Em
agosto do ano passado, tive a oportunidade de refletir sobre o surgimento de
uma nova ordem do poder global. Naquele momento, abordei diversos temas:
ascensão da China, declínio dos Estados Unidos, crises e guerras mundo afora.
Ainda assim, a minha
ambição em propor uma visão panorâmica e precisa do nosso mundo encontra
limites na infinidade de personagens dignos de nota, na enxurrada de eventos
que se acumulam a cada dia e na complexidade de questões que exigiriam uma
observação mais esmiuçada, além da incontornável falta de tempo do próprio
autor. Realmente, eu abro mão de qualquer pretensão em dar por encerradas as
discussões que levanto nas minhas análises, a despeito dos esforços que faço
nessa direção. Prefiro apontar o destino das aves que voam, ao mesmo tempo em
que recolho os tremores que emergem do reino subterrâneo.
O fato é que toda análise
requer um recorte, de tal maneira que o texto atual repetirá a impressão de ter
sido feito às pressas, ou seja, sem o acabamento que se esperaria de um ourives
frente a uma gema preciosa. Aliás, é possível que, nos dias seguintes à
publicação deste texto, novos acontecimentos o tornem irremediavelmente
defasado, tamanha é a celeridade dos fatos que temos presenciado.
Feitos os ajustes
iniciais, passemos para a análise do cenário internacional.
Não
é preciso ser um especialista para se dar conta de que os alicerces do
tabuleiro geopolítico se estremeceram nos últimos doze meses. Afinal, mesmo o público
leigo, pouco familiarizado com disputas de longa data e termos herméticos, percebe
que vivemos um momento de transição profunda e de tensão crescente, cujo ápice,
até agora, pode ter sido o bombardeamento, por parte da Força Aérea dos EUA, às
instalações nucleares do Irã.
No espaço de algumas
horas, o programa nuclear iraniano, motivo de temores por parte de seus rivais
ao longo de décadas, foi varrido do mapa numa operação de proporções espantosas,
comprovando, mais uma vez, que os americanos não são um tigre de papel. No
mundo de hoje, quantos países detêm a mesma capacidade de planejar, mobilizar,
localizar e destruir seus alvos a meio mundo de distância, e fazendo-o sem nenhuma
baixa militar? Quase nenhum. Isso explica por que os EUA são a maior potência militar do planeta, algo que deve se
manter inalterado por muitos anos à nossa frente.
No
entanto, como todo império em declínio, os estadunidenses não poderiam se satisfazer
em violar apenas a soberania iraniana, pois não é somente Teerã que tem buscado
uma alternativa viável ao imperialismo ianque. Ao contrário, à medida que a
China cresce e fóruns multilaterais, como o BRICS, ganham representatividade
mundial, mais nações batem à porta de Xi Jinping, presidente da segunda maior
economia do planeta e secretário-geral do maior partido comunista do mundo, à
procura de auxílio financeiro para os dias difíceis que testemunhamos. Cada vez
mais, o “dinheiro comunista” chega aos países do Sul Global na forma de
investimentos em infraestrutura, ao mesmo tempo em que Beijing consome,
vorazmente, as commodities extraídas
dessas nações, transformando-se na locomotiva do capitalismo tardio.
Para esses estrategistas,
pouco importa se os seus clientes são fanáticos do Talibã, arquirrivais indianos
ou até mesmo as avançadas empresas do Vale do Silício. Na verdade, todos são
bem-vindos, desde que não se metam nos assuntos internos chineses, ou
atrapalhem a política externa delineada pelo Comitê Permanente do Politburo, a
alta cúpula do seu centenário partido. Assim, no espaço de poucas gerações, tal
estratégia produziu uma façanha sem precedentes na história da Humanidade:
metrópoles surgiram do nada, trens de alta velocidade adentraram o interior, multidões
de jovens se educaram em universidades, mais de setecentas milhões de pessoas
deixaram a pobreza etc. A essa altura, não há mais dúvidas de que a grande
vencedora da globalização foi a República Popular da China.
Tamanho êxito jamais
seria aceito por Washington, que, aliás, sempre apostou que o século XXI seria
um novo “Século Americano”, jamais um século “da China”, ou mesmo “da Ásia”. De
fato, quem se encontra numa posição hegemônica, costuma se convencer não só que
sua vocação à supremacia é um fato inquestionável, mas também que ela é a forma
natural do mundo funcionar, uma espécie de modus
operandi visceralmente superior a todos os demais. Decerto, todos os
impérios sonharam que seu esplendor duraria para sempre, como o brilho do Sol
sobre as suas cabeças, cabendo ao restante da Humanidade contentar-se com a
submissão completa. Os romanos conseguiram sobreviver por mais de mil anos, até
que Constantinopla foi tomada, pelos muçulmanos, em 1453; os ibéricos
inauguraram o primeiro império transoceânico e transcontinental da história,
até serem expulsos das suas colônias pelas mãos dos próprios colonizados; os
britânicos controlaram os mares e, neles, foram invencíveis por gerações, até
verem sua juventude ser dizimada no lamaçal das trincheiras europeias. Todos se
entorpeceram com seus triunfos, convencendo-se que nada seria capaz de
detê-los, mas a realidade dos fatos, enfim, se impôs. Agora, tais impérios não
passam de uma sombra do passado, vivendo apenas nos livros e nos monumentos
deixados para trás. Então, por que o poderio americano teria um destino diferente
dos seus antecessores?
Ao longo das décadas de
1990 e 2000, pensava-se que a abertura chinesa resultaria, necessariamente, na instabilidade
e implosão do regime comunista, o que, por sua vez, poderia levar a uma fragmentação
territorial, algo semelhante ao que acabara de ocorrer à União Soviética e aos
demais países do Pacto de Varsóvia. Além disso, o massacre na Praça da Paz
Celestial expunha uma insatisfação latente naquela sociedade, recém-saída do longo
período maoísta (1949-1976), que poderia ser melhor explorada por quintas-colunas
insufladas externamente, pois, tal como os soviéticos, a China possui minorias
étnicas que poderiam ser seduzidas pelo separatismo. Nessa época, havia um
otimismo quase delirante de que o mundo inteiro se curvaria ao Consenso de
Washington, ou experimentaria a mesma debacle do experimento soviético. Em
suma, apostava-se na impossibilidade de coexistência de uma economia de mercado
ultramoderna com o autoritarismo de Beijing. Porém, o tiro saiu pela culatra e,
pela primeira vez, uma nação assentada no Terceiro Mundo senta-se frente a
frente com os senhores da Casa Branca.
Ao mesmo tempo em que a
China cresce, não há boas notícias para seus velhos antagonistas da Guerra Fria
(1947-1991). Mesmo alguns dos mais fervorosos aliados dos EUA, como Japão,
Coreia do Sul e Austrália, encontram-se pressionados pela nova conjuntura
geoeconômica, haja vista que seu maior parceiro comercial é o dragão asiático. Mesmo
a América Latina, eterna zona de influência dos ianques, lida com o fato de que
não pode prescindir dos vínculos com Beijing. Sem a venda de suas matérias-primas,
como o cobre, a soja e o minério de ferro, grande parte das economias latino-americanas
afundariam em recessão, ou seja, tais laços econômicos se estreitaram a tal
ponto que, a despeito dos desmandos de Trump, uma ruptura tornou-se,
simplesmente, inviável. Em outras palavras, os comunistas usaram as regras do capitalismo
para “virar a mesa”, pegando de surpresa seus antigos adversários.
Logo, os falcões compreendem
que, para preservarem sua hegemonia por mais duas ou três gerações, o caos deve
ser levado à periferia do globo, especialmente, quando se trata daqueles que põem
em xeque sua pretensa autoridade. Afinal, fazer guerra segue sendo sua
expertise. Contudo, até Donald Trump sabe que um enfrentamento militar contra
os chineses resultaria numa hecatombe nuclear, de modo que a destruição será
imposta aos “elos fracos”, isto é, as nações do Sul Global. De acordo com a
visão de mundo dos ocupantes do Salão Oval, deve-se impor aos demais países a
seguinte escolha: ser vassalo ou sofrer as consequências do caminho contrário.
Assim,
diante do sucesso do ataque às instalações iranianas, quais as chances do
presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, sobreviver às recentes investidas de
Washington no Mar do Caribe?
Desde agosto, navios,
caças F-35, submarinos e milhares de tropas foram deslocadas para as cercanias
da costa venezuelana. Enquanto isso, o secretário de guerra dos EUA, Pete Hegseth,
ordenou que o grupo de ataque Gerald Ford, composto pelo maior porta-aviões do
mundo, partisse rumo às águas caribenhas. Ao mesmo tempo em que várias
embarcações — suspeitas de levarem drogas ao território norte-americano — foram
destruídas em águas internacionais, contabilizando dezenas de mortos. Para
estes supostos “narcoterroristas”, não houve direito de defesa. Pelo contrário,
praticaram-se execuções sumárias típicas de um western de gosto duvidoso.
Caracas reage dando fuzis
à população civil e acusa os EUA de fabricarem um conflito, tendo em vista a
derrubada do regime bolivariano, algo que faz todo o sentido, haja vista o fato
de que a Venezuela — além de ser compradora de armamento russo, fornecedora de
petróleo aos chineses e principal aliada de Cuba no continente — é uma das
maiores detentoras de reservas petrolíferas. Aliás, engana-se quem pensa que essa
matéria-prima perderá sua relevância estratégica no futuro próximo. Mesmo com o
avanço gradual da exploração de energias renováveis, economias pujantes, como a
chinesa e a estadunidense, consomem imensas quantidades de combustíveis
fósseis, a despeito dos esforços em transitar para uma economia sustentável.
Não é por acaso que a flutuação do preço do barril ainda faz estremecer as
relações internacionais. Se o seu preço aumenta, a nação petroleira desfruta de
enriquecimento, mas, se o preço do mesmo barril despenca, a explosão de uma
crise torna-se quase inevitável. No caso venezuelano, a dependência da
exportação do petróleo é, sem dúvidas, seu ponto mais fraco.
Ora, invasões militares
em larga escala são, em geral, precedidas por grandes mobilizações de veículos
e tropas, tal como vimos, em 2022, no ataque russo às terras ucranianas. Numa
era de interconectividade global, não haveria como escondê-lo por muito tempo,
restando ao lado enfraquecido clamar por misericórdia de todas as maneiras
possíveis, como já se antecipou o próprio presidente Maduro ao repetir, em
inglês: “no crazy war, please”.
A Casa Branca, por sua
vez, limita-se a responder que está combatendo o narcotráfico, igualando-o ao
terrorismo da Al-Qaeda, e acusa o mandatário venezuelano de chefiar o Cártel de los Soles, porém ninguém
precisa recorrer a um submarino nuclear ou um grandioso porta-aviões para
combater cartéis de droga. Na realidade, a chamada “guerra às drogas” é tudo
menos uma guerra convencional. Armamentos, veículos, táticas e soldados que
podem ser úteis num conflito interestatal, como o que temos visto na Europa
Oriental, acabam sendo ineficientes em uma guerra ao que se têm chamado de
narcoterrorismo. A “batalha contra as drogas” se faz, acima de tudo, no
acolhimento humanizado ao dependente químico, buscando retirá-lo de sua condição
via auxílio médico e psicossocial — algo que passa longe dos planos de quem ocupa
hoje o Salão Oval.
Em geral, a solução
policialesca tem servido, tanto nos EUA como no Brasil, para inchar presídios, militarizar
forças de segurança, aterrorizar comunidades e produzir chacinas. Dessa forma,
pouco importa quantas lanchas sejam bombardeadas no Caribe ou no Pacífico, o
fluxo de narcóticos seguirá seu destino rumo às metrópoles estadunidenses,
alimentando, tragicamente, o número cada vez maior de dependentes químicos, bem
como suas nefastas implicações. Em suma, as movimentações que temos visto não
visam o fim da entrada de drogas nos EUA, por mais que a Casa Branca insista
nessa narrativa. Trata-se, na realidade, do que pode vir a ser a maior
intervenção estadunidense na América Latina em décadas, de tal maneira que nem os
brasileiros poderão manter-se indiferentes ao que se sucederá nos próximos
meses.
Com efeito, do ponto de
vista norte-americano, o momento não poderia ser mais propício para acabar, de
uma vez por todas, com Maduro e o chavismo. Tal como ocorrera com a Síria de Bashar
al-Assad, o apoio de aliados externos serviu como um bote de salva-vidas para o
regime em Caracas. Graças a essa camaradagem, os ocupantes do palácio de
Miraflores resistiram a duras sanções, caos econômico, tentativas de
sublevação, congelamento de ativos e outras formas de ingerência. Apostou-se
até em figuras insípidas, como o autointitulado presidente Juan Guaidó, porém
sem nenhum sucesso prático.
De fato, tentou-se de
tudo, e, mesmo assim, o regime soube se manter de pé ano após ano, algo
raramente visto em nosso continente. Há quem atribua tamanha resiliência à
fidelidade dos militares ao regime, à incompetência da oposição, à politização
das massas, ao apreço do povo pela memória de Chávez, à repressão do governo e
assim por diante. De toda maneira, o chavismo arregimentou parte das classes
populares ao seu favor, enquanto o restante aderiu à oposição ou fugiu para
nações minimamente estáveis. De acordo com a ONU, cerca de 7,7 milhões de
venezuelanos deixaram o país desde a década passada, num dos maiores êxodos
migratórios da contemporaneidade; a vasta maioria emigrou para países
hispano-americanos, como Colômbia, Peru e Chile, mas uma parcela considerável
também se locomoveu para os EUA e o Brasil, gerando tensões xenofóbicas cada
vez mais preocupantes.
A discrepância entre o
poderio bélico dos EUA e da Venezuela dispensa comentários. Basta dizer que, se
Nicolás Maduro recorrer unicamente à força das tropas bolivarianas, por mais
destemidas que sejam as milícias populares, seu destino, provavelmente, será similar
ao de Salvador Allende: morrerá no próprio palácio de Miraflores. Outra forma
de matá-lo seria recorrendo aos métodos da CIA, célebre por elaborar meios de
“neutralizar” lideranças como Fidel Castro. O fato é que, mesmo possuindo armamento
russo, fontes anônimas revelam, em portais de notícia, que as tropas
venezuelanas estão mal equipadas e despreparadas para um confronto direto.
Também lhes falta experiência de combate, um componente imprescindível em
qualquer tipo de guerra. Ademais, com a Rússia ocupada em conquistar o Donbas e
a China tendo de lidar com as tarifas impostas por Trump, a situação Nicolás
Maduro é delicadíssima, para dizer o mínimo. Até aliados ideológicos, como o
presidente da Colômbia, alertam para a necessidade de um governo de transição,
pois, nas suas palavras, “um desmantelamento violento do Estado venezuelano
atual trará um fortalecimento dos grupos e gangues armadas que buscarão
controle territorial”.
No momento em que
escrevo, a aposta de Maduro é encontrar uma forma de evitar a sua saída, ou
pelo menos postergá-la. Segundo o New
York Times, foi oferecida a possibilidade de uma renúncia dentro de dois a
três anos, porém a Casa Branca rejeitou a proposta.
Além disso, a despeito
das diferenças entre Síria e Venezuela, o exemplo do que ocorreu a Bashar al-Assad
deve servir de aviso ao regime bolivariano, pois, no intervalo de apenas duas
semanas, a família Assad, que governou a Síria por mais de cinquenta anos, foi expulsa
pelos rebeldes que combatera desde 2011. De fato, muitos já tinham por certo
que a guerra civil síria, uma das mais brutais do século XXI, estava a caminho
de uma vitória completa por parte do governo em Damasco. Contudo, a mudança de
prioridades geoestratégicas por parte de Moscou e Teerã — além do
enfraquecimento do Hezbollah —, abriu uma oportunidade que os rebeldes souberam
explorar a seu favor, gerando aquilo que, popularmente, é descrito como um “efeito
dominó”. Diante do súbito avanço da oposição, os militares governistas desistiram
de lutar, refugiaram-se em áreas costeiras ou se exilaram. Desse modo, o regime,
simplesmente, caiu, para o espanto dos seus adversários, recebidos de braços
abertos pela população eufórica em Damasco. Quem poderia imaginar que algo tão
repentino e profundo pudesse ocorrer como tamanha rapidez? Mesmo os analistas
mais experientes foram pegos de surpresa.
O caso sírio é um reflexo
dos tempos atuais. As velhas estruturas que consolidavam o poder político em
torno de si e que eram capazes de suportar grandes conflagrações, agora,
colapsam em semanas. Pouco importa se falamos de uma pequenina nação budista como
o Nepal, ou se é uma sociedade islâmica do Oriente Médio como a Síria. Também pouco
importa, aos olhos do Ocidente, se Israel promoveu um genocídio em Gaza, ou se
Donald Trump deseja ser aceito como “rei da América”, a mesma nação que elaborou
o que entendemos por democracia liberal. Tal desmantelamento das macroestruturas
se associa a uma interconexão das diversas crises: mudanças climáticas, extinção
em massa, instabilidade econômica, fluxos migratórios, crise de legitimidade
das democracias etc. Temos, cada vez mais, a sensação de que o mundo ao nosso
redor desmorona numa direção que não somos capazes de prever e muito menos de
controlar. Para suportar tamanho sofrimento, muitos aderem ao fundamentalismo
religioso, ao uso abusivo de entorpecentes, ao isolamento ou mesmo ao suicídio.
Na esfera política, os
sinais desse adoecimento coletivo se apresentam na emergência de políticos que
se dizem “contrários ao sistema”, tais como Trump, Bolsonaro, Milei etc. Além
disso, o acomodamento da esquerda à ordem liberal, em função do desaparecimento
da União Soviética e do aparente triunfo do sistema capitalista, é indissociável
do surgimento desse extremismo pretensamente anti-establishment. Enquanto que,
aos olhos da extrema direita, tais nomes seriam a personificação da esperança
na luta contra o “comunismo” e o “globalismo”, vejo neles sintomas de um
Ocidente que se perdeu pelo caminho, esquecendo-se dos valores que defendera
desde as revoluções liberais do século XVIII. Foi exatamente a partir dessas
revoluções na Inglaterra (1688), EUA (1776) e França (1789), que o Ocidente
testemunhou seu período áureo, sendo, inclusive, capaz de fazer dobrar os demais
povos aos seus ditames. Em nome do progresso econômico, cultural e cientifico,
deixou-se de lado o obscurantismo medieval, de modo que, em épocas de maior lucidez,
tais figuras jamais alcançariam a posição de estadistas. Ao contrário, seriam
relegados à sarjeta.
Sem dúvidas, Donald Trump
é a figura mais midiática da política internacional, porém mais pelos seus desvarios
do que por um suposto brilhantismo na condução da sua política externa, algo
que captura, com extrema facilidade, as manchetes dos portais e o burburinho infindável
das redes sociais. Sua onipresença no noticiário é fruto de um histrionismo
sedento por atenção, e não de uma genialidade desmerecida pela “imprensa
esquerdopata”. Basta compará-lo a presidentes como F.D. Roosevelt ou Abraham Lincoln
para concluir que os EUA vivem uma seríssima crise na formação de lideranças
qualificadas para a complexa tarefa de governar. Sugerir sandices, como a
anexação da Groelândia ou do Canadá, é mais midiático do que se sentar à mesa e
esforçar-se, ao longo de muitos meses, por costurar um acordo minimamente justo
aos envolvidos. Tal como um antiquado imperador romano, Donald Trump precisa
entregar alguma conquista ao seu eleitorado, caso ainda queria rasgar a velha constituição
e arriscar-se na busca de um terceiro mandato.
E para que tanta pressa?
Mais uma vez, a resposta está no crescimento da China.
Em
setembro, foi realizado, no centro de Beijing, um portentoso desfile militar
para comemorar os oitenta anos do fim da 2ª Guerra Mundial. No evento, tido
como um dos mais importantes deste ano, viu-se de tudo: veículos de combate,
tropas em marcha, mísseis balísticos, drones… Ao apresentar seu mais avançado arsenal,
a nação chinesa comprovou que já não é mais uma mera replicadora de tecnologias
vindas de fora. Pouco a pouco, a China volta a ser o que era em épocas
passadas: o reino do meio. Seja no que diz respeito à fabricação de mísseis
hipersônicos ou à manufatura de drones, os chineses estão na disputa pela
vanguarda tecnológica, competindo, palmo a palmo, com os americanos pela
supremacia em áreas sensíveis do meio militar.
Porém, a geopolítica não
se faz só com armas sofisticadas. Qualquer pretendente a superpotência precisa
trazer aliados para o seu lado, em especial os mais fortes, ricos e confiáveis.
Afinal, ninguém salva o próprio pescoço se for largado na selva sozinho. Mesmo
os norte-coreanos reconhecem isso ao se aproximarem de Xi e, em especial, de Vladimir
Putin, haja vista a cooperação militar de Pyongyang na guerra contra os
ucranianos. De fato, à medida que o cenário global mostra-se cada vez mais
instável em todas as latitudes, alianças precisam ser formadas o quanto antes,
de modo que é natural que se fale, cada vez mais, no princípio de uma 2ª Guerra
Fria, ou mesmo de uma possível 3ª Guerra Mundial. Até agora, todos falam em pacificação,
ao mesmo tempo em que afiam o gume de suas espadas.
No
desfile mencionado, como já era de se esperar, a mídia pôs em evidência a
presença de Putin e Kim Jong-un, que assistiram a tudo numa posição
privilegiada. O grau de cortesia da recepção de Xi Jinping demonstra a
relevância desses vizinhos para os seus planos futuros quanto à expansão
chinesa pela Eurásia. No entanto, a visita de Narendra Modi, primeiro-ministro
da Índia, foi um dos fatos mais importantes da geopolítica recente, com possíveis
efeitos adversos para as potências que ainda se perguntam sobre como conter a ascensão
do dragão oriental.
Modi visitou a China pela
primeira vez em sete anos, por ocasião da 24ª cúpula de abertura da Organização
para Cooperação de Shangai (OCS), organismo multilateral criado e capitaneado
por russos e chineses, cujo objetivo é, essencialmente, remodelar as relações
internacionais em favor de Moscou e Beijing. Se, no passado, os diplomatas e
líderes chineses eram cautelosos em suas manobras e ambições geopolíticas,
agora tudo é diferente. Com efeito, Xi Jinping foi explícito em expor — na
presença de vinte lideranças euroasiáticas — a necessidade de uma Iniciativa de
Governança Global (IGG), algo que não se via desde 1991, ano do colapso
soviético. Nas palavras de Xi Jinping, devemos “defender a visão de uma governança
global com ampla consulta e contribuição conjunta para benefício compartilhado,
fortalecer a solidariedade e a coordenação e nos opor ao unilateralismo”.
Qualquer estrategista
minimamente perspicaz sabe que é quase impossível conter o avanço da China sem
o apoio da Índia, sua grande rival regional, possuidora de uma civilização
milenar, uma economia pujante, uma população descomunal e um arsenal nuclear
forte o suficiente para arrasar seus vizinhos em poucas horas. Decerto, foram
registradas escaramuças entre soldados indianos e chineses em anos recentes,
fruto de disputas fronteiriças ainda sem uma solução diplomática. No entanto, a
ida de Narendra Modi à cúpula da OCS parece indicar a disposição, por parte de
ambos os lados, de deixar de lado velhas divergências em nome de um bem comum: sobreviver
aos desvarios de Donald Trump e promover uma maior integração das suas
civilizações.
Por fim, numa foto
emblemática, Vladimir Putin (Rússia), Xi Jinping (China) e Narendra Modi
(Índia) entrelaçaram as suas mãos, simbolizando uma união do mais alto nível.
Nas relações internacionais, fotos não são uma trivialidade; elas comunicam,
explicitamente, algo que dispensa tratados, promessas e palavras. Por outro
lado, ainda temos um longo caminho pela frente. A cartada da terceira guerra
mundial ainda se esconde sob a manga dos EUA, que pode se recusar a abrir mão
da sua hegemonia imperial, levando-nos todos ao matadouro de uma guerra sem
vencedores.
Se
Xi Jinping souber trazer a Índia para o seu lado, superando uma profunda rivalidade
histórica, o Ocidente verá as três maiores potências da Eurásia alinhadas em
oposição aos seus desígnios. E não há nada que ele possa fazer a respeito.
Trata-se de um novo mundo que se constrói.
Daniel Viana de Sousa
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