segunda-feira, 27 de novembro de 2023

Em nome da paz

  

Há décadas que a Faixa de Gaza é um horror a olhos vistos, uma aberração fabricada pelo que há de pior na engenhosidade diabólica do Homem. Ainda assim, o suplício dos palestinos adquiriu, nas últimas semanas, proporções catastróficas; algo que se aproxima, cada vez mais, de um extermínio em massa, isto é, um genocídio étnico com feições macabras, próprio de um retrato, genuinamente, dantesco da nossa bestialidade. Não se compadecer por tamanho sofrimento humano, é um gesto de desumanidade indesculpável e é um fracasso irredimível da nossa época.

Ver bebês, crianças, idosos, gestantes, médicos, jornalistas etc., serem esquartejados, explodidos, soterrados e traumatizados, sem a mínima chance de se defenderem ou de escaparem por quaisquer rotas de fuga, fere minha sedenta esperança por uma redenção da nossa espécie humana. Ainda podemos sonhar em ser algo superior às piores feras? Quem pode nos assegurar dessa pretensa superioridade frente aos outros animais? Tamanha virulência, cólera cegamente incontida, só pode ser vista em nossa mente insensata e convulsiva.

Na realidade, os adjetivos nunca me pareceram tão impotentes em conceber, suficientemente, o retrato que vemos na Faixa de Gaza, bem como o ataque dos fundamentalistas no dia sete de Outubro. Ambos são aviltantes à dignidade da vida, independentemente da religião, nacionalidade, classe social ou etnia dos assassinados. Dizer que o Hamas estaria no direito de responder à violência de Israel por quaisquer meios, incluindo o fuzilamento de famílias e a chacina de jovens numa inocente festa, é a defesa de um canalha despudorado.

Nesse cenário de aterrador morticínio, resta-nos condenar e refletir sobre os escombros de mais uma tragédia feita de lágrimas amargas, sangue inocente e dor irreparável. O conflito entre Israel e Hamas é parte da discórdia histórica de parte dos judeus — e Ocidentais — com os povos árabes, numa tentativa deliberada de se apossar e colonizar aquela que é tida, por Telavive, como território pertencente ao povo judeu; essa contenda não pode ser explicada com bravatas e reducionismos ideológicos.

Em nome de uma vendeta contra o Hamas, cuja legitimidade, nas primeiras semanas de Outubro, poderia soar como necessária e razoável, o governo capitaneado por Benjamin Netanyahu tem deixado de lado qualquer resquício de pudor. A assimetria nesse conflito é tão colossal, que o apoio do chamado Sul Global aos palestinos acaba, em certos casos, fazendo vista grossa à violência sanguinária do Hamas, o que é, sem dúvidas, um erro terrível, pois, com os ataques de sete de Outubro, esse grupo assumiu para si, definitivamente, a faceta de agrupamento terrorista.

A bárbara matança cometida pelo Hamas, no famigerado sete de Outubro, é um clássico exemplo de casus belli, agressão que justificaria uma reposta armada por parte do lado agredido. Porém, Telavive se acostumou a violar quaisquer linhas vermelhas da civilidade e do bom senso, como no caso recente de uso de fósforo branco em ataques ao Líbano, arma química proibida por tratados e convenções das Organizações das Nações Unidas (ONU). Há tempos que chegamos à conclusão de que mesmo o enfrentamento bélico deve ser regulado por normas, a fim de que não se repita as selvagerias das guerras mundiais, nas quais as vítimas civis somaram-se aos milhões de soldados mortos por todo globo. Assim sendo, qual o sentido de se bombardear hospitais? Qual o ganho militar em atacar civis em fuga para o Egito?

Aqui, vale um breve questionamento: se a acusação contra Bashar Al-Assad, em 2013, pelo suposto uso de armas químicas contra sua população, motivou a Casa Branca a ameaçar uma intervenção armada contra a Síria, por que Joe Biden mantém seu apoio irrestrito a Netanyahu, responsável por crimes de guerra semelhantes aos de Al-Assad? Tais eventos trazem à tona a conhecida hipocrisia da Casa Branca, independente de qual partido triunfe nos pleitos eleitorais.

Ora, conceber as ações de Israel como parte de uma “guerra” interestatal, ou seja, colocando-a em pé de igualdade com os conflitos vistos no século passado, é um completo absurdo. Simplesmente, não há como igualá-los. Pois é preciso recordar que a Palestina não tem sequer uma Força Aérea ou Marinha, bem como veículos blindados, segurança alimentar ou sofisticação tecnológica para fazer frente a Israel, nação com o desenvolvimento técnico-cientifico mais portentoso de todo Oriente Médio. Aliás, creio que, se os palestinos detivessem uma força militar equiparável ao Irã ou à Arábia Saudita, já teriam sido extirpados completamente, como forma de “ataque preventivo” por parte dos sionistas. Em suma, não há a menor possibilidade de que os palestinos ofereçam uma ameaça à existência do seu vizinho, ao passo que Telavive tem, à sua disposição, um arsenal nuclear capaz de exterminar toda a região em poucos minutos, levando o planeta a um inverno nuclear de dimensões catastróficas.

A única esperança do Hamas é que seus vizinhos, tanto os sunitas quanto os xiitas, ergam-se em apoio à sua causa. Interessa-lhe tão somente incendiar a região, para que, dessa forma, consiga arrancar algum acordo com Telavive e, assim, conservar o apoio da maioria dos palestinos, reféns de um grupo fanático, extremista e indefensável. Porém, até agora, as potências regionais se restringiram às costumeiras ameaças retóricas, o que não deixa de ser um alívio por parte daqueles que temem testemunhar o princípio de uma Terceira Guerra Mundial. Nesse cenário, certamente, todos sairiam aniquilados, não havendo mais nada pelo qual se lutar, exceto as cinzas de um mundo arrasado.

Duvido que qualquer um dos lados busque aniquilar o mundo consigo. No entanto, sabemos que o ser humano é capaz de forjar, com risível astúcia, a armadilha na qual ele mesmo terminará enjaulado. Foi assim com a “guerra ao terror”, iniciada por George Bush (2001-2009) e responsável por tornar a nossa época ainda mais instável, incerta e perigosa, além de dar origem aos failed states, fenômeno que, assustadoramente, tornou-se o novo normal do noticiário internacional. De lá pra cá, os Estados Unidos têm afundado suas tropas e investimentos num lamaçal onde quer que pise os pés: invasão do Afeganistão, em 2001, do Iraque, em 2003, e a intervenção armada na Líbia, em 2011. O mesmo pode estar ocorrendo, em Gaza, com os israelenses.

Assim como no confronto russo-ucraniano, iniciado em Fevereiro de 2014, as implicações desses fatos se estenderão por anos nas vidas dos envolvidos, e não me resta dúvidas de que muito sangue continuará a ser derramado em solo sagrado. Tal guerra se somará àquelas que, em geral, mal ouvimos falar, como tem ocorrido na Líbia, na Somália, no Sudão do Sul, no Iêmen, na Síria e mesmo na Ucrânia, deixada, momentaneamente, de lado pela mídia ocidental, sempre ávida por notícias que capturem alguma parcela da audiência.

 

No entanto, como abordei anteriormente, a Questão Palestina posiciona-se à parte dos conflitos que nos habituamos a chamar de “guerra”, ainda que a imprensa insista em recorrer a essa palavra traiçoeira; somam-se na matança da Faixa de Gaza elementos visíveis de colonialismo, imperialismo, fundamentalismo religioso e racismo, de modo que ela se apresenta como um cenário de extrema complexidade social, militar, histórica e cultural. Trata-se — para recorrer à mais surrada de todas as analogias bíblicas —, de uma luta de Davi contra Golias.

Não obstante seus eventuais erros históricos, a demonização ideológica de Israel deve ser evitada a todo custo, caso não se deseje tropeçar na vala comum do antissemitismo. Reduzir o estado israelense a um mero porta-aviões dos EUA, sem reconhecer a importância de uma reparação do Ocidente pelos crimes do Holocausto, insulta a dignidade e história do povo judeu. Entretanto, o mesmo vale para os palestinos, que, durante séculos, habitaram as mesmas terras dos seus vizinhos. Por que negar a estes povos sua justa emancipação? Por que os sauditas, iranianos e turcos podem gozar de soberania, liberdade e segurança, ao passo que os jovens palestinos já nascem soterrados por bombas?

Portanto, defender o aniquilamento do Estado de Israel, isto é, dos judeus que escolheram voltar à sua terra natal, ou dos palestinos que lá viviam, é uma sandice extremista, bem como uma afronta ao princípio da autodeterminação dos povos. Jamais se deve debater com quem propõe, como premissa básica de seu discurso, o extermínio da sua contraparte. Propalar o fascismo nas suas mais variadas facetas e linguagens, é crime; sua própria essência é uma afronta à dignidade da diversidade humana. Assim, quem sustenta tais “propostas” deve ser relegado ao ostracismo da cadeia.

Ainda que minhas palavras se percam numa enxurrada de outros escritos e análises sobre a questão Israel-Palestina, ou seja, sem nada de novo ou revelador, exceto meu assombro com esse capítulo da História contemporânea, oro a Deus pelo fim de toda guerra e discórdia entre as nações — algo que não me parece possível dentro dos limites do atual sistema de dominação econômica.

No melhor dos mundos, a existência de Estados que nos dividissem em tribos sectárias, insufladas por um nacionalismo démodé, seria, finalmente, superada, dando espaço a um tempo de autêntica fraternidade universal. Não tenho dúvidas de que este seria um lugar melhor de se viver.

Sejam as preces islâmicas, judaicas ou cristãs, que o Todo-poderoso nos ouça, concedendo-nos essa tão desmerecida salvação.

Escrevo esse texto, acima de tudo, em nome da paz.

 

Daniel Viana de Sousa

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