sábado, 30 de dezembro de 2023

Antes de mais nada, sou um humanista


            As mais severas dúvidas acompanham a vida das mentes atordoadas e lúcidas, dos seres sublimes e triviais, das almas de inefável candura, assim com aquelas, terrivelmente, pérfidas e imorais; por mais que os homens se arvorem em convicções e teses dogmáticas, não lhes será permitido o repouso eterno no berço das certezas banais.

Pois, de tempos em tempos, somos invariavelmente expostos ao próprio fracasso, atingidos pela mais profunda frustração. Percebemos que a nossa visão alcança somente uma parte do caminho a ser percorrido, de modo que, para ir além, precisamos deixar de lado muito do que nos guiou e redescobrir um novo caminhar para a jornada que surge à nossa frente. Refazer-se por completo; recriar-se por inteiro. É isso que nos exige a existência.

Quanto maior for sua resistência perante os processos de transformação, maior será o sofrimento em dar à luz uma nova criatura. A rigidez daquele que nega as demandas de um renascimento nesta vida, acaba por se tornar a causa de um sofrimento sem-fim e a fonte de um seríssimo entrave pessoal. É duro reconhecer a urgência da mudança, porém ignora-la nos envenena, nos aprisiona e nos atormenta profundamente. Assim, é absolutamente normal que muitas lágrimas venham a escorrer pela nossa face nos dias vindouros, aceitemos isso ou não.

Porém, há algo que sobrevive às crises e passagens, aos traumas e desenganos. Nisso está aquilo que nos é mais íntimo, sincero e precioso, e que devemos buscar, a fim de realizarmos o que, de fato, somos. Sem essa realização, sentiremos que a nossa vida — tão rara e passageira — foi em vão, que fomos derrotados pela própria displicência. Para tanto, resta-nos enfrentar o medo de agir. Certamente, a insegurança nos assombrará de inúmeras formas, tal como ocorrera com todas as gerações passadas, pois ela é nossa companheira, nossa fiel acompanhante ao longo de toda a estrada. Senti-la, nos fará mais humanos e menos arrogantes.

Ora, eu sempre soube que devia me debruçar sobre o papel com caneta à mão, tornar-me um escritor de ficção, um criador de universos, um inventor de personagens. Ao mesmo tempo, assumir uma profissão que fosse meu ganha-pão, foi um percurso solitário, árduo e, às vezes, angustiante. Nunca me vi trabalhando em alguma carreira tradicional, isto é, advogado, médico, engenheiro etc., de modo que levei anos para chegar a algum lugar, mas, me ver como um artista das letras, foi constitutivo desta existência que carrego. Houve vezes em que larguei de escrever, é verdade, mas sempre dei meia-volta, pus de lado o que me atrapalhava, e voltei a dar à luz uma literatura própria. Disso, eu nunca me arrependi.

Agora, compreendo que sou um humanista não apenas pelo completo e precoce desinteresse pelas chamadas ciências exatas, mas também por uma atração íntima pela subjetividade humana, por aquilo que emerge do seu interior nas formas mais variadas de explosão feérica e de criatividade pulsante. A despeito de quaisquer dúvidas, esta certeza sobreviveu às mais intensas mudanças da minha história pessoal. Ainda que a minha compreensão do que seria a Literatura — e do que seria eu mesmo enquanto escritor — mudasse com o passar do tempo, algo se mantinha vivo em mim. É possível que fosse uma missão individualista, ou uma ambição de se destacar em meio à multidão anônima, mas, ainda assim, havia algo a mais. É graças a essa força, que ainda não sei nomear, que eu pude chegar até aqui: escrevendo e publicando textos neste oceano chamado de internet.

            Não sei a quem devo esse gosto pelas Humanidades. Ao ambiente familiar, devo muito do que sou, mas as raízes não dão conta de explicar nem parte dessa história. Tenho parentes que não compartilham das mesmas preferências, a despeito de termos tido uma infância inteira juntos, com tristezas e alegrias tão próximas. Nós podemos debater e apreciar certos artistas e suas obras, contudo, em algum momento, cada um escolherá seu caminho, posicionando-se à parte, longe dos demais. A família é a origem, mas sua influência se desvanece à medida que os anos passam. Podemos retornar a ela em certos momentos, porém os avós morrem, em seguida, os pais e os tios e, depois, os irmãos mais velhos, até que nos resta nada além de nós mesmos e as memórias que sustentamos conosco. Ao final, teremos de andar com as nossas pernas e descobrir a nossa voz, tal qual o fizemos na primeira infância, porém sem nenhuma garantia de gracejos e aplausos.

Reconheço que, falar de si mesmo, denota em mim um certo grau de soberba. Além disso, há que se registrar que ninguém anda lendo este blog, o que, às vezes, me dá algum alívio. Pois, quero que a porta ao meu mundo interior mantenha-se fechada às almas fúteis; quero que nada chegue àqueles olhares adestrados pelo apelo convencional; quero que se danem às valas do inferno os amantes das mesmices, das conversas permeadas por mediocridade; quero me livrar de tudo que carrega consigo o comodismo frívolo do olhar alheio.

Assim, tenho feito textos sem a preocupação de divulga-los, pois os vejo como ensaios de algo maior e melhor, algo que, talvez, comece a dar as caras no ano que se aproxima. No entanto, não posso assegurar nada, haja vista os fracassos em dar fim a projetos anteriores: romances abandonados; histórias inconclusas; contos atrofiados; ensaios de meia linha.

Falta-me, sobretudo, disciplina, mas sei que me aproximo, um dia após o outro, de algo novo, algo mais próximo de um ideal de beleza que ainda não sei explicar numa linguagem corriqueira, e nem me preocupo se um dia saberei explicar, pois o meu objetivo é confundir a cabeça, deixa-la desnorteada, ao invés de te vender a ideia de que sei de alguma coisa nessa terra louca que não para de rodar, rodar e rodar…

 

 

 

Daniel Viana de Sousa

© Todos os direitos reservados

segunda-feira, 27 de novembro de 2023

Em nome da paz

  

Há décadas que a Faixa de Gaza é um horror a olhos vistos, uma aberração fabricada pelo que há de pior na engenhosidade diabólica do Homem. Ainda assim, o suplício dos palestinos adquiriu, nas últimas semanas, proporções catastróficas; algo que se aproxima, cada vez mais, de um extermínio em massa, isto é, um genocídio étnico com feições macabras, próprio de um retrato, genuinamente, dantesco da nossa bestialidade. Não se compadecer por tamanho sofrimento humano, é um gesto de desumanidade indesculpável e é um fracasso irredimível da nossa época.

Ver bebês, crianças, idosos, gestantes, médicos, jornalistas etc., serem esquartejados, explodidos, soterrados e traumatizados, sem a mínima chance de se defenderem ou de escaparem por quaisquer rotas de fuga, fere minha sedenta esperança por uma redenção da nossa espécie humana. Ainda podemos sonhar em ser algo superior às piores feras? Quem pode nos assegurar dessa pretensa superioridade frente aos outros animais? Tamanha virulência, cólera cegamente incontida, só pode ser vista em nossa mente insensata e convulsiva.

Na realidade, os adjetivos nunca me pareceram tão impotentes em conceber, suficientemente, o retrato que vemos na Faixa de Gaza, bem como o ataque dos fundamentalistas no dia sete de Outubro. Ambos são aviltantes à dignidade da vida, independentemente da religião, nacionalidade, classe social ou etnia dos assassinados. Dizer que o Hamas estaria no direito de responder à violência de Israel por quaisquer meios, incluindo o fuzilamento de famílias e a chacina de jovens numa inocente festa, é a defesa de um canalha despudorado.

Nesse cenário de aterrador morticínio, resta-nos condenar e refletir sobre os escombros de mais uma tragédia feita de lágrimas amargas, sangue inocente e dor irreparável. O conflito entre Israel e Hamas é parte da discórdia histórica de parte dos judeus — e Ocidentais — com os povos árabes, numa tentativa deliberada de se apossar e colonizar aquela que é tida, por Telavive, como território pertencente ao povo judeu; essa contenda não pode ser explicada com bravatas e reducionismos ideológicos.

Em nome de uma vendeta contra o Hamas, cuja legitimidade, nas primeiras semanas de Outubro, poderia soar como necessária e razoável, o governo capitaneado por Benjamin Netanyahu tem deixado de lado qualquer resquício de pudor. A assimetria nesse conflito é tão colossal, que o apoio do chamado Sul Global aos palestinos acaba, em certos casos, fazendo vista grossa à violência sanguinária do Hamas, o que é, sem dúvidas, um erro terrível, pois, com os ataques de sete de Outubro, esse grupo assumiu para si, definitivamente, a faceta de agrupamento terrorista.

A bárbara matança cometida pelo Hamas, no famigerado sete de Outubro, é um clássico exemplo de casus belli, agressão que justificaria uma reposta armada por parte do lado agredido. Porém, Telavive se acostumou a violar quaisquer linhas vermelhas da civilidade e do bom senso, como no caso recente de uso de fósforo branco em ataques ao Líbano, arma química proibida por tratados e convenções das Organizações das Nações Unidas (ONU). Há tempos que chegamos à conclusão de que mesmo o enfrentamento bélico deve ser regulado por normas, a fim de que não se repita as selvagerias das guerras mundiais, nas quais as vítimas civis somaram-se aos milhões de soldados mortos por todo globo. Assim sendo, qual o sentido de se bombardear hospitais? Qual o ganho militar em atacar civis em fuga para o Egito?

Aqui, vale um breve questionamento: se a acusação contra Bashar Al-Assad, em 2013, pelo suposto uso de armas químicas contra sua população, motivou a Casa Branca a ameaçar uma intervenção armada contra a Síria, por que Joe Biden mantém seu apoio irrestrito a Netanyahu, responsável por crimes de guerra semelhantes aos de Al-Assad? Tais eventos trazem à tona a conhecida hipocrisia da Casa Branca, independente de qual partido triunfe nos pleitos eleitorais.

Ora, conceber as ações de Israel como parte de uma “guerra” interestatal, ou seja, colocando-a em pé de igualdade com os conflitos vistos no século passado, é um completo absurdo. Simplesmente, não há como igualá-los. Pois é preciso recordar que a Palestina não tem sequer uma Força Aérea ou Marinha, bem como veículos blindados, segurança alimentar ou sofisticação tecnológica para fazer frente a Israel, nação com o desenvolvimento técnico-cientifico mais portentoso de todo Oriente Médio. Aliás, creio que, se os palestinos detivessem uma força militar equiparável ao Irã ou à Arábia Saudita, já teriam sido extirpados completamente, como forma de “ataque preventivo” por parte dos sionistas. Em suma, não há a menor possibilidade de que os palestinos ofereçam uma ameaça à existência do seu vizinho, ao passo que Telavive tem, à sua disposição, um arsenal nuclear capaz de exterminar toda a região em poucos minutos, levando o planeta a um inverno nuclear de dimensões catastróficas.

A única esperança do Hamas é que seus vizinhos, tanto os sunitas quanto os xiitas, ergam-se em apoio à sua causa. Interessa-lhe tão somente incendiar a região, para que, dessa forma, consiga arrancar algum acordo com Telavive e, assim, conservar o apoio da maioria dos palestinos, reféns de um grupo fanático, extremista e indefensável. Porém, até agora, as potências regionais se restringiram às costumeiras ameaças retóricas, o que não deixa de ser um alívio por parte daqueles que temem testemunhar o princípio de uma Terceira Guerra Mundial. Nesse cenário, certamente, todos sairiam aniquilados, não havendo mais nada pelo qual se lutar, exceto as cinzas de um mundo arrasado.

Duvido que qualquer um dos lados busque aniquilar o mundo consigo. No entanto, sabemos que o ser humano é capaz de forjar, com risível astúcia, a armadilha na qual ele mesmo terminará enjaulado. Foi assim com a “guerra ao terror”, iniciada por George Bush (2001-2009) e responsável por tornar a nossa época ainda mais instável, incerta e perigosa, além de dar origem aos failed states, fenômeno que, assustadoramente, tornou-se o novo normal do noticiário internacional. De lá pra cá, os Estados Unidos têm afundado suas tropas e investimentos num lamaçal onde quer que pise os pés: invasão do Afeganistão, em 2001, do Iraque, em 2003, e a intervenção armada na Líbia, em 2011. O mesmo pode estar ocorrendo, em Gaza, com os israelenses.

Assim como no confronto russo-ucraniano, iniciado em Fevereiro de 2014, as implicações desses fatos se estenderão por anos nas vidas dos envolvidos, e não me resta dúvidas de que muito sangue continuará a ser derramado em solo sagrado. Tal guerra se somará àquelas que, em geral, mal ouvimos falar, como tem ocorrido na Líbia, na Somália, no Sudão do Sul, no Iêmen, na Síria e mesmo na Ucrânia, deixada, momentaneamente, de lado pela mídia ocidental, sempre ávida por notícias que capturem alguma parcela da audiência.

 

No entanto, como abordei anteriormente, a Questão Palestina posiciona-se à parte dos conflitos que nos habituamos a chamar de “guerra”, ainda que a imprensa insista em recorrer a essa palavra traiçoeira; somam-se na matança da Faixa de Gaza elementos visíveis de colonialismo, imperialismo, fundamentalismo religioso e racismo, de modo que ela se apresenta como um cenário de extrema complexidade social, militar, histórica e cultural. Trata-se — para recorrer à mais surrada de todas as analogias bíblicas —, de uma luta de Davi contra Golias.

Não obstante seus eventuais erros históricos, a demonização ideológica de Israel deve ser evitada a todo custo, caso não se deseje tropeçar na vala comum do antissemitismo. Reduzir o estado israelense a um mero porta-aviões dos EUA, sem reconhecer a importância de uma reparação do Ocidente pelos crimes do Holocausto, insulta a dignidade e história do povo judeu. Entretanto, o mesmo vale para os palestinos, que, durante séculos, habitaram as mesmas terras dos seus vizinhos. Por que negar a estes povos sua justa emancipação? Por que os sauditas, iranianos e turcos podem gozar de soberania, liberdade e segurança, ao passo que os jovens palestinos já nascem soterrados por bombas?

Portanto, defender o aniquilamento do Estado de Israel, isto é, dos judeus que escolheram voltar à sua terra natal, ou dos palestinos que lá viviam, é uma sandice extremista, bem como uma afronta ao princípio da autodeterminação dos povos. Jamais se deve debater com quem propõe, como premissa básica de seu discurso, o extermínio da sua contraparte. Propalar o fascismo nas suas mais variadas facetas e linguagens, é crime; sua própria essência é uma afronta à dignidade da diversidade humana. Assim, quem sustenta tais “propostas” deve ser relegado ao ostracismo da cadeia.

Ainda que minhas palavras se percam numa enxurrada de outros escritos e análises sobre a questão Israel-Palestina, ou seja, sem nada de novo ou revelador, exceto meu assombro com esse capítulo da História contemporânea, oro a Deus pelo fim de toda guerra e discórdia entre as nações — algo que não me parece possível dentro dos limites do atual sistema de dominação econômica.

No melhor dos mundos, a existência de Estados que nos dividissem em tribos sectárias, insufladas por um nacionalismo démodé, seria, finalmente, superada, dando espaço a um tempo de autêntica fraternidade universal. Não tenho dúvidas de que este seria um lugar melhor de se viver.

Sejam as preces islâmicas, judaicas ou cristãs, que o Todo-poderoso nos ouça, concedendo-nos essa tão desmerecida salvação.

Escrevo esse texto, acima de tudo, em nome da paz.

 

Daniel Viana de Sousa

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terça-feira, 21 de novembro de 2023

Cor de jade

  

Hoje, o mar estava cor de jade; acobertado por um manto nebuloso e exprimindo aquele tom esmeraldino proveniente das rochas tiradas da profundeza, sua essência era por demais remota e sua calmaria perturbava-se com os ventos vindos do Sul.

As nuvens lhe davam, ao mesmo tempo, uma expressão de agouro e contrição, sobriedade e encantamento. Mas, ainda assim, faziam-no mais apaixonante que a propalada beleza humana, espalhada por murais e bajulada em infindáveis textos românticos. Aquilo que eu pude ver não precisava de arranjos, enfeites ou cosméticos, porque era, simplesmente, belo. E foi isso que me levou ao seu encontro.

Porém, aos demais, nada escapava à sua indiferença, um desinteresse tão vazio quanto mórbido — eles queriam sol, mas não podiam vê-lo; queriam águas mornas, mas elas estavam frias demais; queriam corpos nus, mas se viram diante do próprio reflexo. Para eles, aquela não passava de mais uma praia e de mais um céu, outro ponto turístico em sua checklist tediosamente fabricada pelo senso comum. No dia seguinte, eles iriam para outro lugar qualquer, tirando suas fotos, fazendo suas poses, fabricando amores…

Quando o assunto é viajar, a maioria se contenta com o turismo de manada, quando, na realidade, nós deveríamos nos atrever a ficar face a face com o mais completo desconhecido, com aquilo que menos se espera topar na rua. A possibilidade de se surpreender com algo que lhes fuja do controle, causa tremores febris nessa gente; não é por acaso que suas vidas sejam tão deprimentes e suas mentalidades simplórias; eles se contentam com quase nada do que o mundo lhes tem a oferecer, conservando-se miseráveis seguidores da turba que lhes afaga o coração. Não duvido, portanto, que eles passem pela existência sem terem, realmente, vivido.

Quanto ao prazer do reencontro familiar com o mar cor de jade, que é tão exuberante quanto qualquer outra beleza que surja por aí, dedico esta crônica às vésperas do suntuoso verão brasileiro. Ao contrário de outros lugares, o calor paraibano ainda guarda uma suavidade, quase que primaveril, de modo que se trata de um privilégio estar aqui, sentado na poltrona do quarto, tendo a praia do Bessa ao alcance dos meus olhos. Poderia largar tudo que me prende a essa cadeira, a essa busca por mais um ganha-pão, e ir ao seu encontro na tênue linha do horizonte, onde céu e mar, enfim, se beijam.

Às vezes, sou tomado pela vontade de gritar às ondas que se sucedem numa inconcebível eternidade:

— Por favor, nunca me privem do teu som, do teu cheiro e dessa imensidão que nunca se exaure! Pois, seja de manhã ou ao final da tarde, no verão abrasivo ou no inverno acinzentado, teu encanto sobre mim se provará imediato! Prefiro teu contorno, tua silhueta ondulada, tua reentrância singular, a qualquer praia televisiva, a qualquer balneário novelesco. Contigo por perto, a vida acaba sendo menos dura e amarga, menos tenebrosa e solitária.

É assim que caminho rumo às águas trazidas pelo místico oriente, de onde nossos ritos e magos provieram e de onde o sol emerge triunfante. Gozo ao mergulhar nas suas ondas e sorvo por entre as mãos seu sumo verdejante; abraço suas águas como quem, finalmente, revê um sincero amigo e me atrevo a ir até onde posso alcança-lo, sem medo de me afogar em sua generosidade.

Quem pode tirá-lo de mim agora?

 

 

 

Daniel Viana de Sousa

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segunda-feira, 31 de julho de 2023

O Brasil que vejo hoje (I)

  

Como a maioria dos que vivem neste lado do Atlântico chamado Brasil, meu mais sincero desejo é ver a liberdade, a igualdade e a prosperidade se realizarem, permanecendo acesas e vivas por longos anos à nossa frente, até que o último dos nossos irmãos liberte-se do cativeiro que lhes foi imposto desde a origem da Modernidade, quando os conquistadores ibéricos deram início a este empreendimento colossal que chamamos de “terra abençoada por Deus”.

Aqui, tratarei de um patíbulo sinistro, embora fascinante: o Brasil.

Antes de mais nada, peço licença aos peritos e acadêmicos, pois, de fato, não sou alguém que possa qualificar-se como especialista nos temas que me arriscarei a delinear neste ensaio. Faço-o, pois, com a travessura de um intrometido no ramo das ciências humanas e sociais, que sempre me cativaram, particularmente, na leitura das obras de Gilberto Freyre, Sergio Buarque de Holanda, Darcy Ribeiro, Caio Prado Júnior etc.

Os escritos destes velhos professores se apossaram do meu olhar ao longo de muitas noites insones, enquanto me balançava na rede da varanda ou esparramado no sofá da sala e, a despeito de certos nomes serem, severamente, criticados por autores contemporâneos, alguns de seus trabalhos me deram elementos para compreender a realidade presente, tanto na cidade quanto no campo, tanto nas capitais quanto nos rincões mais obscuros e afastados do nosso país.

Tamanha ânsia por explicações iniciou-se com as mudanças que vieram à tona em Junho de 2013. Eu estive presente nas manifestações que passaram a ser conhecidas como Jornadas de Junho, e, após mais de dez anos, posso afirmar que a minha vida nunca mais foi a mesma. Ver com os próprios olhos e contribuir para que história do seu país mude, é algo que poucos podem reivindicar para si, ainda que, passados alguns anos, nem tudo nos tenha sido favorável. Acho que, daqui a muitos anos, quando já estiver perdendo as memórias da juventude, o dia 20 de Junho de 2013 sobreviverá nos recantos mais profundos do meu ser.

Desde aquela época que me sinto tomado pela urgência de entender esse gigante de pés de barro e o continente à sua volta, a América Latina, bem como as causas do surgimento de uma nova ordem mundial, olhando desde o fim da União Soviética até a Guerra Russo-ucraniana, passando pela emergência da China e o aprofundamento da crise dos Estados Unidos. Que novo mundo é esse que emerge assolado por conflitos e crises de toda espécie? Creio que a resposta para essa pergunta ainda me ocupará o resto da vida, sem qualquer garantia de soluções fáceis ou verdades autoproclamadas.

Admito estar embevecido por um indiscreto atrevimento, que talvez se deixe notar na larguíssima abrangência histórica deste texto, nas declamações pétreas, nas conclusões acusatórias, mas, ao mesmo tempo, esboço estas ideias, provenientes de uma aguerrida determinação e um fervor quase que missionário, com a convicção de quem há muito aprendeu a interpretar as oscilações de um país caótico como o nosso. Portanto, cada linha deve refletir-me por inteiro. Sei bem o peso das palavras, porque aprendi a esgrimi-las com a precisão e o destemor de um espadachim florentino, cujo florete de aço é suficientemente hábil em retalhar até as armaduras mais sólidas.

Escrevo o que penso do Brasil hoje, de tal maneira que, inevitavelmente, haverá rabiscos que não atenuarão minha ojeriza quanto às amarras do presente. Posso incomodar, de maneira profunda e visceral, quem busca florear o retrato deste país, tão querido e aviltado, terra do samba e do Carnaval, o recanto mais caloroso e receptivo que se encontrará abaixo da linha do equador. Por isto, caso você não queira ser tomado por uma acidez desesperançada, afaste-se destas páginas e não volte até que a consciência clame por uma dose de lúcido dissabor. Não vou prometer-lhe a mais ínfima nesga de otimismo, de amanhecer ilusório. Aqui, só se encontrará a sinceridade de um homem simples, que se atreveu a ver a nossa terra pelo prisma da mais colérica revolta.

domingo, 28 de maio de 2023

Se permita

  

Dança, canta e vibra

defronte ao sol da tarde,

encontre o que te invade:

novos ares de Coimbra.

 

Abra teus braços à dura sina

de perder o espírito alhures,

frio lar em que nada moldures,

e que fenece sem que se sinta.

 

Se permita, porém, cantar,

Quando o velho céu se abrir,

Quando o véu, enfim, cair,

Quando Téo por ti se apaixonar.

 

Daniel Viana de Sousa

© Todos os direitos reservados

domingo, 30 de abril de 2023

Trinta anos

 

         Sempre achei estranho que alguém se constrangesse em dizer a sua idade. O tempo vivido não deveria nos deixar cabisbaixos, nem arrependidos. Pelo contrário, deveríamos enaltecer a sabedoria conquistada a ferro e fogo, no suor de muitos passados, no sangue vertido em nome de sonhos e desejos; deveríamos reverenciar a vastidão de uma experiência acumulada ao longo de muitas décadas, pois ela é intransferível. Pode-se falar e ensinar, mas a vivência é única. Tal como nos ensina o senso-comum, só sabe quem, de fato, a viveu.

Talvez isso ocorra devido à consagração descompensada do corpo juvenil — com sua potência bela, mas explosiva —, tanto por parte da publicidade e da industrial cultural, quanto do mais rasteiro senso-comum. Não é por acaso que muitos tenham se convencido de que a velhice é um castigo horrendo, uma incorrigível falha biológica, contra a qual devemos nos municiar com cremes, terapias, remédios e, se for preciso, recorrer a cirurgias plásticas que nos convençam de que não somos aquilo que o espelho nos diz que é: uma juventude à base de silicone, construída por cima de uma gritante insegurança.

Se, na Idade Média, os cristãos tentavam alcançar a santidade por meio da abnegação e controle dos desejos, hoje, praticamente todos procuram o gozo individual e ininterrupto, a felicidade numa materialidade que está fora do nosso controle e que nunca nos saciará. Hoje, adoecemos pelo excesso de expectativas, de alimento, de barulho, de luzes, de trabalho, de compromissos, de conteúdo etc. Hoje, pode-se recorrer a uma crendice aqui e acolá, mas, para a maioria, a busca por Deus não é uma prioridade; atualmente, Ele se acha “engavetado”, tal qual um remédio para uma doença que pensamos ter deixado para trás, mas que será procurado novamente quando as nossas circunstâncias se agravarem. Trata-se de um comportamento repetido à exaustão; uma espécie de clichê espiritual da experiência humana na pós-modernidade fluída e fugaz.

É compreensível que a velhice seja, em muitos aspectos, sinônimo de impotência, demência e, principalmente, vulnerabilidade. Afinal, à medida que a vida dos seres humanos se estende, notamos o efeito do tempo em nossos corpos de uma forma nunca vista antes: os ossos se enfraquecem, as articulações doem, a visão se compromete, a audição se deteriora, a pele torna-se flácida, a mente se perde, a sociedade descarta etc. Portanto, temer a velhice não requer justificativas; ela é um processo de decrepitude física e mental sem volta e sem remédio, cujo final é, certamente, perturbador para aqueles que não prepararem suas almas para a última viagem.

Esse cenário se agrava quando levamos em conta o culto à juventude em nossa sociedade. Aliás, é fácil de se entender a ânsia em venerar e, concomitantemente, seduzir a juventude: o jovem vai ao cinema com a namorada; vai à academia para se fortalecer; vai ao cursinho do pré-vestibular; tem pressa em comprar um carro novo e, acima de tudo, é mão de obra barata. O capitalismo precisa inflar, no jovem, sua insaciabilidade e sua carência por mais mercadorias e mais ambição, haja vista que uma “juventude acomodada” é sinônimo de vagabundagem e fracasso por aqueles que definiram o que é “sucesso” no mundo capitalista. Nesse mundo, um jovem que abre mão de ser um mero consumidor, desafia o sistema de dominação à nossa volta. Esse sistema não afundará se pararmos de consumir, mas, certamente, vai sentir um espinho rasgar seu calcanhar.

Qual o valor da velhice nessa sociedade que nos clama a consumir e trabalhar a todo vapor? Certamente, não é lá muita coisa. Quem se identifica com os valores do capitalismo, isto é, ser barbaramente individualista, produtivo e arrancar para si um lugar no pódio, jamais aceitará ser velho. Pouco a pouco, a velhice dificultará a sobrevivência desse mindset ultramoderno, fabricado e implantado em nossas cabeças à revelia dos nossos desejos, até que, finalmente, acabaremos algemados à cama, sozinhos num quartinho de hospital, sem chances de conquistar para si aquele tão ansiado troféu. Nesse mundo, a velhice, quando não nos permite consumir, é vista como fardo inconveniente e cansativo, um peso nas costas de quem precisa sustentar um idoso em casa. Logo, não nos deveria causar surpresa que, ao final da sua vida, muitos idosos estejam profundamente deprimidos e solitários.

Em abril, eu fiz trinta anos. Sinto a juventude se dissipar, embora o cansaço da velhice esteja distante do meu horizonte. Ainda me canso com a futilidade e a hipocrisia à minha volta, mas vejo em tal condição uma dádiva dos céus, um sistema imunológico espiritual. Não é possível agradar a todos, da mesma forma que não são todos que podem me agradar. Quem é sábio, procura escolher, com cuidado e temperança, seus amigos e inimigos; caso contrário, cedo ou tarde, perderá tudo que tem, de tal maneira que, para o meu futuro, espero trágicas decepções. Afinal, o ser humano ainda é o que sempre foi: um animal temeroso e manipulado, incoerente e traiçoeiro com seu mundo ao redor — até mesmo Cristo, a despeito de sua divindade e compaixão por nossa espécie, passou pela traição, abandono, humilhação e morte, suportando, para a nossa salvação, o sinistro peso da nossa cruz em seu ombro ferido e imaculado.

A velhice é parte da jornada que nos aguarda. Atravessar estoicamente os instantes finais com toda sua intensidade, sentindo a frieza dos minutos derradeiros e a dor tomar conta dos órgãos, como dedos que nos apertam pouco a pouco, é a nossa última missão. Aliás, é válido recordar que, fazer um textinho, é bem mais fácil do que experimentar a morte em sua completude. A eutanásia parece um caminho menos doloroso e, de fato, necessário em circunstâncias de imenso sofrimento psicofísico, de modo que não me atrevo a julgar aqueles que optam por essa via. Na realidade, eu penso que ninguém deveria se sentir obrigado a perpetuar um suplício em nome de qualquer preceito religioso. Certa vez, um padre jesuíta me disse: Deus só quer de nós o que podemos dar. Portanto, se a dor for insuportável e o paciente estiver lúcido o suficiente para exigir o fim dela, é justo que encerremos a sua agonia.

Sentir pavor diante do próprio fim, é algo naturalmente humano. Afinal, quem pode nos provar o destino reservado para as nossas almas? Haverá algo além daquele quartinho de hospital ou mergulharemos num abismo escuro e sem volta? Serei perdoado por tudo que fiz ou banido do Reino Celeste? Haverá espaço para mim ao lado do Pai? Um animal simplório é incapaz de gerar elucubrações com tamanha complexidade. Fomos nós, os seres humanos, que criamos teorias, fábulas e divagações sobre algo que estaria além dessa vida trágica e mundana, repetindo histórias que se cruzam, a despeito das distâncias e particularidades que separam todas as culturas humanas. Seríamos capazes de suportar a inexistência completa de Deus e de tudo aquilo que cimenta a religiosidade humana? Suspeito que muitos sairiam à procura de novas histórias, para, assim, moldar novos deuses, novos profetas e novos mandamentos. Por outro lado, outros se permitiriam viver as paixões proibidas pelos dogmas mofados, canhestros e conservadores, antes capazes de nos assombrar com a condenação ao fogo infernal. Talvez, o caos se instalasse e as autoridades, subitamente, perdessem o poder de coerção sobre as massas insubmissas, responsáveis por implantar, enfim, um regime anárquico, no qual cada um viveria a partir dos próprios anseios e ideais, nada seria imposto a ninguém e todos agiriam de acordo com a consciência individual. Não foi à toa que as grandes religiões tenham, em algum momento de seu trajeto histórico, se aliado às forças dominantes e se apossado do destino das almas. Aliás, isso explica, em parte, o quão atípico tem sido a Modernidade até aqui, haja vista que foi ela quem separou a Igreja do Estado, permitindo que cada um fizesse seu próprio caminho sem se preocupar em ser queimado em praça pública.

Não faço a menor ideia de como será a minha velhice — nem sei se poderei ter uma vida longa. Talvez, eu releia este texto daqui a sessenta anos e dê uma boa gargalhada; afinal, os jovens sempre foram pretensiosos, especialmente, quando falam daquilo que ainda não conhecem. O que eu posso assegurar é que, ao longo dessas três décadas, eu me transformei inúmeras vezes. Não me refiro apenas ao processo biológico e psíquico de passar da infância à adolescência e desta para a juventude. Nos últimos dez anos, por exemplo, eu experimentei mudanças em convicções de enorme relevância pessoal, que não se devem tentar discutir publicamente. Sou um ardoroso defensor do respeito à privacidade de qualquer indivíduo.

Nos últimos anos, eu decidi que farei tudo que estiver ao meu alcance para chegar no século XXII com boa saúde e lucidez — em 2100, terei completado cento e sete anos de vida. Será difícil, mas creio que valerá a pena, porque viver também é belo, e cada estação que nos é dada, traz algo de novo, ainda que a pressa nos proíba de parar, silenciar-se e contemplar. O mundo mudará de tal maneira, que muito do que se vê hoje, não se verá amanhã; e muito do que não se sonha agora, surgirá diante de nós, inquirindo nosso espírito, tal como a esfinge de Sófocles. Logo, a maioria será devorada, ao passo que outros acharão, de alguma forma, uma saída para o enigma da existência coletiva e individual, universal e pessoal, carnal e espiritual.

Se formos afortunados, estaremos aptos para erguer, verdadeiramente, um mundo novo e uma vida nova, não apenas para nós, mas também para aqueles que não vieram ainda. Eu não tenho dúvidas de que, como toda batalha, muito sangue será vertido, mas cada lágrima será como chuva que rega o campo batido, trazendo a semente escondida no seio da terra. Agora, não a vemos, mas, se o lavrador for paciente, a vida surgirá diante dele numa generosa abundância. Lutemos sem descanso pelo mundo que virá.           

 

Daniel Viana de Sousa

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terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

O peso do luto passeia pelos bulevares

  

         Chegamos ao primeiro aniversário da invasão russa às terras ucranianas, e nada parece deter a selvageria devoradora das armas modernas e dos belicistas que as têm consigo; sangue é derramado e vidas são tomadas, dia após dia, sem que surja qualquer sinal de trégua entre os adversários. Não tenho dúvidas de que este será visto como um dos momentos mais emblemáticos da primeira metade do Século XXI, junto com o atentado às Torres Gêmeas, a quebra do Lehman Brothers e a Pandemia do Novo Coronavírus. Milhões de vidas foram atingidas pela invasão russa, alimentando medo e ódio nos corações de povos que, antes, se consideravam irmãos.

Há décadas que os europeus não testemunhavam uma guerra de vastas proporções em seu entorno geoeconômico e geoestratégico. Pensava-se que seu belicismo se encerrara em 1945, e que, após o desaparecimento da temida “ameaça comunista”, a Europa repousaria numa fraternidade ad aeternum. Porém, a disputa entre a ordem estabelecida pelo Ocidente e seu maior contestador, Vladimir Putin, veio à tona em dimensões assombrosas. Tanques, drones, misseis e tropas russas cruzam as planícies da Europa Oriental, tendo como alvo as localidades ucranianas a leste do Dnieper. A resiliência dos ucranianos surpreende a todos, mas não durará para sempre. Fala-se que o número de mortos pode ter ultrapassado os cem mil. E, segundo o Kremlin, nenhuma manobra militar está descartada, o que, logicamente, inclui o uso de armas de destruição em massa contra as forças de Kiev e sua população civil.

Ao contrário do que a imprensa e o senso comum nos repetem à exaustão, a eclosão de uma guerra não se deve apenas ao “fracasso do diálogo” ou ao “desrespeito à coexistência pacífica” entre forças rivais, mas a um sinal claro da fragilidade dos avanços feitos pela Humanidade em séculos passados, como, por exemplo, a simples noção de um “Direito Internacional” a ser respeitado pelo “concerto das nações”. Na realidade, as regras postas no papel são incapazes de deter a beligerância das grandes potências, sejam elas do Ocidente ou de qualquer outro lugar. As regras feitas à mão têm força, quando os reais detentores do poder concordam que assim o seja. Alteradas as circunstâncias, novas regras serão concebidas e impostas pelos vencedores aos vencidos.

No tabuleiro dos interesses imperiais, os possuidores de matérias-primas, abundante mão de obra e posições estratégicas, convivem com a faca no pescoço. Vulneráveis à voracidade dos tiranos, tais nações são obrigadas a se curvar para títeres, arrivistas, elites servis e ditaduras sanguinárias, exatamente como ocorrera conosco à época do Golpe de 1964. Os imperialistas explorarão justificativas “civilizatórias”, perfumadas com o bom-mocismo hollywoodiano, forte o suficiente para cativar a opinião pública do hemisfério ocidental. De fato, no que diz respeito a uma horizontalidade do acesso à informação, os avanços da internet não impediram que os EUA reproduzissem, mais uma vez, a verdade imposta ao resto do mundo. Tendo em vista sua astúcia imperial, os estadunidenses elegem os mocinhos e vilões, os agressores e agredidos, numa eficiência ainda inalcançável para seus opositores. Lutar contra essa rede de ilusões, é uma tarefa incontornável para os que buscam ter sua própria soberania e libertação.

Para os ocidentais, há algo de “diferente” nesta guerra. Antes, os afligidos pelas bombas e mísseis eram afegãos, somalis, iraquianos, sírios, líbios e outros povos distantes, segregados dos centros capitalistas. Antes, a decrepitude dos cadáveres e os urros de terror estavam afastados das belíssimas avenidas parisienses e das pontes sobre o Tâmisa. Antes, a guerra parecia uma idiossincrasia do Terceiro-Mundo, um traço exclusivo das subculturas periféricas, tipicamente semiletradas e incivilizadas.

Agora, os europeus veem os cadáveres de perto e sentem o cheiro da morte chegar às suas casas; o inenarrável peso do luto passeia pelos bulevares; os jatos e tanques que despejavam bombas nas “terras obscuras e sub-humanas”, agora caem sobre seus pontos turísticos, suas praças, hotéis, igrejas, shoppings, praias e mansões de luxo. Agora, os mortos e desterrados têm pele alva e olhos claros, parecem-se com seus filhos e irmãos; eles batem à porta dos vizinhos afortunados por vastas riquezas à procura de emprego e abrigo, sendo que a economia estagnou-se, a inflação decolou e não há emprego para todos.

          A guerra entre russos e ucranianos reafirma uma dantesca tragédia: nada nos impede de retroceder ao primitivismo mais implacável e inumano. Aquilo que exaltamos como fruto de nosso progresso filosófico e material, tão comumente consagrado à eternidade, pode implodir numa semana agitada, até mesmo no espaço de algumas poucas horas. Na verdade, a globalização nos pôs enfileirados sobre uma corda esticada ao máximo: a despeito dos terríveis vendavais do século passado, temos conseguido nos equilibrar, porém, se nos descuidarmos para aquilo que nos mantêm unidos, isto é, a busca sincera por um mundo melhor para todos, cairemos imediatamente no mesmo abismo, e este será o fim para toda a Humanidade.

Nos tempos atuais, tal ameaça nunca esteve tão próxima de se realizar quanto nos últimos doze meses. Cada vez mais, a linha tênue se estica, ao mesmo tempo que os adversários afirmam não querer ou planejar uma Guerra Mundial. O fato é que suas ações os contradizem. A todo momento, os rivais financiam o esforço de guerra, despejam bombas, matam civis, refazem seus estratagemas e recrutam mercenários.

Para que estejamos lúcidos em meio à tempestade, falta-nos uma peça no quebra-cabeças do cenário internacional. Trata-se da perspectiva russa quanto à guerra, que é, em parte, um capítulo da criação de um mundo multipolar. Com efeito, a maioria do nosso povo desconhece a Rússia; possivelmente não saibam nem onde localiza-la no mapa; e, ao serem apresentados pelas vozes da imprensa brasílica, recebem uma caricatura desenhada pelo setor propagandístico dos EUA. Não é por acaso que a maior parte da imprensa se esforce em deturpar as motivações russas: estamos habituados a papaguear tudo que nos chega do norte; poucos ainda guardam algum senso crítico.

Essa manipulação em larga escala é parte da grande guerra em curso, do esforço estadunidense em sustentar o status quo, anunciando a reedição de mais um século americano. No entanto, essa disputa está longe de um desfecho favorável a Washington, indicando, caso todos optem por não se matar, uma transição em câmera lenta para a multipolaridade. Por outro lado, acredito que, enquanto houver países com armas de destruição em massa, a verdadeira paz jamais irá se concretizar. O temor de um rompante, por parte de um país vizinho ameaçador, bem como traumas de guerras passadas, obriga as nações a buscar meios de dissuasão cada vez mais extremos. Há que se chegar a um consenso global sobre essas terríveis armas.

Isso jamais ocorrerá sem a anuência de Moscou, o que nos traz de volta ao conflito na Ucrânia.

Em primeiro lugar, os russos jamais aceitarão um desfecho que comprometa, a médio e longo prazo, seus objetivos estratégicos, o que inclui a segurança de suas bordas ocidentais, haja vista que a região sofreu três invasões em dois séculos, cujo objetivo foi aniquilar e, no caso dos nazistas, escravizar os eslavos. Para a glória do povo russo e de seus aliados, todos foram vencidos e humilhados. Uma instabilidade nessa região põe em grave risco centros históricos, como Moscou e São Petersburgo, berços não só da cultura russa, mas também de todos os povos de língua eslava. Portanto, ter segurança, influência e controle sobre as terras a oeste do Kremlin, será, com toda certeza, uma demanda de Putin aos seus adversários na mesa de negociações.

É óbvio que, para angariar apoio interno, o Kremlin esforçou-se em deslegitimar a soberania, a liberdade e a paz de seus vizinhos. Nos dias de hoje, o invasor precisa maquiar suas intenções, apresentando justificativas minimamente louváveis, lógicas e coerentes, sejam elas verídicas ou não. Para tanto, Putin acusou a expansão da OTAN, as sucessivas agressões aos separatistas próximos à fronteira russa, a proliferação de grupos neonazistas etc. Nenhuma dessas alegações é falsa, mas nenhuma delas sustenta a necessidade de uma invasão armada e o prolongamento de uma guerra sem-fim.

Quem detém legitimidade para negar a adesão de Kiev à OTAN e à União Europeia, senão o povo ucraniano em si? É compreensível que, nesta fase histórica, os ucranianos queiram aproximar-se da União Europeia. Afinal, orbitar em torno da próspera Alemanha, em tese, parece ser mais proveitoso que em torno da nebulosa Moscou. Os tempos gloriosos do czarismo e do bolchevismo se foram; agora, eles não passam de peças de museu. Os russos jamais deveriam, a partir de seus próprios interesses, exercer uma ingerência criminosa em nações vulneráveis e periféricas. Quem condena o intervencionismo estadunidense, por sua arbitrária e bárbara sede de poder, deveria somar-se à condenação da invasão às terras ucranianas. Agir de maneira contrária, é um sinal de contradição e fanatismo.

 Tal como já disse em análises passadas, não sou especialista em Relações Internacionais. Apenas traço, a partir do meu escasso alcance inquisitivo, algumas ideias e impressões, cacos de vidro que tento reunir numa interpretação compreensível e consistente. Como a maioria das pessoas, sinto-me esmagado pela torrente de informação — e desinformação — que circula, desvairadamente, nas vielas sinuosas da internet. Abraçar alguma certeza, tem se tornado mais contraproducente a cada ano que passa. Certamente, o silêncio tornou-se a opção de quem não quer colocar o próprio pescoço na guilhotina.

O conflito na Ucrânia é, em parte, um acirramento da luta geopolítica entre o Ocidente e a aliança euroasiática, vista como ameaça intolerável à hegemonia de Washington, sejam eles republicanos ou democratas, negros ou brancos, homens ou mulheres. Tal aliança deve, na interpretação dos falcões, ser extirpada a qualquer custo, sempre em nome da liberdade, da democracia e de sua segurança nacional. Pois só uma união entre chineses e russos pode colocar em xeque o “Novo Século Americano”, que se traduz em mais pobreza, destruição e morte para os países periféricos e emergentes. Assim sendo, o embate geopolítico do nosso século foi delimitado na década passada: de um lado, encontra-se o sistema de dominação neoliberal, encabeçado pelos EUA; enquanto que, do outro lado, emerge a proposta de integração e prosperidade concebida por Xi Jinping e o Partido Comunista Chinês, as Novas Rotas da Seda.

Na realidade, a sombra do dragão chinês já encobriu vastos continentes nos últimos anos. Hoje, o principal parceiro econômico de quase todo o continente africano e latino-americano é a China. Por todo lado, obras de infraestrutura financiadas com capital chinês, povoam a paisagem de nações exploradas e empobrecidas, deixando a marca da influência chinesa nestas terras, antes feridas pelo colonialismo europeu. Ao passo que, na Ásia, mesmo seu velho rival, o Japão, não pode se contrapor à influência crescente do dragão nas nações vizinhas.

Ano após ano, prenuncia-se que a experiência chinesa sofrerá uma crise terminal, que abrirá a possibilidade de uma derrota irreversível do Partido Comunista frente à sociedade chinesa, cuja sede pela democracia liberal estaria escondida dos holofotes da mídia ocidental. Os arautos dessa ruína profética parecem antecipar que a China Comunista perecerá como um tigre de papel, tal qual ocorrera com sua predecessora, a União Soviética. Certamente, o futuro nos trará surpresas, mas o que se comprovou até aqui, geração após geração, foi a resiliência obstinada não só dos comunistas chineses, mas também dos cubanos, vietnamitas e norte-coreanos. Por enquanto, mesmo com a desaceleração de sua economia, as expectativas da liderança do Partido Comunista têm sido realizadas.

A perspectiva de uma irmandade com os chineses, possibilitou a Putin implodir seus laços com o Ocidente sem cair numa depressão econômica de vastas proporções. Pouco a pouco, a Rússia tem acoplado toda sua sociedade à civilização chinesa, seja no aspecto econômico, seja no aspecto militar e político. Foi uma jogada de extremo risco, mas que, até agora, tem lhe permitido esgrimir contra a Ucrânia e fazer ameaças à OTAN. Putin e Xi Jinping, os desafiantes da velha ordem, confiam entre si, ou seja, a maior potência militar eurasiana e principal fornecedora de gás natural do mundo, aliou-se à locomotiva do capitalismo contemporâneo. União ideal para ambos; terror gélido para seus adversários.

Suspeito que a década atual (2023-2033) será de enorme importância quanto aos processos apontados ao longo deste ensaio. Aproximamo-nos de uma virada decisiva nessa encarniçada disputa? A resposta para essa questão é: não há como predizer qual lado emergirá na condição de vencedor. É simplesmente impossível prever quando ou como tudo isso se encerrará. Nenhum dos adversários está imune de ser golpeado fatalmente; ambos trazem problemas internos que tendem a se agravar e rivais por todos os lados, de modo que seus planos podem naufragar a qualquer momento. Por fim, enquanto existirem armas de destruição em massa, não estará descartada a possibilidade de nos destruirmos pelas nossas próprias mãos; seu desmantelamento e proibição devem ser tarefas imediatas para quem luta pela autodeterminação dos povos, pela prosperidade das nações e, em última instância, pela paz mundial.

           

Daniel Viana de Sousa

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domingo, 8 de janeiro de 2023

Brasília em disputa

  

Os fatos se sucedem rapidamente. Novas informações chegam a todo instante para quem se dispõe a lê-las. De fato, quem antecipava, ou mesmo sonhava, que o ano de 2023 seria um passeio no parque para o novo governo, acaba de colidir com a duríssima realidade da grande crise brasileira, tal qual um motorista cego bate de frente com um incontornável muro de aço e concreto.

A fúria extremista, gestada há anos pelo regime bolsonarista, atinge o coração da democracia, pondo em xeque toda a institucionalidade brasileira. Os prédios públicos que melhor simbolizam o Estado Democrático de Direito foram invadidos, saqueados e aviltados por uma turba de criminosos enlouquecidos. Aquilo que fora ensaiado muitas vezes, com a coordenação do próprio Jair Bolsonaro, concretizou-se de maneira sórdida e bárbara. Não seria exagero afirmar que a crise política iniciada, há quase dez anos, com os protestos de Junho de 2013, alcançou hoje um ponto de tensão nunca antes visto. Hoje pode ter sido o pior dia da República desde o fim da Ditadura Militar.

Tanto os militantes comprometidos com a luta anticapitalista e antifascista, quanto os cidadãos defensores dos valores democráticos, devem se manifestar publicamente. Calar-se, significa abrir brechas para a extrema-direita. A democracia liberal tem contradições e limitações gritantes, porém o surgimento de um regime fascista seria um retrocesso civilizacional de proporções nunca antes vista em nossa amada terra. Nesse ponto da história humana, em que uma crise climática e humanitária bate à nossa porta, se mergulharmos no extremismo fascista, haveremos perfurado o último prego do próprio caixão.

O que vier a partir de agora, pode determinar o restante do Governo Lula. Se o presidente e seu entorno político demonstrarem fraqueza ou confusão, correrão o risco de sofrer ataques cada mais violentos, abrindo brechas para um eventual Golpe de Estado. Por enquanto, tal possibilidade ainda é muito distante, porém cogitá-la não está fora da realidade. Uma força política que falha em manter o controle e a ordem social, perde espaço para outra mais forte, que, certamente, achará uma maneira de reprimir seus opositores.

Não pode haver hesitação em achar, prender, questionar e punir tais criminosos; seu lugar é atrás das grades, no banco dos réus e, por fim, no ostracismo; o mesmo vale para seus financiadores, cujos nomes serão trazidos à tona nas próximas semanas. Todos devem emergir do submundo da conspiração virtual e dar satisfações à Justiça do país, inclusive os que se refugiam no exterior, esperando proteção de nações estrangeiras. Chegou a hora de todos mostrarem suas caras em público.

É cada vez mais claro que a batalha política em nosso país não se resolverá tão somente nas urnas, na aceitação do chamado rito eleitoral. Não estamos mais na conjuntura de décadas passadas, em que o questionamento às urnas era conversa de uma minoria maluca. A despeito do esforço de muitos em recuperar um tempo perdido na lembrança, refiro-me aos dois mandatos de Lula, o passado não volta e nem se repete. Para mim, está claro que seu terceiro mandato será, no mínimo, instável, tal qual fora a gestão de Dilma e seus sucessores. Numa perspectiva mais ampla, anunciou-se hoje o alvorecer de uma década tão turbulenta quanto a que se encerrou anos atrás, ou seja, teremos instabilidade política, crise social e estagflação convivendo simultaneamente — somando-se ao agravamento do cenário internacional.

Os fatos se assemelham à invasão do Capitólio norte-americano, ocorrida no início do ano retrasado, que, por algumas horas, deixou de cabelos em pé as classes dominantes daquele país. Há anos, temos visto a intolerância, o autoritarismo e o extremismo se disseminarem mundo afora, tal qual um vírus altamente transmissível. Até agora, nada parece deter essa maré beligerante e corrosiva — confirma-se, assim, a disposição da psique humana para a insanidade, o ódio mais lacerante e autodestrutivo. Enquanto isso, os líderes e movimentos à esquerda tentam livrar-se do desencanto, da apatia e da paralisia, mas lhes falta recuperar a força de sonhar um outro mundo para as gerações presentes e futuras; contentam-se com pequenas vitórias e estratégias repetidas à exaustão. 

Não sou um cientista político. Limito-me a dizer o que penso e a defender publicamente uma posição de radicalismo à esquerda, que se contraponha ao capitalismo dos nossos dias, o principal responsável pelas diversas crises que assolam toda a Humanidade. Exercer a cidadania implica posicionar-se politicamente, seja a favor do status quo ou contra dele. Com efeito, não sou imparcial, tampouco me ausentarei das questões nacionais, a fim de buscar agradar a todos. Ademais, não duvido que exista pessoas mais bem preparadas que eu na seara política, mas não me omitirei. Quem se dispuser a acompanhar minhas modestas publicações, saberá, exatamente, o que penso destes dias que estamos vivendo.

Sinceramente, eu não esperava ter de escrever um texto desses tão cedo; afinal, estamos no comecinho da segunda semana do ano. Mas, como se diz por aí, a realidade se impõe. Cabe a nós, seus mais fiéis estudiosos, interpretá-la com esmero e lucidez. 

 

Daniel Viana de Sousa

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