sábado, 30 de dezembro de 2023

Antes de mais nada, sou um humanista


            As mais severas dúvidas acompanham a vida das mentes atordoadas e lúcidas, dos seres sublimes e triviais, das almas de inefável candura, assim com aquelas, terrivelmente, pérfidas e imorais; por mais que os homens se arvorem em convicções e teses dogmáticas, não lhes será permitido o repouso eterno no berço das certezas banais.

Pois, de tempos em tempos, somos invariavelmente expostos ao próprio fracasso, atingidos pela mais profunda frustração. Percebemos que a nossa visão alcança somente uma parte do caminho a ser percorrido, de modo que, para ir além, precisamos deixar de lado muito do que nos guiou e redescobrir um novo caminhar para a jornada que surge à nossa frente. Refazer-se por completo; recriar-se por inteiro. É isso que nos exige a existência.

Quanto maior for sua resistência perante os processos de transformação, maior será o sofrimento em dar à luz uma nova criatura. A rigidez daquele que nega as demandas de um renascimento nesta vida, acaba por se tornar a causa de um sofrimento sem-fim e a fonte de um seríssimo entrave pessoal. É duro reconhecer a urgência da mudança, porém ignora-la nos envenena, nos aprisiona e nos atormenta profundamente. Assim, é absolutamente normal que muitas lágrimas venham a escorrer pela nossa face nos dias vindouros, aceitemos isso ou não.

Porém, há algo que sobrevive às crises e passagens, aos traumas e desenganos. Nisso está aquilo que nos é mais íntimo, sincero e precioso, e que devemos buscar, a fim de realizarmos o que, de fato, somos. Sem essa realização, sentiremos que a nossa vida — tão rara e passageira — foi em vão, que fomos derrotados pela própria displicência. Para tanto, resta-nos enfrentar o medo de agir. Certamente, a insegurança nos assombrará de inúmeras formas, tal como ocorrera com todas as gerações passadas, pois ela é nossa companheira, nossa fiel acompanhante ao longo de toda a estrada. Senti-la, nos fará mais humanos e menos arrogantes.

Ora, eu sempre soube que devia me debruçar sobre o papel com caneta à mão, tornar-me um escritor de ficção, um criador de universos, um inventor de personagens. Ao mesmo tempo, assumir uma profissão que fosse meu ganha-pão, foi um percurso solitário, árduo e, às vezes, angustiante. Nunca me vi trabalhando em alguma carreira tradicional, isto é, advogado, médico, engenheiro etc., de modo que levei anos para chegar a algum lugar, mas, me ver como um artista das letras, foi constitutivo desta existência que carrego. Houve vezes em que larguei de escrever, é verdade, mas sempre dei meia-volta, pus de lado o que me atrapalhava, e voltei a dar à luz uma literatura própria. Disso, eu nunca me arrependi.

Agora, compreendo que sou um humanista não apenas pelo completo e precoce desinteresse pelas chamadas ciências exatas, mas também por uma atração íntima pela subjetividade humana, por aquilo que emerge do seu interior nas formas mais variadas de explosão feérica e de criatividade pulsante. A despeito de quaisquer dúvidas, esta certeza sobreviveu às mais intensas mudanças da minha história pessoal. Ainda que a minha compreensão do que seria a Literatura — e do que seria eu mesmo enquanto escritor — mudasse com o passar do tempo, algo se mantinha vivo em mim. É possível que fosse uma missão individualista, ou uma ambição de se destacar em meio à multidão anônima, mas, ainda assim, havia algo a mais. É graças a essa força, que ainda não sei nomear, que eu pude chegar até aqui: escrevendo e publicando textos neste oceano chamado de internet.

            Não sei a quem devo esse gosto pelas Humanidades. Ao ambiente familiar, devo muito do que sou, mas as raízes não dão conta de explicar nem parte dessa história. Tenho parentes que não compartilham das mesmas preferências, a despeito de termos tido uma infância inteira juntos, com tristezas e alegrias tão próximas. Nós podemos debater e apreciar certos artistas e suas obras, contudo, em algum momento, cada um escolherá seu caminho, posicionando-se à parte, longe dos demais. A família é a origem, mas sua influência se desvanece à medida que os anos passam. Podemos retornar a ela em certos momentos, porém os avós morrem, em seguida, os pais e os tios e, depois, os irmãos mais velhos, até que nos resta nada além de nós mesmos e as memórias que sustentamos conosco. Ao final, teremos de andar com as nossas pernas e descobrir a nossa voz, tal qual o fizemos na primeira infância, porém sem nenhuma garantia de gracejos e aplausos.

Reconheço que, falar de si mesmo, denota em mim um certo grau de soberba. Além disso, há que se registrar que ninguém anda lendo este blog, o que, às vezes, me dá algum alívio. Pois, quero que a porta ao meu mundo interior mantenha-se fechada às almas fúteis; quero que nada chegue àqueles olhares adestrados pelo apelo convencional; quero que se danem às valas do inferno os amantes das mesmices, das conversas permeadas por mediocridade; quero me livrar de tudo que carrega consigo o comodismo frívolo do olhar alheio.

Assim, tenho feito textos sem a preocupação de divulga-los, pois os vejo como ensaios de algo maior e melhor, algo que, talvez, comece a dar as caras no ano que se aproxima. No entanto, não posso assegurar nada, haja vista os fracassos em dar fim a projetos anteriores: romances abandonados; histórias inconclusas; contos atrofiados; ensaios de meia linha.

Falta-me, sobretudo, disciplina, mas sei que me aproximo, um dia após o outro, de algo novo, algo mais próximo de um ideal de beleza que ainda não sei explicar numa linguagem corriqueira, e nem me preocupo se um dia saberei explicar, pois o meu objetivo é confundir a cabeça, deixa-la desnorteada, ao invés de te vender a ideia de que sei de alguma coisa nessa terra louca que não para de rodar, rodar e rodar…

 

 

 

Daniel Viana de Sousa

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