sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

Livros lidos em 2021

 

            Este foi o ano que eu mais li. No entanto, permaneço insatisfeito com a exígua quantidade de tomos consumidos, tendo em vista que o número de livros lidos por estrangeiros, geralmente, é superior ao meu. É claro que a maioria dos brasileiros lê muito menos que eu, porém isso não me dá direito de acostumar-me à postura de semiletrado. É preciso se desafiar, ir além dos próprios limites, rumo a uma vida em constante transformação. Não seria o escritor uma figura peregrina? Não seria sua busca uma condenação à solitude?

Ora, se levarmos em conta que tenho sérias pretensões de ser escritor, cujo ofício baseia-se na elaboração de novas maneiras de expressar-se com a Linguagem, o buraco acaba sendo mais fundo, haja vista que um escritor não deveria se limitar a ler menos de trinta livros por ano. Certamente, todo escritor tem de ter uma perturbadora fome por livros e mais livros, de modo a acumular em seu microcosmo o máximo de possibilidades, variedades e sabores da língua em que se expressa. Nessa empreitada, não pode haver procrastinação ou preguiça.

            Ainda assim, tenho motivos para alegrar-me. Pois, neste ano que acaba, tive o prazer de começar a ler autoras de alcance nacional, tais como Clarice Lispector (!), Adelia Prado e Aline Bei; também tive a oportunidade de conhecer autores estrangeiros que não fossem pertencentes à Anglofonia, como, por exemplo, Domenico Losurdo, um italiano, e Rainer Maria Rilke, autor de língua alemã. Ainda assim, meu mergulho na Literatura foi tímido. Sinto que preciso de mais, muito mais. Um universo inteiro está à minha espera.

            Eis, portanto, minha lista de livros lidos em 2021, um ano absolutamente diferente de todos que vivi.

 

1.      Simplesmente irmãos vol.2 (Irmãos Maristas)

2.      Uma história dos jesuítas, John W. O’Malley (Edições Loyola)

3.      Crise Colonial e Independência (Editora Objetiva)

4.      Olhando para dentro (Editora Objetiva)

5.      Colonialismo e luta anticolonial, Domenico Losurdo (Boitempo)

6.      Cartas a um jovem poeta, Rainer Maria Rilke (Biblioteca Azul)

7.      Perto do coração selvagem, Clarice Lispector (Rocco)

8.      A paixão segundo G.H., Clarice Lispector (Rocco)

9.      A hora da estrela, Clarice Lispector (Rocco)

10.  O Cristianismo na Idade Média, Danilo Mondoni (Edições Loyola)

11.  O Cristianismo na Antiguidade, Danilo Mondoni (Edições Loyola)

12.  E os cristãos se dividiram, Danilo Mondoni, (Edições Loyola)

13.  A Caminho com Inácio, Arturo Sosa (Edições Loyola)

14.  O peso do pássaro morto, Aline Bei (Nós)

15.  Pequena coreografia do Adeus, Aline Bei (Companhia das Letras)

 

 

Daniel Viana

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terça-feira, 30 de novembro de 2021

Não há esperança

          Livrar-se das ilusões e suas falsas promessas é um processo tão amargo, que a maioria, por comodismo e insegurança, simplesmente prefere manter-se presa à sua bolha de fantasias e mentiras.

A sociedade ocidental tem como um dos seus mais preciosos fundamentos a noção de liberdade individual. Crê-se que cada um é livre para fazer o que bem entende, ainda que essa “liberdade”, normalmente, restrinja-se a consumir os produtos que fazem a roda do Capitalismo girar sobre os demais. Essa roda tem sido duramente questionada desde a Crise Financeira de 2007/2008, o que ajudou a renascer o Marxismo em meio às gerações mais jovens. Não é à toa que essa roda vem esmagando mais pesadamente os jovens; basta dizer que, nas estatísticas de desemprego, de informalidade, os Millennials ocupam as posições mais desfavoráveis ano após ano. E, ainda que o Comunismo não tenha a força de cem anos atrás, muitos capitalistas já enxergam a possibilidade de rever alguns dos seus dogmas neoliberais, tendência que se acentuou ainda mais com a crise econômica derivada da pandemia do novo coronavírus. Em suma, o famigerado “sistema” está em crise, o que, certamente, não é algo novo; contudo esse fato abre novas possibilidades para aqueles que realmente querem “sair da Matrix”.

Porém, a despeito do explosivo avanço tecnológico que temos observado nos últimos decênios, a psique do ser humano não evoluiu ao ponto de superar coletivamente seus dilemas, preconceitos e instintos mais primitivos. Nosso mindset não corresponde às aspirações que, às vezes, nos impomos uns sobre os outros. Na realidade, os meios para se controlar as massas nunca foram tão preocupantes e eficientes, como se pode perceber nas tecnologias de reconhecimento facial, de vigilância cibernética, de repressão policial, de rastreamento por satélite etc. Em nome de uma difusa noção de segurança nacional, bilhões de pessoas tornaram-se — contra a sua vontade — ratos de laboratório num experimento que nenhum indivíduo isolado tem total controle. Este, é um sistema altamente complexo, cuja plena compreensão ainda levará anos para ser alcançada. De fato, rebelar-se contra essa realidade é cada vez mais difícil. Ao contrário do que muitos advogam, a solução dos nossos problemas não virá da tecnologia, das novas revoluções industriais… Na realidade, tal como vimos em épocas passadas, a tecnologia é absolutamente capaz de agravar ainda mais o sofrimento coletivo.

Curiosamente, ao invés de fomentar a rebelião, tal conjuntura sociopolítica terminou por favorecer o comportamento de manada no ser humano. Nunca fomos tão acomodados e manipulados quanto agora. Pois, cada um renunciou ao dever da busca pela mudança, do questionamento, da procura por um mundo melhor, do embate contra os poderosos…. Não há mais revolucionários, tampouco líderes que inspirem os melhores anseios da humanidade. Sobram arrivistas de respostas rápidas, oportunistas com frases de efeito, cafajestes de apelo popular com suas simplificações mentirosas e grosseiras; todos estão à procura de espaço no noticiário, visualizações na internet etc. Ao mesmo tempo, desde que o comunismo soviético entrou em colapso, acentuou-se nas gerações mais novas um distanciamento em relação à política partidária e convencional, de modo a produzir uma verdadeira pulverização dos tradicionais movimentos de massas. Onde estão os movimentos estudantis? Onde estão os sindicatos? Onde está a força dos intelectuais e artistas? Onde estão os partidos populares? Tal vácuo foi preenchido por tecnocratas, demagogos e gângsteres da pior qualidade; todos plutocratas e antipopulares com visíveis tendências antidemocráticas. Portanto, torna-se necessário que o povo traga a política novamente ao seu dia a dia, debatendo, às claras, o nosso futuro enquanto sociedade. E, mesmo assim, este será só o primeiro passo de um processo que se estenderá por décadas à nossa frente.

Entretanto, cada vez mais, as pessoas se acomodam à própria servidão. Com efeito, a postura heroica de sair à procura de respostas para perguntas tão gritantes, não é habitual em nossa sociedade. Na realidade, isso não só é visto como algo demasiadamente excêntrico, como também é muito exigente e, ao menos em nossa cultura de entretenimento, pouco apelativo. É mais aceitável cair de cabeça num hedonismo imaturo e infrutífero, além de variados hobbies e entretenimento fútil. Parece que abandonamos o heroísmo dos míticos guerreiros que enfrentavam feras mitológicas, salvavam donzelas e superavam barreiras instransponíveis para os mortais; excetuando-se os filmes de super-heróis, os mitos antigos já não parecem inspirar em nós o mesmo que ocorrera com gregos da Antiguidade.

Sem heroísmo, orientação ou sentido para a vida, o ser humano torna-se vulnerável a todo tipo de doença mental. De fato, é de conhecimento geral que estamos passando por uma pandemia ainda pouco noticiada pela mídia: a da depressão. Indo muito além de aspectos como nacionalidade, raça, religião, gênero, idade, preferência política e condição social, a depressão aprisiona pessoas nas mais variadas circunstâncias e eventualidades. É claro que não há respostas fáceis para um problema dessa envergadura, porém não há como dissociar esta realidade do contexto socioeconômico ao qual estamos atrelados. O aumento das psicopatologias são, em parte, uma consequência da precarização da vida nas grandes metrópoles contemporâneas. À medida que assumimos o comportamento de um multitasking/workaholic, vamos nos imergindo num caminho que só poderá terminar em profunda perturbação mental, pois não somos capazes de atender demandas tão altas pelo tempo que se requer. Somos limitados, frágeis e precisamos frear o corpo e a mente de tempos em tempos para manter um certo nível de bem-estar psicossocial.

(Tal como um subproduto do Ocidente católico, consequência trágica da expansão dos impérios ibéricos, a América Latina mantém-se como mera receptora tardia de tendências eurocêntricas. Ainda que caminhemos para um século asiático, cujo protagonismo, pela primeira vez em séculos, dar-se-á no Extremo Oriente, mantemo-nos apegados à opinião dos velhos senhores, renegando, de maneira inegavelmente tola, a nossa vocação para a união continental. Deixamos de inovar, tememos imaginar novos mundos, renunciamos ao desafio de contestar os ditames repassados pelos nossos colonizadores. Aliás, após décadas de governos pretensamente democráticos e liberais, estamos, vagarosamente, nos dando conta de que não basta o direito de votar em quem quiser, é preciso uma verdadeira e profunda democratização do poder, da renda, do conhecimento, da terra, da cidade, da mídia, da tecnologia etc. Isso não se dará sem luta nas ruas, sem uma vanguarda política que assuma o protagonismo próprio de quem se vê imbuído do dever da mudança. Entretanto, em nosso horizonte imediato, tudo se resume a quem preferimos colocar na cadeira presidencial. Nada poderia ser mais tragicômico.)

            Não resta dúvidas de que grande parte das pessoas só passa a questionar a realidade após uma experiência traumática, tal como uma catástrofe, a morte de alguém querido ou um acidente violento. Caso tudo se mantenha em perfeito estado, o ser humano da nossa época segue sua vida ordinária como mais uma engrenagem da sociedade moderna, movendo-se bovinamente em direção ao matadouro. Há pessoas que chegariam a defender a estabilidade desse “sistema”, sua sobrevida vegetativa, em firme oposição aos que pregassem uma superação dessa realidade que nos oprime e fustiga, pois sua parca sobrevivência depende da permanência de tudo como está. Isso não é novidade. A história humana está repleta desses conflitos maniqueístas.

De fato, em nossa sociedade, quem descumpre a regra de caminhar junto à turba de iludidos é, de modo geral, acusado de insanidade e, por vezes, visto como ameaça ao “sistema” que nos governa — quem nunca foi acusado de esquisitão por seus pares, simplesmente, por não seguir o rebanho nos mesmos gostos e costumes? Contudo, nem sempre a realidade se apresentou dessa forma torpe. Na verdade, ainda há uma tradição, em certas regiões da Ásia, de homens que deixam tudo para trás e partem em busca duma sabedoria que escapa ao senso-comum. Ainda é comum encontrar ascetas, místicos, sábios e errantes na Índia e em outras regiões do continente asiático.

Entretanto, à medida que a Internet abre suas portas aos mais variados setores da sociedade humana, torna-se claro que o entretenimento rasteiro e barato é a verdadeira aspiração das massas digitais. A despeito de haver uma infinidade de opções de consumo — algumas genuinamente reflexivas e complexas —, tudo se resume a um conteúdo absolutamente vazio, simplista e mercadológico, feito para ser “a sensação do momento”, “o hit do verão” e nada mais que isso. Cada vez mais, tem se tornado difícil encontrar pessoas que tenham alguma familiaridade com o cânone da Literatura Brasileira, os clássicos da Música Popular Brasileira e assim por diante. E, mesmo que o ensino público tenha se universalizado no Brasil, a qualidade da Educação pública nunca foi tão baixa.

Não tenho dúvidas de que vivemos um processo de emburrecimento em massa — quase tão grave quanto o cenário retratado no filme Idiocracy (2006). Os sinais da catástrofe estão por todo lado. Para tanto, basta mencionar o negacionismo científico e o anti-intelectualismo, o movimento antivacina, o ressurgimento da extrema-direita, a proliferação de fake news e as redes sociais como único meio de socialização coletiva, a incapacidade de se lidar com a mudança climática, a incontrolável extinção de espécies, as crises financeiras, o fortalecimento do tráfico de drogas etc. Não há como ignorar o fato de que vivemos uma época de decadência estrutural da nossa sociedade.

Os budistas, por sua vez, testificam que vivemos um tempo de degenerescência, o que tornaria ainda mais desafiador alcançar um entendimento mínimo do Dharma. Atravessamos uma era de obscurecimento daquilo que os seguidores do Buda chamam de “a natureza mais profunda da realidade”, dificultando a prática diária de libertação dos condicionamentos aos quais estamos presos. Para eles, o Samsara simplesmente não tem concerto. Deve-se deixar de lado a esperança de que “tudo termine bem”. Afinal, foi a compreensão de que todos os seres estão condenados ao envelhecimento, à doença e à morte, que fez Sidarta Gautama sair em busca de uma resposta ao sofrimento inerente a tudo que nos rodeia.

Devo dizer que isso me traz um certo conforto, haja vista que me poupa de labutar por uma sociedade em que todos sejam plenamente felizes. Isso simplesmente não vai acontecer — o que não quer dizer que a luta por uma sociedade mais justa seja desnecessária, apenas não se alimenta a expectativa de que a mudança trará o antídoto para os nossos males.

Diante disso, o que deveríamos esperar? Eu não espero nada.

 

Daniel Viana

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domingo, 31 de outubro de 2021

O que temos à nossa frente

 

         Esta é a primeira vez que falo sobre a pandemia que se alastra pelo mundo desde 2019.

            Naquela época, eu estava mergulhando em assuntos pessoais: concluir a graduação em Tradução e dar um novo rumo à minha vida — eu passara sete anos na UFPB, fazendo o que todo universitário faz para conseguir seu título de bacharel.

Assim como quase todas as pessoas do meu tempo, jamais pensei que uma pandemia poderia arrasar com a vida de tantas pessoas em tantos lugares num espaço tão curto de tempo, embora já me preocupasse há um bom tempo sobre a proliferação de superbactérias em decorrência do uso descuidado de antibióticos. Aliás, quero deixar registrado meu temor de que ainda vejamos problemas relacionados a superbactérias num futuro não tão distante.

            Tenho a impressão de que a fase mais sombria da pandemia ficou para trás, embora seus efeitos na Economia, na Política e na Sociedade se mantenham por mais alguns anos. Ainda estamos vivendo um dos piores momentos da nossa História enquanto nação. Aliás, tenho certeza de que a possibilidade de tudo piorar mantenha-se mais viva do que nunca. Estamos num país que sofre as consequências de problemas mal resolvidos, oportunidades desperdiçadas, vícios irresolvíveis, os quais se perpetuam à medida que os anos passam. O analfabetismo persiste, a miséria e a fome se acentuam, a falta de saneamento básico não se resolve, o encarceramento em massa de negros e pardos não se supera, a violência contra mulheres e minorias não se dirime, a poluição não se anula, a corrupção não se purga, a economia não decola, a desindustrialização não se reverte, a desigualdade social persiste indefinidamente…

Não importa qual sigla partidária assuma o comando dos cargos públicos ou qual será a nova figura política que nos governará a partir de Brasília, o Brasil sofre de uma crise sistêmica que só será superada e compreendida em sua plenitude daqui a uns bons anos pela frente.

E, a despeito de Bolsonaro e Lula serem políticos absolutamente diferentes, não alimento grandes esperanças para as Eleições de 2022, caso o PT volte ao poder — sei que isso escandaliza alguns, mas é o que sinceramente penso. É claro que boa parte da tragédia que nos aflige se deva à gestão calamitosa, sectária e criminosa de Bolsonaro e seus incompetentes ministros. Mas, isso não muda aquilo que o PT representa para o nosso país. Como já disse antes, muitos vivem de um passadismo ilusório, cujo efeito expressa-se na obsessão em ver Lula voltar à cadeira presidencial. Entretanto, vivemos numa conjuntura socioeconômica completamente díspar em relação àquela em que o PT chegou ao governo federal, de modo que as velhas estratégias, as espúrias alianças e os costumes de sempre não surtirão o efeito desejado pela cúpula petista. É preciso uma mudança verdadeiramente estrutural em toda sociedade brasileira.

Certamente, o cenário político é demasiadamente movediço, de modo que ainda é cedo para saber quem será o próximo Presidente da República — há quem diga que o atual presidente corre o risco de não estar presente nas próximas eleições, haja vista as suas patacoadas e desatinos escatológicos. O próprio Bolsonaro estava longe de ser o franco favorito no início de 2018, de tal maneira que, só às vésperas de Outubro de 2022, é que saberemos os potenciais competidores à cadeira presidencial. Resta-nos acompanhar os fatos políticos que se acumulam à medida que os dias passam.

Aquilo que tenho certeza é que dificilmente sairemos do atoleiro que temos pela frente, pois a crise econômica alimenta a crise política e vice-versa. De certa forma, é como se estivéssemos cavando a própria vala, só que sem nos darmos conta. Agarrados às nossas preferências ideológicas e ensurdecidos para aquilo que os demais tentam apontar de concreto, acusamos os oposicionistas de afundar o país, enquanto que a balbúrdia coletiva só piora o cenário nacional. De fato, é a desunião que nos condena ao fracasso enquanto nação.

Dissensos desta magnitude por vezes desembocam em guerras civis, o que não é improvável para um país fraturado como o nosso. Não nego que haja, em nossa sociedade, grupos interessados na subjugação do nosso povo, no entanto, a grande maioria deseja o mesmo: o triunfo do Brasil enquanto nação. Acalmemos, portanto, os nossos corações e ouçamos uns aos outros pacientemente, a fim de que a soma dos erros individuais não resulte numa completa convulsão social. Ainda há esperança para a nossa gente emergir do oceano de tragédias e triunfar soberanamente.

 

Daniel Viana

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sábado, 11 de setembro de 2021

Um elogio à Internet

 

            Penso que a maior invenção dos últimos séculos foi a Internet. E me sinto honrado por viver nos tempos atuais, tendo acesso a dados que, em outras épocas, seriam completamente inalcançáveis às pessoas comuns. Em outros tempos, mesmo os homens e mulheres mais influentes teriam uma dificuldade tremenda em ter acesso a certos conteúdos, tais como livros, músicas, discursos etc., os quais, hoje, estão ao alcance de um clique. 

           Isso não é pouca coisa. 

      Munido de um computador, uma educação mínima e uma boa conexão, uma pessoa pode ter acesso ao que nem os grandes filósofos, os melhores estadistas e os mais renomados cientistas do passado tiveram: um universo inesgotável de informação em inúmeras línguas, perspectivas críticas etc. No futuro, os historiadores certamente definirão a nossa época como um divisor de águas, tanto para o bem quanto para o mal.

            Além disso, a visibilidade e autonomia que a Internet possibilitou, por exemplo, aos escritores iniciantes, é inteiramente inédita. No passado, a fim de se projetar a um público mais amplo, seria preciso que um artista se filiasse a um mecenas, cuja fortuna patrocinaria a sua obra — geralmente, o patrono não abriria mão de exercer um certo controle sobre o conteúdo e a estética a ser criada —, caso contrário, ele terminaria sendo uma figura à margem, preterida do cenário artístico, para sempre condenada à invisibilidade. 

           De fato, a Internet mudou tudo. 

         Agora, da mesma forma que um neófito pode cair nas graças do público a qualquer instante, um artista genial e experiente, que guardou a sua arte por toda a vida, devido à timidez ou à falta de um mecenas, pode vir ao ciberespaço e apresentá-la ao público sem quaisquer restrições. Dizem que "há muita porcaria na Internet", o que é verdade, mas também não deixa de ser perceptível a extraordinária diversidade de conteúdo, antes regulado ou refutado pelo patronato.

        Com efeito, a Internet potencializa e reverbera as aptidões dos seus usuários. Ela pode ser útil tanto a um criminoso quanto a um sujeito bem-intencionado, o que é preocupante, mas não adianta crucificar algo que não passa de um veículo, uma ferramenta. É mais eficiente (e inteligente) fiscalizar os suspeitos dentro dos limites impostos pela lei, ao invés de vigiar as pessoas aleatoriamente e ilegalmente, recolhendo dados pessoais que servirão tão somente como meio de espionagem e controle da sociedade pelo Estado e as classes dominantes. Simplesmente condenar a Internet, não serve de muita coisa, pois, a espionagem não só sempre existiu, como continuará existindo até o dia em que os cidadãos decidirem mudar o Estado em si. Essa é uma questão que envolve a luta pelo Poder, de modo que ela mereceria uma análise mais detalhada em outro texto.

         Ademais, quando se trata do mercado de trabalho, é comum ouvir críticas de que a Internet propiciou a implosão de certas profissões e lugares, como, por exemplo, os taxistas, as livrarias e as locadoras de filmes. Novamente, esta é uma crítica que não toca no ponto fundamental.

Avanços tecnológicos sempre implicaram em profundas transformações na sociedade, o que, necessariamente, inclui a Economia: o automóvel aposentou as carruagens, a luz elétrica aposentou os acendedores de lampião e, ao que tudo indica, a inteligência artificial aposentará os caminhoneiros. Nesse caso, o mais adequado não é travar o progresso tecnológico, tão necessário à Humanidade, mas gerir a sociedade de modo que os desempregados, caso não possam ser realocados para outro setor da Economia, recebam algum tipo de renda mínima — semelhante à proposta de Eduardo Suplicy —, que forneça segurança econômica às suas famílias. Para tanto, faz-se necessário uma luta política organizada, no intuito de que a classe trabalhadora e os mais pobres não fiquem ao deus-dará. Este seria, sem dúvidas, o pior cenário.

            A Internet mudou as nossas relações interpessoais? Certamente. Mas ainda é difícil definir, de modo categórico, se foi pra melhor ou pra pior. É preciso um pouco mais de tempo, dado que a minha geração foi a primeira que viveu a transição do mundo analógico para o digital ao mesmo tempo em que amadurecia — a Internet móvel foi, à época, algo inteiramente novo para todos nós —, enquanto que as gerações mais novas, especialmente aqueles que nasceram na década passada, já cresceram à sombra da Internet. Sabe-se que ela não só permite que indivíduos introvertidos encontrem seus pares, como também pode se tornar uma zona de conforto inóspita e tóxica para outros. 

         Enfim, como dissera antes, a Internet amplifica o que temos em nós mesmos. Não é por acaso que checar o histórico de navegação de uma pessoa, de certo modo, pode acabar se tornando uma viagem pela sua mente.

         A despeito das qualidades supracitadas, está se tornando cada vez mais habitual encontrar críticas tanto à Internet quanto às redes sociais — algumas delas condenam a Internet por inteiro, como se esta fosse uma espécie de porão sombrio, um lugar perigoso, onde as "crianças comportadas" não deveriam entrar. Isso vem ocorrendo especialmente após a constatação, por parte de algumas pessoas recém-chegadas ao ciberespaço, de algo que se percebia há tempos: a fortíssima presença da direita (e extrema-direita) no mundo virtual. Essa presença do conservadorismo foi ainda mais reforçada pela ausência da esquerda, que muitas vezes preferiu voltar suas atenções às mídias tradicionais.

         Pretendo fazer uma crítica às redes sociais em um momento mais oportuno, no entanto, quero deixar claro que criticar a preocupante tendência que algumas delas têm em formar bolhas comunitárias de sujeitos ressentidos, é totalmente diferente de assumir um posicionamento visceralmente contrário em relação à Internet. Haja vista que as redes sociais são meramente um fruto tardio, um desdobramento recente de algo muito maior, e não a Internet por inteiro — mesmo que alguns teimem em passar a maior parte do seu tempo exclusivamente nas redes sociais. Ainda assim, prefiro adiar o resto dessa pequena análise pra depois. Por enquanto, deixo registrado o meu apreço e gratidão por esse imenso cosmo virtual que tanto me ajudou. Muito mais poderia ser dito acerca de cada tópico mencionado, contudo, penso ter dado um quadro geral do que penso a respeito.

 

Daniel Viana

Publicado em 29 de Setembro de 2019

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terça-feira, 31 de agosto de 2021

Um elogio a Ciro Gomes

 

As Eleições de 2018 foram, indiscutivelmente, as mais conturbadas da democracia brasileira. 

De um lado, apresentou-se o fanatismo bolsonarista, inflamado pelo atentado do dia seis de Setembro, enquanto que do outro lado estava a candidatura petista, mais concentrada em provar a inocência de Lula do que em apresentar um novo projeto para o país. Tragicamente presos a esta díade, os brasileiros optaram por uma guinada à direita. 

Excetuando-se Ciro Gomes, o centro político colapsou eleitoralmente, tal como se viu nas votações do PSDB, de Marina Silva e outros candidatos à presidência. 

O Brasil estava (e ainda continua) rachado em pólos opostos.

Esta polarização não é nova, tampouco é exclusivamente brasileira; no Brasil, ela vem sendo gestada desde os tempos em que Lula era presidente, intensificando-se a partir dos penosos anos de recessão econômica e da crise política deflagrada pela operação Lava-Jato. 

Aos poucos, as opções para o Brasil foram se limitando a um passadismo ilusório e um conservadorismo hidrófobo. O fanatismo e a imbecilidade chegaram a tal ponto que, defender um lado, tornou-se sinônimo de antagonizar visceralmente com o outro. Do mesmo modo, fazer uma sincera crítica ao PT, passou a significar uma adesão imediata ao discurso bolsonarista e vice-versa, de modo que, neste texto, não perderei meu tempo explicando se sou reacionário, liberal ou comunista. Que cada um tire as suas conclusões.

Na verdade, se levarmos em conta o cenário socioeconômico no qual o Brasil está mergulhado — quatorze milhões de desempregados, seis milhões de desalentados, dezenas de milhões na informalidade etc —, perceberemos o quão urgente é a experiência, a coerência, a idoneidade e a sobriedade tanto na prática quanto no discurso. 

Não há mais espaço para messianismo, voluntarismo e personalismo, haja visto estarmos na mais profunda crise da nossa história.

 É preciso um projeto nacional para que o país supere suas contradições históricas; é preciso deixar de lado discussões periféricas e ir ao cerne dos nossos problemas. Para tanto, espero que os meus leitores se abstenham de paixões momentâneas e preferências partidárias.

Desde 2015, quando começou a se evidenciar a debacle petista, passei a acompanhar as palestras e entrevistas do presidenciável Ciro Gomes. Por vezes, isolei-me no meu quarto, ouvindo, pacientemente, as suas falas em diversas universidades brasileiras. Não me arrependo do tempo que gastei escutando as falas do ex-ministro. Seu diagnóstico da crise política, econômica e social brasileira era algo novo para alguém que não tivera qualquer formação política que fosse além do senso comum. Admito que ainda sou um neófito no que diz respeito aos problemas concretos da nossa sociedade.

Para alguém que sempre votou no progressismo brasileiro, Ciro Gomes estava longe de ser a única opção no pleito de 2018. Havia, por exemplo, Guilherme Boulos e Marina Silva, candidatos dignamente alternativos à candidatura petista. Contudo, a posição de Ciro destacava-se em relação às demais por fazer uma dura crítica ao passado recente sem cair no conservadorismo hidrófobo e semiletrado, ao mesmo tempo em que projetava, de maneira genuinamente sóbria, meios e objetivos que, se concretizados, poderiam mudar significativamente o cenário socioeconômico brasileiro. Em outras palavras, Ciro não se limitou a criticar os adversários, mas também propôs um caminho para sairmos do atoleiro. Além disso, a sua notável carreira política fazia com que ele se apresentasse como um eficiente gestor da máquina pública, algo que o atual presidente não pode reivindicar para si. Para aqueles que rejeitariam a eleição de um aventureiro, Ciro Gomes seria a perfeita antítese de Bolsonaro.

Enquanto isso, os arautos do petismo, simplesmente, não buscaram a juventude universitária a fim de prepara-la para os difíceis tempos que se avizinhavam para todo o país. Apostava-se no passadismo, no personalismo mais rasteiro, na simplificação grosseira de problemas estruturais — alocados na Economia, na governança política, na Educação, na Saúde e assim por diante , os quais, claramente, exigiam um Novo Projeto Nacional de Desenvolvimento para o Brasil (PND).

Ciro Gomes conseguiu demonstrar que, no decorrer de mais de trinta anos da nova democracia brasileira, passando pela governança das mais diversas siglas e personalidades políticas, o Brasil andava às cegas, sem prumo, perdendo mais uma vez o bonde da história. Ele não depreciou as conquistas obtidas por seus antecessores, tais como o Plano Real e o significativo aumento de renda da classe trabalhadora, mas foi preciso em atestar que tais avanços eram insuficientes para alcançarmos a prosperidade justa e necessária para o povo brasileiro, em especial os mais pobres. 

Era indiscutivelmente notável a lucidez crítica de Ciro Gomes.

De fato, após treze anos de governo e quatro eleições presidenciais, ao PT só restava dar explicações quanto aos erros cometidos nas gestões de Lula e Dilma Rousseff. Era premente que se achasse uma explicação para a escandalosa corrupção, para o enriquecimento dos banqueiros, a ausência de reformas estruturais, para as espúrias alianças políticas, para as medidas antipopulares implementadas por Joaquim Levy, as falsas promessas eleitorais etc. 

A despeito da sagacidade de Lula, o PT viu-se completamente fora da realidade nas Eleições de 2018, pois, ao invés de explicar suas falhas, ele arvorou-se no direito inalienável de conduzir o campo progressista a um quinto mandato petista. Mais que isso: Lula acabou por transformar as Eleições de 2018 numa espécie de plebiscito acerca da sua inocência: se você acha que Lula é inocente, basta votar em Haddad para presidente. Possivelmente, este foi o seu maior erro político.

Há quem critique o temperamento de Ciro, bem como a sua extensa errância partidária, que, para alguns, seria um sinal de honestidade duvidosa. 

Na realidade, não há qualquer evidência de que o seu humor tenha comprometido a gestão pública no Ceará, da mesma forma que, no Brasil contemporâneo, fidelidade partidária não é sinônimo de competência e honradez basta mencionar os casos de corrupção ligados à cúpula do MDB na gestão de Michel Temer. Na verdade, poucos que criticam o ex-ministro realmente deram a devida atenção à sua fala crítica tanto ao neoliberalismo selvagem quanto à corrupção petista. Critica-se com base naquilo que circula na grande mídia acerca de sua personalidade vulcânica. Creio que, num país como o nosso, chafurdado na mais cancerosa corrupção que se tem notícia no mundo, encontrar um político como o ex-ministro Ciro Gomes, que afirma jamais ter respondido a um inquérito policial, é, sem dúvida alguma, um achado notável. Diante disso, seus rompantes são, na minha opinião, um mal menor.

Também não me interessa classificar Ciro Gomes no espectro político. Suas posições quanto às “reformas” neoliberais, como, por exemplo, a PEC do Teto dos Gastos, são mais reveladoras que categorias teóricas. 

Ciro é um político da vida concreta, ciente dos problemas reais do povo brasileiro, capaz de achar soluções para os mais variados problemas que enfrentamos. A despeito dos defeitos que possam ser encontrados aqui ou acolá, ele se destaca no atual cenário político. 

De fato, num momento que agrega o avanço do conservadorismo e o ocaso da esquerda tradicional, achar um político que rechaça ambos significa encontrar um novo caminho para o Brasil.

Entretanto, devo dizer que compartilho da análise feita por Jones Manoel em seu vídeo "Indústria 4.0 e soberania nacional". Só uma revolução socialista pode nos tirar da condição em que nos encontramos. Pois, o cenário político atual diverge, inteiramente, daquele que se viu no início da gestão Lula (2003-2010), quando uma parcela do empresariado aliou-se à cúpula petista, no intuito de viabilizar uma espécie de neodesenvolvimentismo à brasileira. 

Hoje, é impossível governar o país sem ir de encontro com as medidas impostas pela burguesia, pelo sistema financeiro e pelo imperialismo estadunidense, pois, esses mesmos atores políticos uniram-se para saquear o Brasil, impondo-lhe “reformas” que empobrecem a classe trabalhadora. 

Avanços civilizatórios conquistados ao longo de décadas pelos trabalhadores brasileiros, foram derrubados entre Agosto de 2016 e Agosto de 2021, ou seja, num espaço de cinco anos, de tal maneira que não resta outra alternativa senão a radicalização de uma nova esquerda, que contorne o petismo e seu legado de frustrações, liderando as massas para uma ferrenha e incontornável luta de classes.

É justo dizer que Ciro não personifica essa nova esquerda à qual estou me referindo, devido ao simples fato de que ele, assim como o petismo, é fruto (e defensor) do sistema político vigente, o qual é hostil a movimentos abertamente radicais e contestatórios. Ciro jamais fará a Revolução que tanto necessitamos. Ele não é um representante inconteste da classe trabalhadora, tal como fora Lula no passado. Ao contrário, seu movimento procede, ao meu ver, de uma pequeno-burguesia letrada, uma classe média socialdemocrata e alguns setores populares insatisfeitos com o PT. Não há nada de contestatório nesses segmentos da sociedade brasileira. Aliás, dificilmente seu discurso alcança as camadas mais vulneráveis da nossa população, o que talvez explique sua derrota em 2018.

No entanto, pode ser que o ex-ministro faça emergir (involuntariamente?) uma força política que seja crítica às tendências que nos conduziram até aqui: o desenvolvimentismo petista, o neoliberalismo antipopular de Fernando Henrique Cardoso e o conservadorismo hidrófobo de Bolsonaro. É possível que o político cearense dê início a algumas mudanças que desejamos tão desesperadamente, as quais o PT não ousou realizar: uma reforma tributária que pese sobre os mais ricos, um programa de renda mínima (claramente inspirada na proposta de Eduardo Suplicy), uma democracia mais participativa, uma política externa que defenda, em primeiro lugar, os interesses nacionais, uma política em defesa do meio ambiente, um combate intransigente contra a desigualdade social em nosso país, uma autêntica intolerância contra qualquer forma de corrupção política, uma Reforma Política à altura dos anseios populares, uma mudança no combate à criminalidade etc.

Ademais, ao contrário de Lula, que apostou, ao longo de treze anos, na cooptação, despolitização e imobilização das camadas populares — algo que agradou enormemente as classes dominantes —, Ciro aparentemente quer o contrário: a entrada das massas na política. Aqui, vale mencionar que o atual presidente vem fazendo esta aposta desde 2018, chegando ao ponto crítico em 7 de Setembro de 2021, quando colocou em xeque uma das mais importantes instituições da República Burguesa: o Supremo Tribunal Federal (STF). 

De fato, Bolsonaro não teme apelar às massas por mudança. Isso o difere de Lula. Na realidade, o capitão reformado sabe que só por meio de um movimento genuinamente popular será possível alcançar o que ele deseja: uma ruptura com o sistema político iniciado nos anos 1980. Pelo que parece, a esquerda petista teme entrar em confronto aberto com as classes dominantes, tanto por querer servi-las quanto por intuir que jamais conseguirá arregimentar as forças necessárias para uma contestação revolucionária.

Ciro deixa claro que os caminhos que trilhamos no passado já não nos serve mais. Os tempos são outros; as circunstâncias nas quais nos vemos envolvidos, se distinguem daquelas em que o PT e o PSDB se viram no início de seus respectivos mandatos. À medida que o tempo passa, uma parte significativa da população adere ao fascismo — sintoma de um regime político falido —, enquanto que a outra vai lentamente acordando para uma realidade dolorosa. A mera defesa de uma “civilidade política”, “do amor contra o ódio”, “da civilização contra a barbárie”, não dá conta. É preciso reconhecer que vivemos uma guerra de classes na qual a conciliação tornou-se, absolutamente, impraticável. Nesse cenário, uma aliança tática com Ciro viabilizaria, na minha opinião, a premente gestação de uma nova esquerda, mais politizada e nacionalista que aquela de Lula, e que vá bem além do que foi feito por PT, PSOL e afins.

Diante do marasmo em que se encontra a esquerda tradicional, vergonhosamente dependente de Lula e incapaz de superar a polarização política na qual nos encontramos, os brasileiros que buscam uma alternativa ao status quo, deveriam abrir mão de suas paixões pueris e ouvir o que Ciro Gomes tem a dizer. Um novo Brasil não só é possível: ele é incontornável.


Daniel Viana

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domingo, 11 de julho de 2021

Dia ensolarado


       Caminhei ao léu por horas, curtindo o sol tropical na praia do Bessa; caminhei de pés descalços, olhando o céu azul, mirando as nuvens esparsas no limiar do horizonte sem-fim; caminhei sozinho, acompanhado tão somente do prazer de novamente sentir a vida pulsar, vibrar e cantar dentro de mim.

Não há porque sentir medo de morrer, a despeito daquela carnificina no noticiário das sete, na qual os pretos pagam o preço de ter a pele que faz a súbita rajada soar. Devo dizer a verdade para você: eu estou nos Elíseos. Tenho o privilégio de não ouvir tiros onde acordo, de não ser continuamente ameaçado pela força policial, pois moro junto à camada mais protegida da sociedade: os brancos endinheirados — os trinta negros estão naquele féretro que desce morro abaixo, para além do umbral que cinde o nosso mundo e o dos mortos.

E nesse dia de sol ninguém falou comigo. O silêncio ruge na baía tropical; ele se avoluma com as primeiras nuvens que cercam a praia, ameaçando-nos com uma chuva torrencial. É melhor assim, pois estavam todos com seus filhos, seus brinquedos e cachorros adestrados; estavam os casais reunidos em volta de suas crias pequenas, tal como uma horda primitiva, cavando poços d’água e construindo castelos de areia, à medida que a maré subia, engolindo suas obras de frágil areia branca. Nesse mundo que vivemos, todas as coisas vêm e vão, mas algo parece se perpetuar: a disposição das pessoas de acordo com a sua pele, de acordo com a família e a comunidade na qual nasce e cresce.

Na praia em que cresci, tudo sempre esteve disposto numa estranha ordem familiar, de modo que preferi não me meter, de modo a evitar aborrecer os transeuntes. Sou apenas uma criaturinha que reflete e — às vezes — se revolta com a maneira com que as pessoas estão postas nessa sociedade de castas. O que eu poderia fazer além de escrever uma crônica? O que eu poderia fazer além de exprimir meu assombro com a maneira com que essa sociedade foi concebida desde os tempos imemoriais? Se fosse possível, eu diria: pergunte aos navegantes, aos bandeirantes, aos primeiros comerciantes, aos escravagistas, aos grandes capitalistas, pergunte aos cafeicultores e toda essa escrota turba que fez o Brasil ser assim.

Alguém diria em meu ouvido: “uma volta ao passado já não é possível, meu amigo”. Seria melhor que todos nos reconciliássemos com o que veio antes, mas a memória faz a rajada parecer mais potente, pois nos recorda de cada dantesca derrota, de cada chacina facínora, de cada botina na goela da nossa gente. A memória de tudo é dura demais pra uma só pessoa aguentar, de modo que me embriago, absorvo o pó lentamente e tento passar o que posso àqueles que vêm à minha presença.

Não procuro fazer mais que o possível pela minha gente mutilada, escorraçada… Por enquanto, vamos viver do que der, cuidando uns dos outros sempre que puder, deixando a verdadeira Revolução para tempos vindouros, quando a pauta não for mais sobreviver ao medo da morte que se avizinha a todo instante. Pode me chamar de covarde se quiser. Eu digo que, se manter vivo, nutrido nas íntimas entranhas pelo saboroso pulsar da vida, é a maior façanha do sujeito pobre, favelado e preto. Não cobremos dele mais que uma digna sobrevivência nesse inferno tropical.

Aos revolucionários, eu digo: não guardem as armas! Apenas saibam usá-las com fervor incendiário nos dias de chuva, pois, nos de sol, a praia vai estar lotada de brasileiros jogando frescobol, bebendo água de coco e surfando nas ondas mansas e deleitosas. Os massacres são sucessivamente recalcados: põe-se o suspeito atrás das grades — ou simplesmente fuzila-o à beira da estrada — como se isso pudesse restaurar uma harmonia, que, de fato, nunca existiu entre nós. Somos desarmônicos desde a gênese de séculos passados. Quando Cabral aportou nas praias tupiniquins, fomos marcados pela desigualdade brutal que perdura até hoje, sem qualquer alteração que possa pôr um fim à imoral acumulação da riqueza coletiva.

Uma vez que, nas ruas, não se enxerga qualquer forma de rebelião, qualquer contestação à realidade presente limita-se a esperanças de teor eleitoral, bem como ao famigerado personalismo, tão requentado por nossas limitações sociopolíticas. Que tragédia! Excetuando-se os conhecidos militantes, com suas ideologias conflitivas e opiniões variadas, as ruas parecem hibernar num sono profundo. Consequência duma despolitização generalizada? Pode ser que sim, mas, creio na modorra típica do brasileiro comum, que ainda não tem consciência plena da sua própria cidadania, senso de responsabilidade com a realidade, coletivismo na sua relação com os demais etc.

Ah, eu sei que sou uma gota d’água nesse oceano que circunda a praia do Bessa; sou pura poeira cósmica que, após viajar pelo infindável cosmo, assumiu a forma do hominídeo evoluído, capaz de ler e rabiscar palavras no papel; sou filho do Altíssimo, que nos ama e nos guarda eternamente; sou uma partícula que se movimenta, confusamente, à procura de um sentido que traga alento a essa estranha solidão que nos rodeia, periférica condição latino-americana; sou fruto da terra que me gerou, cuja insatisfeita procela se agita em meu interior.

 

Daniel Viana

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domingo, 30 de maio de 2021

Eis o que eu faço com os meus dias

 

Nestes tempos de pandemia, faço pouco durante o dia e menos ainda à noite; durmo bastante, divago em sonhos estranhos, deito-me no divã de F. Serrano às cinco da tarde, ouço Pink Floyd, caminho na praia durante o pôr-do-sol e, pra ser honesto com você, estou satisfeito com isso. Nada de correria ou inquietação! Afinal de contas, por que eu me comportaria diferente? Concentro-me em fruir cada momento demoradamente, como se realizasse um ritual solene à meia-noite, após me banquetear num festim nababesco. Passo a passo, vou escrevendo o que está ao meu alcance, contando aquilo que naturalmente brota em minha mente entorpecida pela cafeína. De fato, ao invés de pôr as minhas finitas energias à procura de resultados apressados, deleito-me em viver cada segundo como se fosse um instante sabático.

Há quem critique esse meu jeito desanuviado, próprio — diriam alguns — de quem ainda se encontra nos seus vinte e poucos anos, ou seja, sem as reponsabilidades típicas da maturidade: sair da casa dos pais, crescer numa empresa, pagar as próprias contas, casar-se com uma parceira, ter filhos, ver os anos irem embora… Posso dizer que estou numa fase da minha existência em que algumas urgências simplesmente não se materializaram, o que, de um ponto de vista particular, não deixa de ser um privilégio. Não ter filhos na juventude foi uma escolha consciente de quem preferiria usufruir do tempo mais tranquilamente. Além disso, admito que não tenho ainda a sobriedade que se requer de um pai de família. Ultimamente, minha cabeça anda nas nuvens, de modo que estou só, sem grandes aflições ou intensos amores, mas passo bem. Interiormente, sei que fiz o certo. Claro, não posso negar que a minha condição financeira era uma razão determinante para não ter filhos antes dos trinta.

Todavia, o ócio que estou apregoando não requer horas infindáveis sobre o sofá. É óbvio que isto seria para uns poucos abastados, considerando a realidade social da qual somos parte. Na verdade, eu defendo uma ociosidade que está ao alcance de qualquer um. Basta olhar por um breve momento a luz matutina atravessar a janela, perceber os caminhos retilíneos dos feixes em busca do chão; basta contemplar o trajeto das aves que cruzam o céu vespertino para alimentar suas pequenas crias; basta olhar nos olhos de quem se ama e dizer, em belas palavras, tudo que se sente por ela, sem receio de passar vergonha por ser sincero; basta beber uma xícara de café, enquanto se olha a paisagem da varanda… Não há segredos para experimentar cada instante que a vida nos oferece.

Além do mais, suspeito que é desse tipo de contemplação que surgem os poemas, as sinfonias e os amores mais excelsos, dignos de serem apreciados por nossos corpos sensíveis à beleza imaterial. Quanto a mim, posso dizer que foi justamente nos dias ociosos que eu dei à luz os meus trabalhos mais sensíveis, aqueles que me enchem de um orgulho paternal, de modo que tenho dificuldades em colocar a arte da escrita como um simples labor, pois, para mim, ela também está revestida de lazer e ócio criativo.

Há quem diga — em geral, sem saber de onde vêm tais palavras — que o trabalho dignifica o homem. Ah, que tolice! Não custa lembrar que o trabalho foi a punição dada a Adão por comer o fruto proibido. Não custa lembrar que o vocábulo “trabalho” tem sua origem num instrumento de tortura usado pelos antigos romanos. Então, é válido dizer que trabalhar está mais próximo de uma punição dada ao homem e à mulher desde os tempos imemoriais, do que de um caminho para a sua redenção. Para mim, o trabalho é uma cisão do humano com sua natureza contemplativa.

Também há quem diga que a labuta diária dá sentido à nossa existência, o que, no meu entendimento, é risível; pois, defendo que o mero viver carrega, dentro de si mesmo, o sentido completo da nossa fatigosa errância terrena, independentemente de termos um ofício para nos ocuparmos ou não. Não somos robôs, seres descarnados de necessidades físicas, psíquicas e espirituais, tais como o descanso, a contemplação, o silêncio e a meditação — por mais que o capitalismo inumano insista em nos desprover da espiritualidade humana.

Se não somos máquinas, o que seríamos então? Essa é uma questão que renderia tratados teológicos e filosóficos — algo que, certamente, não pretendo fazer nesse brevíssimo texto. No entanto, creio que posso versar algumas divagações rasteiras, não muito estranhas ao senso comum. Em primeiro lugar, sabe-se que, do ponto de vista microscópico, nós somos constituídos da matéria que se originou nas estrelas mais longínquas, de modo que somos, indubitavelmente, seres cósmicos, destinados à universalidade, entretanto, não é justo reduzir o humano apenas à matéria palpável e observável. Isto seria um erro grosseiro, uma falta imperdoável. Em segundo lugar, minha fé ensina que habita em nós o Espírito que deu origem à Criação. Nós somos, de fato, seu receptáculo mais honroso. Aqui, vale lembrar que Cristo se fez carne, no intuito de sentir, em sua pele incorruptível, o significado de ser humano, o que, consequentemente, dignificou toda a Humanidade. Portanto, cada homem e mulher — também incluo os que não se veem representados pelos dois gêneros mencionados —, independentemente de sua história pregressa, tem uma dignidade inalienável e inquestionável, simplesmente por serem irmãos e irmãs do Cristo. Tais considerações me obrigam a refutar a ideia de que o humano teria, desde a sua concepção primordial, uma natureza maléfica, o que a tornaria merecedora dos castigos inerentes ao trabalho.

Enfim, o Espírito Santo fez de nós a sua morada mais honrosa; Ele preferiu nos inundar interiormente, como água viva em potes de barro, exercendo os mais sublimes impulsos, de tal maneira que estamos voltados à criação — artística ou não — desde o princípio dos tempos, desde a gênese da própria vida. Cada um de nós é parte inseparável da Criação, bem como partícipe do seu início. Em suma, o ato criador está conosco desde sempre, basta dar vazão a ele. Fazê-lo é minha conquista máxima, minha busca diária e meu anseio inesgotável, de modo que não recuo dos silêncios que a hesitação às vezes me provoca, mas me permito desbravar os continentes obscuros do meu interior, mesmo que eu acabe me perdendo em trilhas confusas e desusadas. Sigo sempre em frente, na direção que a minha intuição apontar, sem nunca perder, é claro, o mapa traçado pelos mestres do passado. Escrevo, escrevo, escrevo… Eis o que eu faço com os meus dias.

 

 

Daniel Viana

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quarta-feira, 31 de março de 2021

Por que escrevo

É difícil achar razões para aquilo que é inato, próprio de condições internas à forma de viver. De fato, meu interior é tormentoso, cheio de impulsos febris e descontrolados, que pedem saída, como água represada saindo aos borbotões. É assim que a pulsão pela escrita ruge dentro de mim. Como explicar a vazão desse rugido em letras miúdas, que se desenrola com particular ferocidade nas minhas veleidades artísticas — essa mania de querer ser um homem das letras?

Desde o tempo em que fui criança — lá no alvorecer dos anos 2000, época das minhas primeiras descobertas literárias —, sonhei em arrebatar a atenção das pessoas com um livro benfeito. Este desejo veio sem pedir licença, cobrando de mim esforços hercúleos, que se traduziam em calos nas mãos machadas de tinta escura, arroxeadas pela pressão da caneta à pele parda, doloridas pelo repetitivo esforço de pressionar uma ponta de ferro contra a espessura de dezenas de papéis acumulados. Um preço ínfimo se comparado à satisfação infantil de ver laudas e mais laudas de folha rabiscada, com linhas e mais linhas de história desconexa. Um troféu que seria engavetado na escrivaninha de madeira clara, depósito de sonhos artísticos, um montículo amarelado de velhas folhas recicladas.

Ora, como havia dito anteriormente, eu queria escrever um livro, e queria que ele fosse grande, como aqueles que passavam de mão em mão na nossa pequena família de leitores de fantasia: O Senhor dos Anéis, O Hobbit e o Silmarillion. Nada de pequenos fragmentos da realidade, como as crônicas que hoje escrevo, ou mesmo de narrativas curtas, como os contos. Na época, eu queria uma trilogia de fantasia com ares medievais, nos moldes daquela concebida por Tolkien, ou seja, repleta de seres mitológicos, com tramas diabolicamente envolventes e de uma profundidade inquestionavelmente erudita. Levaria ainda uns bons anos para que eu soubesse apreciar a genialidade de grandes contistas, tais como Murilo Rubião, Hemingway e Tchekhov. Tudo ao seu tempo.

Eu me punha a delinear linhagens de reis míticos, a catalogar subespécies de elfos, anões e dragões legendários e a desenhar estranhos mapas de terras fantásticas. Tudo na ingênua esperança de repetir, com as minhas próprias mãos, aquilo que o escritor sul-africano fizera décadas antes de eu nascer. Infelizmente, de nada adiantou o meu esforço, mesmo que nunca perdesse o desejo primordial pela escrita. Pois, aquilo que eu fazia, não passava de um mero pastiche do que já fora realizado. Não havia originalidade, mas apenas imitação ruim, fruto de uma fascinação juvenil. Eu não nego que às vezes me sentia um pacóvio, um tolo, por tentar repetir o que já fora feito com refinadíssima maestria. Faltava-me algo que eu não sabia bem o que era.

Ainda assim, eu me mantinha escrevendo, como se este fosse o passatempo perfeito para uma mente inquieta, sempre obcecada em criar mundos alternativos à realidade circundante. Digo “passatempo”, pois ainda não enxergava a escrita como uma atividade profissional, embora eu desejasse obter prestígio e dinheiro com ela. De fato, às vezes eu me imaginava como um jovem autor de sucesso, cercado de admiradores e de algumas beldades, lido por milhões de leitores e próximo de me tornar, de uma vez por todas, o maior escritor vivo da Língua Portuguesa. Como você pode ver, eu sempre sonhei alto, sempre busquei os tronos de fama e glória.

À época, não me amedrontava a condição periférica na qual eu estava submetido: um adolescente mestiço do nordeste brasileiro, proveniente de uma classe média ameaçada de cair na pobreza, com educação literária mediana e sem acesso a qualquer tipo de mídia que não fosse a “democrática” internet. Vivendo num país que estranha a sua literatura nacional, que consume a cultura estrangeira, ao invés da nossa cultura brasileira, criando o que Suassuna chamava de “gosto médio”; um país chamado Brasil, que despreza o benfazejo saber acadêmico, enaltecendo unicamente o improviso dos bons futebolistas, eu escolhia justamente um ofício que me condenava à irrelevância social. Perceba: hoje, eu não me amedronto com a solidão, com a má remuneração e a irrelevância do ofício que escolhi, pois quero tão somente me realizar enquanto ser humano e artista, a despeito do reconhecimento alheio ser, de fato, inexistente. Alegra-me saber que não sou o primeiro a atravessar essa cortina de silêncio, porque outros grandes nomes me precederam. Alguns escritores, como Franz Kafka, morreram praticamente desconhecidos; outros, como Bulgákov, não viram os seus melhores trabalhos publicados, devido à dureza do sistema em que viviam, e assim segue a roda da história. Para lidar com o suplício do anonimato — cuja dureza começava, lentamente, a questionar minhas capacidades —, tive de buscar outros ídolos com os quais eu pudesse me consolar: na pintura, eu tinha Van Gogh; na escrita literária, Charles Bukowski e assim por diante. Não necessariamente eu lia suas obras, mas me inspirava em suas biografias, de modo a crer que, de alguma maneira, aquilo que é imortal inevitavelmente triunfa. E assim eu seguia, escrevendo aqui e acolá, ruminando textos que, devido à falta de meios para publicar, acabavam engavetados, rasgados ou esquecidos em alguma estante pela casa. Só meia dúzia de pessoas leu o que escrevi antes de 2019; destas, nenhuma provavelmente se lembra de alguma coisa que pus no papel.

Enquanto isso, o tempo passava, os textos mudavam, as leituras evoluíam e as dúvidas se amontoavam. Passei a ter diferentes questionamentos para diferentes problemas que surgiam na minha mente: qual o sentido da vida? qual a origem do mal? qual a maneira de superar a morte? como ser feliz no decorrer da existência? como funciona o mundo atual? como superar o sofrimento?… Esses questionamentos não vieram de repente, mas foram surgindo à medida que a realidade mudava e à medida que eu mergulhava em elucubrações interiores. Tais investigações geralmente eram um mar sem-fim de palavras, ou seja, não chegavam a uma conclusão definitiva a respeito do que eu realmente pensava. Em suma, eu não dava um ponto final às minhas divagações. Contudo, elas faziam com que eu estendesse os limites do meu pensamento a novas fronteiras, de tal maneira que eu já não era o mesmo de antes. Aos poucos, meus pensamentos iam saindo da mesmice, do raciocínio habitual que permeia as ideias de tantas pessoas hoje em dia. Todavia, eu ainda estava longe do que almejava para mim mesmo: um escritor que se expressasse verdadeiramente por meio da linguagem. De fato, sempre pus grandes expectativas sobre os meus ombros, o que não deixa de ser uma forma de automutilação.

Até que chegou o ano de 2019. Após anos sonhando alto e amargando frustrações, cheguei à conclusão de que não adiantava mais esperar por uma oportunidade aleatória. Era preciso publicar, colocar a cara no mundo. Assim sendo, eu dei início à publicação de fragmentos num blog, chamado “A forma da escrita”. Desde o princípio, eu já tinha em mente o que escrever: crônicas e contos, narrativas curtas. Não só era o que eu acreditava ser mais apropriado a esse tipo de mídia, como era o que eu me sentia à vontade para oferecer aos futuros leitores Mas, após uns quatro meses, cansei-me com a baixa receptividade e dei um fim repentino ao blog. Contudo, essa história não termina aqui.

Em 2020, a pandemia do novo coronavírus forçou-me a ficar em casa. Tudo se resumiu às quatro paredes do meu quarto, de modo que não era mais possível recorrer a desculpas para ficar estagnado. Os pensamentos fervilhavam em minha mente inquieta. Novas ideias pediam vazão em forma de palavras. Portanto, era preciso escrever, de tal maneira que o blog ressuscitou. Após voltar a publicar os textos de 2019 e de ter em mãos a oportunidade de escrever novas histórias, me pus a pensar a razão de ser um homem dedicado à linguagem, cujo esforço se dá na formulação de uma mensagem à espera de ser decodificada por pessoas que eu nem sequer conheço. Afinal, por que eu escrevo? No passado, no tempo de criança, tive as minhas razões para escrever, mas, agora, elas já não se sustentam mais. De fato, sou um novo homem. A grande maioria dos seres humanos passa a vida sem se preocupar em deixar para trás algum opúsculo qualquer. Então, por que eu faço parte desse grupo de pessoas, que busca consolação no ato de escrever?

Para responder a essa questão, te digo o seguinte: não fui eu quem escolhi a escrita, mas a escrita quem me escolheu desde o princípio da minha vida. Aliás, sei que não sou o primeiro a dizer essas palavras: outros já formularam esse pensamento antes. Pois bem, foi essa força — misteriosa e sem nome — que fez de mim seu súdito, seu servo mais ordinário. No entanto, estou mui longe do patamar de Machado de Assis, Raduan Nassar e José Saramago. Sou um reles acólito nessa religião particular. Resta-me escrever, pôr em prática aquilo para o qual eu sou chamado dia após dia, como um escravo que se vê preso a um destino inescapável. Claro que, ser destinado à escrita, não elimina a necessidade do esforço diário, de descobrir como expressar aquilo que está preso dentro de mim, sem cair numa verborragia incontrolável. Expressar-se requer mais que a mera vontade de gesticular, de ligar sentenças aleatórias ou de balbuciar poemas mal versados; para se expressar com desenvoltura, requer-se uma dedicação quase sacerdotal à linguagem, aos seus meandros e amplos espaços à espera de serem desvendados. O ato de escrever, portanto, requer mais que um gesto de voluntarismo; é uma atitude perante a vida, outrossim é dom, oferecido pelos céus àqueles que se dispõem a carregar o fardo de comunicar-se, de ir ao encontro dos outros, que ele nem sabe bem quem é, mas que o examinarão com olhos de ferro. Eu escrevo porque devo, porque preciso, porque amo estar nas linhas esmiuçadas, espicaçadas e esfaceladas.


Daniel Viana

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