, poderia soar como necessária e razoável, o governo capitaneado por Benjamin
Netanyahu tem deixado de lado qualquer resquício de pudor. A assimetria nesse
conflito é tão colossal, que o apoio do chamado Sul Global aos palestinos acaba,
em certos casos, fazendo vista grossa à violência sanguinária do Hamas, o que
é, sem dúvidas, um erro terrível, pois, com os ataques de sete de Outubro, esse
grupo assumiu para si, definitivamente, a faceta de agrupamento terrorista.
A
bárbara matança cometida pelo Hamas, no famigerado sete de Outubro, é um
clássico exemplo de casus belli, agressão
que justificaria uma reposta armada por parte do lado agredido. Porém, Telavive
se acostumou a violar quaisquer linhas vermelhas da civilidade e do bom senso,
como no caso recente de uso de fósforo branco em ataques ao Líbano, arma
química proibida por tratados e convenções das Organizações das Nações Unidas
(ONU). Há tempos que chegamos à conclusão de que mesmo o enfrentamento bélico
deve ser regulado por normas, a fim de que não se repita as selvagerias das
guerras mundiais, nas quais as vítimas civis somaram-se aos milhões de soldados
mortos por todo globo. Assim sendo, qual o sentido de se bombardear hospitais? Qual
o ganho militar em atacar civis em fuga para o Egito?
Aqui,
vale um breve questionamento: se a acusação contra Bashar Al-Assad, em 2013, pelo
suposto uso de armas químicas contra sua população, motivou a Casa Branca a
ameaçar uma intervenção armada contra a Síria, por que Joe Biden mantém seu
apoio irrestrito a Netanyahu, responsável por crimes de guerra semelhantes aos
de Al-Assad? Tais eventos trazem à tona a conhecida hipocrisia da Casa Branca,
independente de qual partido triunfe nos pleitos eleitorais.
Ora,
conceber as ações de Israel como parte de uma “guerra” interestatal, ou seja, colocando-a
em pé de igualdade com os conflitos vistos no século passado, é um completo
absurdo. Simplesmente, não há como igualá-los. Pois é preciso recordar que a
Palestina não tem sequer uma Força Aérea ou Marinha, bem como veículos blindados,
segurança alimentar ou sofisticação tecnológica para fazer frente a Israel,
nação com o desenvolvimento técnico-cientifico mais portentoso de todo Oriente
Médio. Aliás, creio que, se os palestinos detivessem uma força militar equiparável
ao Irã ou à Arábia Saudita, já teriam sido extirpados completamente, como forma
de “ataque preventivo” por parte dos sionistas. Em suma, não há a menor
possibilidade de que os palestinos ofereçam uma ameaça à existência do seu
vizinho, ao passo que Telavive tem, à sua disposição, um arsenal nuclear capaz
de exterminar toda a região em poucos minutos, levando o planeta a um inverno
nuclear de dimensões catastróficas.
A
única esperança do Hamas é que seus vizinhos, tanto os sunitas quanto os
xiitas, ergam-se em apoio à sua causa. Interessa-lhe tão somente incendiar a
região, para que, dessa forma, consiga arrancar algum acordo com Telavive e,
assim, conservar o apoio da maioria dos palestinos, reféns de um grupo
fanático, extremista e indefensável. Porém, até agora, as potências regionais
se restringiram às costumeiras ameaças retóricas, o que não deixa de ser um
alívio por parte daqueles que temem testemunhar o princípio de uma Terceira
Guerra Mundial. Nesse cenário, certamente, todos sairiam aniquilados, não
havendo mais nada pelo qual se lutar, exceto as cinzas de um mundo arrasado.
Duvido
que qualquer um dos lados busque aniquilar o mundo consigo. No entanto, sabemos
que o ser humano é capaz de forjar, com risível astúcia, a armadilha na qual
ele mesmo terminará enjaulado. Foi assim com a “guerra ao terror”, iniciada por
George Bush (2001-2009) e responsável por tornar a nossa época ainda mais instável,
incerta e perigosa, além de dar origem aos failed
states, fenômeno que, assustadoramente, tornou-se o novo normal do
noticiário internacional. De lá pra cá, os Estados Unidos têm afundado suas
tropas e investimentos num lamaçal onde quer que pise os pés: invasão do
Afeganistão, em 2001, do Iraque, em 2003, e a intervenção armada na Líbia, em
2011. O mesmo pode estar ocorrendo, em Gaza, com os israelenses.
Assim
como no confronto russo-ucraniano, iniciado em Fevereiro de 2014, as implicações
desses fatos se estenderão por anos nas vidas dos envolvidos, e não me resta
dúvidas de que muito sangue continuará a ser derramado em solo sagrado. Tal
guerra se somará àquelas que, em geral, mal ouvimos falar, como tem ocorrido na
Líbia, na Somália, no Sudão do Sul, no Iêmen, na Síria e mesmo na Ucrânia,
deixada, momentaneamente, de lado pela mídia ocidental, sempre ávida por
notícias que capturem alguma parcela da audiência.
No
entanto, como abordei anteriormente, a Questão Palestina posiciona-se à parte
dos conflitos que nos habituamos a chamar de “guerra”, ainda que a imprensa
insista em recorrer a essa palavra traiçoeira; somam-se na matança da Faixa de
Gaza elementos visíveis de colonialismo, imperialismo, fundamentalismo
religioso e racismo, de modo que ela se apresenta como um cenário de extrema
complexidade social, militar, histórica e cultural. Trata-se — para recorrer à
mais surrada de todas as analogias bíblicas —, de uma luta de Davi contra
Golias.
Não
obstante seus eventuais erros históricos, a demonização ideológica de Israel deve
ser evitada a todo custo, caso não se deseje tropeçar na vala comum do
antissemitismo. Reduzir o estado israelense a um mero porta-aviões dos EUA, sem
reconhecer a importância de uma reparação do Ocidente pelos crimes do
Holocausto, insulta a dignidade e história do povo judeu. Entretanto, o mesmo
vale para os palestinos, que, durante séculos, habitaram as mesmas terras dos
seus vizinhos. Por que negar a estes povos sua justa emancipação? Por que os
sauditas, iranianos e turcos podem gozar de soberania, liberdade e segurança,
ao passo que os jovens palestinos já nascem soterrados por bombas?
Portanto,
defender o aniquilamento do Estado de Israel, isto é, dos judeus que escolheram
voltar à sua terra natal, ou dos palestinos que lá viviam, é uma sandice
extremista, bem como uma afronta ao princípio da autodeterminação dos povos. Jamais
se deve debater com quem propõe, como premissa básica de seu discurso, o extermínio
da sua contraparte. Propalar o fascismo nas suas mais variadas facetas e
linguagens, é crime; sua própria essência é uma afronta à dignidade da
diversidade humana. Assim, quem sustenta tais “propostas” deve ser relegado ao
ostracismo da cadeia.
Ainda
que minhas palavras se percam numa enxurrada de outros escritos e análises
sobre a questão Israel-Palestina, ou seja, sem nada de novo ou revelador,
exceto meu assombro com esse capítulo da História contemporânea, oro a Deus
pelo fim de toda guerra e discórdia entre as nações — algo que não me parece
possível dentro dos limites do atual sistema de dominação econômica.
No
melhor dos mundos, a existência de Estados que nos dividissem em tribos
sectárias, insufladas por um nacionalismo démodé, seria, finalmente, superada,
dando espaço a um tempo de autêntica fraternidade universal. Não tenho dúvidas
de que este seria um lugar melhor de se viver.
Sejam
as preces islâmicas, judaicas ou cristãs, que o Todo-poderoso nos ouça,
concedendo-nos essa tão desmerecida salvação.
Escrevo
esse texto, acima de tudo, em nome da paz.
Daniel Viana de Sousa
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