sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

Corações

 

Ah, meu coração arde por ti,

sempre alegre e apaixonado,

desde o princípio em que te vi,

tempo de desejo desenfreado.

 

Esse coração é parte de ti,

caríssimo amor ansiado,

Não importa se estou aqui ou ali:

sempre estarei feliz ao teu lado.

 

Peço o teu coração para mim.

Não por merecimento desbragado,

mas por anelo que arde sem fim,

princípio de um ego desamparado.

 

Meu coração te chama assim:

“É preciso se amar por completo,

superando a marca de Caim.

Pecar é só deixar que a verve

vá embora sem deixar um sim”.


Daniel Viana

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quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

Ana Lídia

 

Minha tia é mulher

Que luta pela vida,

Que sabe bem o que quer,

Que não se dá por vencida.

 

Tenho orgulho dessa mulher

Que merece por todos ser recebida,

Que é companheira de fé,

É verdadeira sem medo de ser traída.

 

Ana Lídia é mulher

Que precisa ser reconhecida.

Ela encara o que vier!

Ela merece ser aplaudida!

 

Daniel Viana

© Todos os direitos reservados

Demasiadamente humano

 

Mi amor, Victória…

 

Tus ojos son la luz de mi vida;

Tu pelo es el manto que me calienta en el frio;

Tus hombros me sostienen en la debilidad;

Tu boca es la sagrada fuente de mi placer.

 

¡Perdona mis miserias!

¡Perdona mis errores!

Y vuelve a aceptarme en tu corazón.

Yo soy demasiadamente humano.

 

Daniel Viana

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domingo, 22 de novembro de 2020

Voragem Luminosa

O mal que nos consome

      Quando caminho a céu aberto, sentido o azul do alto me esquentar, me consterno ao notar que todos ao meu redor se predem à tela do celular. Será que ninguém percebe a direção para a qual estamos a rumar? Basta um tropeço no escuro e tudo pode se acabar dentro dum fosso qualquer. E, de fato, alguns terminam no fundo do poço, sem meios de se salvar dessa voragem luminosa. Parece que não adianta mais falar; parece que nos resta parar e esperar que os poucos sobreviventes saiam dessa perdição distópica, desfecho apocalíptico de proporções inéditas. Será que estou exagerando? Creio que não, meu amigo. Quer saber o que penso disso tudo?

As telas me sufocam; elas me cercam como abutres por todos os lados; seus corpos inertes são sustentados por peões catatônicos, incapazes de se verem livres dessas estranhas amarras virtuais; suas luzes artificiais giram à minha volta, como espíritos endiabrados trazidos dum universo paralelo, invocados por um ardiloso feiticeiro cuja primeva intenção fora nos ludibriar com falsas promessas de inesgotável felicidade. Sua fantasmática onipresença — modelada numa espectral miríade de formatos variados — é uma tortura ao meu bucólico espírito, já exaurido de tanta virtualidade, de tanto contato imaterial.

E digo mais: um preço está sendo pago por nossa geração. O distanciamento da realidade concreta nos custa a compreensão de quem realmente somos, do que de fato precisamos e para onde devemos rumar as nossas mentes e corações. Vagamos à toa, de clique em clique, de uma postagem para a outra, cada vez mais desunidos, dispersos e manipulados. Com efeito, nós alimentamos uma economia sedenta por nossa insatisfação, por nossa sensação de que algo está em falta; nós somos alvejados por padrões de consumo e de beleza que são, propositalmente, moldados para uma ínfima minoria de privilegiados, a fim de que estejamos, mais uma vez, insatisfeitos com a realidade presente; somos impelidos a repetir uns aos outros, em códigos de consumo de massa, no intuito de criar um senso coletivo de pertencimento à mesma alcateia de lobos famintos, à mesma turba de zumbis sanguinários.

Claro que eu poderia me trancar no quarto e fingir que esse mundo confuso não mais existe. Seria suficiente dar um giro na chave, para, em seguida, lança-la ao quinto dos infernos, depois, eu me cobriria com um lençol da cabeça aos pés, enterrando o rosto num travesseiro que sorvesse minhas lágrimas amarguradas. Tudo se resumiria ao silêncio do meu quarto, ou seja, eu reduziria a realidade ao que existe de mais simplista e banal. Em suma, eu tentaria ter em mãos um mínimo de controle sobre uma vida que é, por natureza, complexa e exuberante. Assim, eu daria um fim ao capitalismo decadente e tardio da nossa sociedade pós-moderna? Suspeito que nem os isolacionistas possam tanto com sua fuga da realidade. No entanto, para alguns, tudo funciona exatamente como aquela expressão estadunidense: “enough is enough”. Sem dúvidas, essa tem sido a escolha de muitos ultimamente: a reclusão final e peremptória.

Mas eu sou diferente. Creio que algo em mim prefere estar em meio à loucura que vivemos — e que se adensa à medida que o tempo passa, assimilando tecnologias sofisticadas, novas tendências e conflitos inauditos. Não temo as chamas do incêndio que nos acomete. Na verdade, mesmo com tantas dificuldades, ainda estamos respirando e sobrevivendo, usufruindo da oportunidade de transformarmos a realidade que nos cerca, de tal maneira que se aproxima a hora da decisão. Iremos nos render à realidade manifesta ou mudar tudo de uma vez por todas, como se a Revolução fosse um chamado ao momento decisivo que vivemos! Haveremos de nos decidir. Enquanto isso, vou vivendo o que posso de cada dia, vou aprendendo com essa realidade o que ela me apresenta. Acima de tudo, eu quero apreender o que se passa, a despeito da consternação que o presente acarreta.

 

Daniel Viana

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terça-feira, 6 de outubro de 2020

A todo vapor


   Luzes acesas à minha volta; agora, só vejo corpos em movimento, sorrisos num outdoor dizendo o que deve ser feito a toda hora, tudo isso sempre ditando, lá do lado de fora, a ordem pra que todos sigam em frente, que tudo é sempre "sem demora", que a felicidade só cabe no bolso de quem se esforça, que o boom da vida se procura na vitrine da moda, que paz e amor é coisa de quem chora, e que ninguém se atreva a conter essa roda de girar pelo mundo afora, destruindo a fauna e a flora, moendo a vaga memória dos povos de outrora, se valendo da guerra pra contar a sua própria história e fazendo da nossa vida uma realidade morta.

    De manhã, meu corpo acorda cansado, por se sentir servo da própria sina, por ser amordaçado toda vez que digo que a violência não ensina, por ver o mundo se voltar contra a menina que ousou falar na própria língua, por não ter o mesmo direito de quem anda no andar de cima — essa gente que, aliás, se porta como se fosse divina —, por ver a democracia derreter como resina, por ter ofertado os meus átomos em pedaços nessa usina que consome vidas. Quem me dera ter encontrado uma milagrosa medicina, uma única vacina pra toda essa usura urdida na urbes capitalista!

    De repente, um operário se lança aos berros pelo anfiteatro, incendiando os ares com todos os fatos acerca dos seus males: "Sei que sou usado pelos altos poderes! Ah, como sei! Não diga que preciso ler pra sentir o sangue vertido escorrer pelo escuro do capacho. A fadiga vai muito além de uma teoria qualquer; ela me consome por dentro; ela me aniquila por inteiro; ela é um fato puramente verdadeiro. De canto a canto, ouço um único lamento: 'eu não aguento mais, meus irmãos'; eles são de corpos em sofrimento, são de olhos marcados pelo soco do tempo; ombros vergados como um reles rebento, já cansado de ser varado pelo vigor do vento; são semblantes desfigurados pelo esgotamento". Contudo, esse povo se recusa a cessar sua triste tortura, pois, tomar as rédeas da própria ventura, requer suportar o som do silêncio, o som da incerteza que está presente em todos os momentos de decisão.

   À tarde, o noticiário se agita com um escândalo de última hora, com um massacre a tiros em mais uma escola, com uma economia subdesenvolvida que jamais decola; e com o povo padecendo aos milhões na esfola, que é como eu traduzo aqui o trabalho ininterrupto por uma esmola; além disso, temos mais uma fala do presidente, que, por sinal, só enrola; e temos o Chile em plena revolta, que lança às alturas um continente ansioso por mudar a sua trajetória. De fato, eu não pertenço à malta inglória, mas sou obra da esquerda que ferveu o mundo com sua história, que marcou em todos o signo da sua trajetória. Sim, quero a vitória de quem se sacrifica, quero dar glória aos trabalhadores e aos revolucionários, quero exaltar a memória de quem sonhou com um mundo melhor, bem melhor que o de agora.

 

Daniel Viana 

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quarta-feira, 30 de setembro de 2020

Por que estudo Psicanálise

 

Sigmund Freud, criador da Psicanálise.

      Após anos de terapia psicanalítica, as convicções que carregamos são postas em xeque, de tal maneira que uma transformação interior se torna incontornável. Ela pode ser lenta, mas é seguramente inadiável. Com efeito, ao mesmo tempo que algumas certezas caem por terra, outras surgem como uma força inesperada, um surpreendente ânimo, que nos toma pelo braço e que guia os nossos passos rumo a um tentador desconhecido, um mundo à espera de ser redescoberto inúmeras vezes. Creio que fazer uma terapia psicanalítica é, em boa medida, mergulhar naquilo que é próprio do mistério humano: o inconsciente.

    Não é por acaso que, para a formação de um psicanalista, é indispensável a experiência da análise pessoal. Como ajudar alguém a realizar essa inóspita travessia sem tê-la feito por conta própria? Ora, foi ao fazer a minha terapia, que me senti seguro para considerar a possibilidade de iniciar uma formação teórica em Psicanálise. Foi decifrando meus atos falhos, meus lapsos, minhas insistentes repetições e manias que cheguei ao ponto de me perguntar: por que não se arriscar a decifrar outrem? Seguramente não houve uma luz que caísse do céu sobre mim; em outras palavras, não houve uma mudança súbita, mas sim uma transformação gradativa, como um infante que aprende aos pouquinhos sobre o mundo à sua volta.

      Ainda assim, persiste a pergunta: por que se tornar um psicanalista? o que me move nessa peculiar direção?

    Suspeito ter em mim um desejo sigiloso, uma vontade peculiar em ver desabrochar, à minha frente, os segredos, os delírios, os devaneios, as sandices e desejos da mente humana. É como se eu quisesse ser a privilegiada testemunha daquilo que só ouvimos falar nos romances psicológicos de Dostoievski, ou nos melhores filmes hollywoodianos ou, ainda, em histórias diversas, que só a imaginação criativa do Homo Sapiens é capaz de criar. Também desejo ajudar, é claro, com uma ética da escuta que acolhe quaisquer pensamentos. Isso inclui desde as divagações mais ordinárias, até às ideias que a nossa sociedade costuma ignorar, condena e vilipendia.

     Dito isso, creio ter dado cabo (momentaneamente) a uma questão insistente, que se fará presente pelo resto da minha vida. Pois, ser psicanalista, é uma espécie de vocação, para a qual temos de revolver o terreno das dúvidas à procura de respostas, para a qual temos de insistir em redescobrir o sentido de deitar no divã, de estudar os textos teóricos e de acompanhar aqueles que nos procuram. A jornada (felizmente) nunca acaba; ela se prolonga até onde for a nossa busca, o nosso anseio por compreender o mundo, a existência e o desejo.

 

Daniel Viana

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quinta-feira, 11 de junho de 2020

Um elogio à Psicanálise


      Após um ano e meio de terapia psicanalítica, chego a conclusões que gostaria de partilhar, pois, assim como outros pacientes, fui à procura de respostas para uma crise pessoal que colocou em xeque uma série de certezas que tinha a respeito de mim mesmo.

       Naquela época, meu conhecimento acerca da Psicanálise era nulo. Já tinha ouvido falar de Freud, do inconsciente e do famigerado divã, mas nada que fosse além do senso comum. Também nunca tinha tido um interesse especial por qualquer forma de psicoterapia, de modo que nada disso teria ocorrido sem a coexistência dos seguintes fatores: a crise pessoal, a busca consciente por uma saída dela, o amparo familiar e a experiência benéfica que outras pessoas, próximas a mim, já tinham tido antes. "Se essa terapia já transformou outras vidas, então, por que não a minha também?", foi o que eu pensei.

       Agora, tendo passado por um processo significativo de autodescoberta e de autoconhecimento, que ainda está longe de ser finalizado por completo, estou plenamente convencido de que a Psicanálise não apenas me transformou, como também tem muito a oferecer às pessoas dispostas a seguir por essa estrada. Assim sendo, resolvi escrever a respeito, mesmo sabendo que seria impossível pôr em palavras tudo que foi vivido. Na realidade, esse texto é um modesto elogio à Psicanálise, um singelo reconhecimento da mudança que eu mesmo passei.

       Em primeiro lugar, querer ser ouvido não é sintoma de esquisitice, nem de falta de amigos, mas parte do fato de que certas coisas não vão ter a atenção que merecemos, a escuta necessária. Pois as pessoas que mais amamos, por serem humanas, podem acabar esquecendo de nos ouvir quando mais precisamos; outras, infelizmente, nem sequer sabem ouvir a si mesmas, ao seu próprio coração falando; então, como elas poderiam nos dar o que não permitem ao seu espírito?

       Trazer à tona o que foi tantas vezes silenciado, por censura ou medo, tendo sempre o sigilo como garantia fundamental, não é sinal de covardia. Pois a nossa vida íntima, ao contrário de uma mercadoria banal, não precisa ficar à mostra numa vitrine, não vale a partir de quantos a veem ou a conhecem, não deve satisfações a ninguém. Hoje, estou convencido de que a privacidade é indispensável à saúde mental dos indivíduos, bem como imprescindível ao bem-estar coletivo de uma sociedade. Além do mais, certos assuntos, quando compartilhados com alguém, acabam perdendo um pouco do seu peso inerente, aquela importância exagerada que teimamos em atribuir — possivelmente, pela força do hábito. Esse processo, que muitas vezes é longo, sinuoso e cheio de surpresas, atenua o sofrimento que sentimos por levar esses dilemas sozinhos.

    Terapia psicanalítica não é lugar de autocomplacência. Pelo contrário, ao sermos confrontados com a manifestação do inconsciente, resta-nos duas opções: lidar com o conteúdo proveniente de nós mesmos ou irmos embora. De fato, recusar o que sai da boca, é negar aquilo que é mais próprio de cada um: a dor silenciada, o desejo acobertado, o remorso negado etc. No final das contas, cada um faz a sua escolha, assumindo (ou não) responsabilidade sobre o que é dito no divã. O mais importante, ao menos no meu entendimento, é a evolução que tal descoberta de si é capaz de propiciar.

    Enfim, buscar ajuda de um(a) profissional da saúde mental, não o torna menos capaz do que os outros; ao contrário, isso nos lembra a infância, aquele momento em que, após sofrer uma queda muito dura, terminamos pedindo ajuda para, primeiro, se erguer, em seguida, dar um passo à frente e, finalmente, voltar a se valer das próprias pernas. Recusar ajuda, por sua vez, acaba por revelar uma teimosia que só é verdadeiramente prejudicial a si mesmo. Sempre há espaço para um novo aprendizado e um reaprendizado de si, um novo olhar para o mundo que nos cerca e a identidade que construímos para nós mesmos.

De repente, me dei conta de que já não era o mesmo de antes. À medida que saía do consultório para a rua movimentada, do espaço íntimo ao espaço público, do mundo particular à realidade externa, era tomado por uma alegria contagiante, um sorriso indisfarçável; pois sabia que aquele que havia passado pela porta de entrada não era o mesmo que, agora, atravessava a porta de saída. Expressar em palavras o que havia dentro de mim, dando outra forma à maneira como me enxergava, era um meio de transformar a mim mesmo, uma espécie de cura pela fala.

       Por fim, a Psicanálise me mostrou que ir à procura de uma psicoterapia, não quer dizer que você está fraco, mas que você está forte o suficiente para se cuidar. Só quem se cuida é capaz de se amar, de reconhecer o valor da própria existência, e o amor próprio é condição para amar ao próximo, ou seja, para ser humano em plenitude.

Daniel Viana
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Publicado em 24 de Agosto de 2019.

quinta-feira, 4 de junho de 2020

Um tributo a John Coltrane


     Ao ouvir Peace on Earth, me vejo diante da eternidade; um espaço amplo se abre diante de mim, como o cosmo multidimensional; nesse lugar, as miudezas terrenas parecem tão distantes, quase inexistentes, pois fomos alçados às alturas por obra dum espírito soberano, um místico John Coltrane; nesse ponto, o cansaço intrínseco à existência, dá lugar ao repouso no calor que emana além do meu ser. Não tenho mais medo; não venho com perguntas à espera de responder ou quaisquer culpas do que não pude realizar. Me coloco plenamente aberto, em pleno florescer, e me permito ser amado pelo célere som que logo vem, em notas pelo timbre do saxofone metálico. Ah, fui tocado no ponto mais íntimo do meu ser, no âmago das coisas que não posso dizer, pois, como você poder ver, as palavras falham quando o prazer transcende o mero viver.

    Uma cor floresce à minha volta, pacífica e intensa forma luminosa; tomando a forma dum raio violáceo, meio róseo em seu íntimo traço, que se une à minha essência na forma de gotas em pura incandescência, provavelmente derretidas duma estrela qualquer numa amálgama misteriosa, tal como um riacho luminoso que escorre pelo vazio do espaço transcendente — a presença dessa força insólita, criatura repleta de potência, se perdeu para sempre.

   Sei que tudo pode parecer uma vertigem de sonhos, um delírio singular pelo jazz americano, ou, ainda, um apelo hermético a um tipo de abstracionismo peculiar, mas tudo me envolve de maneira tal que nem quero saber o que você vai pensar, como o resto do mundo vai me julgar, porque isso que te digo sem vacilar, esse testemunho íntimo e particular, é próprio duma Consciência preocupada apenas em despertar, abrindo os olhos para aquilo que antes não podia ser contemplado, sentido ou experienciado. Meus olhos se enchem de lágrimas, de tal modo que um sorriso vem à tona, pois já não há o que temer; e uma sensação de triunfo sobre a morte, de emoção soberana me ocorre. Agora, me sinto prestes a retornar ao útero ancestral; me sinto com as asas que foram perdidas no passado; me sinto voando rumo aos céus, sem nada que possa me segurar. Somente John Coltrane é capaz disso.

Daniel Viana
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Publicado em 28 de Setembro de 2019

quinta-feira, 21 de maio de 2020

Dê um passo à frente



   As luzes são cativantes quando desaparecem; deixando seus rastros pela correnteza e na vastidão do céu que não podemos tocar, é assim com os rasgos violáceos pelo ar; pinturas feitas na despedida do Sol sobre o mar, é possível notar seus traços nas nuvens róseas, bem como nos tons mais rubros ao limiar do cosmo. Somos como essas luzes que partem em busca de outro lugar, que saem sempre à procura do que não sabem onde está, que ardem — ah, como ardem! — e que teimam em nunca se acabar. É assim, de mãos dadas, que partimos em direção aos barrancos mais afastados da enseada. Queremos ficar a sós.

      Cada passo à frente traz do poente clareza aos olhos; meu amor sente minha ânsia por felicidade, que é quente como o disco dourado que adormece na praia. Nosso ventre se une à sombra de uma nuvem que atenua o astro incandescente; mesmo assim, ela me abrasa com sua carne coberta de areia ardente: "Adentre! Adentre em mim com sua oferta! Esse ardor que me queima, que me acerta, lava-me da culpa de estar incerta entre a fuga em seus braços e minha vivência deserta". E foi como uma sereia, que não se refreia ante a lascívia da sua mente, mas clareia tudo para que exista inteiramente, que ela se esparramou em mim. Foi assim que dei toda vazão esperada à paixão pulsante em meu peito fervente.

      Me deito contigo nesse leito da praia que nos consente; é nela que se espraia a forma inocente do nosso libido totalmente amansado. Ah, como me deleito por me sentir o teu amante, o teu eleito, o teu companheiro mais ansiado! Pois, no teu jeito tão afeito a me olhar, me descubro satisfeito, bem como me aceito perante todos nesse mar! Contudo, à medida que vejo o astro repousar, uma inquietude faz a minha alma se agitar.

     Saiba que os meus olhos nunca se perdem quando você passa, mas é preciso reconhecer, após tanto caminhar, que todos os caminhos se dividem, mesmo que todos os rios anseiem por seu mar. É preciso ver como as luzes se despedem à beira-mar: seus raios nos rasgam ainda mais calorosos quando os vemos se apartar. É assim que devemos preservar a lembrança do nosso amor: sem brigas que possam nos desunir, sem mágoas que possam nos molestar. Por que se deter, dia após dia, ao mesmo lugar? Não será o apego uma forma de se iludir, ao invés de se amar? Viveremos só de recordar o passado?

        A partir daqui, as minhas promessas se esgotam. Eu não tenho, ainda que me peças, aquelas juras de felicidade eterna; eu te ofereço, isso sim, em cada uma dessas linhas, a quebra com todas as fantasias que nos ensinaram a acreditar. Tudo vai passar do seu tempo. Mesmo o ódio mais tenaz, às vezes tão súbito em seu surgimento, não consegue triunfar além de um mero instante fugaz. E mesmo que nos livrássemos de qualquer tormento, quem nos preservaria da morte, por exemplo? Quem se apega aos outros em excesso, arrisca-se a jamais se erguer no primeiro tropeço que qualquer relação traz. O mundo sempre se refaz das suas perdas; o humano, por sua vez, é frágil demais pra tantas quedas.

       Talvez você diga: "Lá vai mais um homem fugidio, cheio de escolhas repentinas, vagando à procura do que não sabe explicar". Na verdade, eu não nego que padeço de uma loucura: navegar o oceano incerto, onde as águas em movimento cortam as minhas raízes do chão. Quero ser um explorador da vida, um navegante perdido em sua imensidão. É imbuído desse sentimento, que navego sem qualquer direção ou apego pelo que já é, simplesmente, pura recordação. Mas, para dar esse passo, é sempre preciso abrir mão, ainda que se abra uma fissura em nosso coração.

        Dizem que o verdadeiro amor é aquele que não acaba, mas penso exatamente o contrário: o verdadeiro amor sempre abre espaço para o novo, ainda que o velho possa ser saudoso, cheio de brilho, como um astro luminoso. Já posso ouvir cantar, no limiar do horizonte, as aves migrantes. Ah, eu quero voar com elas: sem quaisquer entraves e muito acima dos mirantes. Preciso ir além dos suspiros de paixão à noite, onde o meu âmago acaba se tornando seu refém; preciso findar esse prazer, onde o meu corpo se detém ao seu, e que já não mais mereço. Escute: de todo fim se provém um recomeço. O mundo, certamente, te trará outros desejos, me tornando aquém aos seus anseios. Pois o futuro não contém qualquer feição, senão aquela que projetamos por esperança ou desespero; o futuro nos pede, somente, que saibamos sempre recomeçar.


Daniel Viana
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Publicado em 22 de Outubro de 2019

quarta-feira, 20 de maio de 2020

Às voltas com o desencanto



     Vejo olhos cansados por onde passo. No rápido encontro que tive com um amigo do trabalho, percebi um olhar meio baço, quase opaco, ombros caídos e um papo de que tudo no Brasil estava errado; logo em seguida, na conversa que troquei às pressas com um jovem desempregado, um murmúrio iracundo se elevava da sua voz e atirava balas contra tudo, e uma aspiração iconoclasta era sugerida, meio que aos sussurros, por medo de que a vigilância se desse conta daquela subversão marxista-leninista, de modo a nos prender e fuzilar à beira de uma vala qualquer, pois, agora, valia tudo contra o povo exausto, totalmente espoliado, como sempre, do seu direito à paz, à terra e ao pão; um pouco depois, reparei na presença de uma moça altiva, ela estava sentada ao nosso lado, vestida de negro e púrpura, segredando à sua amiga como resistir ao desencanto, como não ter aquele vislumbre desamparado, sempre direcionado ao vazio áspero do asfalto, ao escuro do petróleo, que era entrecortado somente por carros em sentidos contrários, rápidos como animais enfurecidos e desenfreados.

    Sem demora, surgiu à nossa frente uma turba, um horda furibunda, uma malta alucinada, avacalhando com tudo, mesmo que sem conteúdo, fazendo-se valer apenas da pura violência; eles estavam uniformizados, fardados à moda brasileira, como uma só torcida futebolística que (aparentemente) visava tão somente o bem coletivo; no entanto, aqueles que preservavam o olhar acurado, o devido respeito à coerência discursiva, o distanciamento analítico (tão necessário ao bom juízo em nossos dias), sabiam que ali estava uma gente à beira da sandice, dando mostras, por meio de seu discurso, de uma indiscutível demência; eles falavam da volta de Sebastião, da vinda de um frota norte-americana, da malhação do Judas e assim por diante. Quando percebi que não tinha como ser ouvido, que não valia a pena gritar à toa, simplesmente me levantei e me retirei sem grandes saudades, sendo seguido pelos meus amigos que não se faziam valer à força, pois a vida é curta e vale a pena ser vivida agora. Tudo isso numa boa, como dizem os surfistas.

    Esse breve momento que acabo de narrar, tão célere e agitado quanto um pôr do sol que naufraga na linha do horizonte chamuscado, ocorreu, há alguns meses, para milhões. Foi uma experiência coletiva, digamos assim; um dia em que cada um cumpriu à risca o protocolo pré-programado: uns votaram nesse ou naquele partido, dando fim ao seu desejo tão longamente ansiado. Hoje, dá pra perceber em que enrascada nos metemos, não é mesmo? Até com a França a gente anda brigando, cara. E dizem que alguns da turba alucinada já mudaram de lado, mas o que eu acredito mesmo é que tudo há de passar, inclusive o infame desmiolado que se sentou à mesa com o Pentágono. Enfim, cabe aqui um último aviso, numa espécie de breve anedota, evidentemente pensada antes que o ódio político venha à tona: este é (em parte) um texto ficção que se inspirou nos dias que vivemos, nas tardes modorrentas de um verão sombrio que ainda não acabou. Vida longa ao Brasil! Vida longa ao povo brasileiro! E salve-se quem puder…


Daniel Viana
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Publicado em Agosto de 2019

segunda-feira, 11 de maio de 2020

Colado à tua forma


      Como é bom sentir na boca rósea a presença firme da tua forma; em cada curva dessa enseada morna, o gosto da uva me deixa eriçado; é nesse jeito áspero com que a tua língua me roça, aberto à fantasia da paixão que é só nossa, que o homem se descobre completo na mulher que o toca. É por isso que a ilusão da tua cópia, esse arremedo ajustado à moda, é cilada farsesca, é mentira a ser lançada fora; tal como a rosa prometida na véspera, a projeção luminosa da tela é sempre uma realidade inóspita.

     Lembre-se quando estamos a sós, degredados a se amar no sigilo secreto do teu quarto: tua voz se torna o meu pior algoz, a cada som que se ergue, sempre num tom mais veloz; e quando a maciez dá lugar ao gemido mais feroz, rompe em nós, sem que se fira, a fera felina mais atroz, cuja faísca é, com certeza, essa nossa "paixão imprópria", essa tal "fome repentina", ou, se preferir, a "condição primitiva" que enlaça as carnes ansiosas por arder… E se esquecermos o que vem após, o dia que se segue ao encontro veloz, é possível que tudo isso dure um pouco mais, é possível que a eternidade se faça presente em meio a nós.

     Pois bem… sempre que o meu corpo se encontra ao teu, nas tardes tórridas em que ardes com chama própria, tendo meu ventre colado à tua carne, onde se cultua para que a vida se encarne, minha força contida jorra tal como aço ardente em tua forma. Pois quando me enlaço no seu afago, no espaço íntimo aos amantes reservado, é que me descubro masculino apaixonado; antes, no reduto solitário, sou apenas falo. Ah, e como me corrói essa dor! Ela me atravessa pelo talo do meu ser! O fato de estar ilhado sem você, é como vagar afastado por um deserto escaldante, tendo apenas a promessa de um futuro ao teu lado.

     Diante das farsas postas em lugar do tato, eu faço essa pergunta: quem nunca se sentiu à deriva? quem nunca se viu à parte? Muitos já se acostumaram, é verdade, mas, por um tempo,  eu achei difícil tirar os olhos do teto, acreditei ser impossível recolher as lágrimas do chão do meu quarto; acabei ficando à espera da vida, mas tudo acabou sendo em vão. Aos que chegavam perto de mim, sempre aos beijos e abraços, eu dizia: "Não prove do meu veneno. Estou necrosado por dentro. Nada mais me alegra, nem mesmo o passar do tempo".

     Esse mundo sem contato qualquer, exceto o inquieto clique imediato, revela um rosto exato à minha frente, retrato de um mundo aparente, cujo único ato é um tique carente por espaço. Quero que você atente à essa geração ausente: quem era parte do presente, rolando seus corpos de criança na areia quente da praia, dando forma aos seus castelos no lodo mole, esvaiu-se de repente. Às vistas do céu, no suave toque da terra e do mar, éramos todos uma só gente; agora, estamos ensimesmados, voltados ao próprio umbigo, como se o mundo se resumisse a um perfil no ciberespaço.

     Portanto, ao invés do reflexo inerte, deixe em mim um toque macio, ainda que breve, antes que algo nos leve pra longe do mesmo destino, pra onde só reste um suspiro solto no ar; pois somos feitos para amar com toda verve, pra viver à flor da pele. Quebre a frieza desse espelho que promete ser você, que almeja reluzir o próprio ser! Tanta luz não pode se resumir a uma bateria vulgar, e já não há lápide melhor para a morte do amor que a tela de um celular. Baby, nada disso há de perdurar! Quero um encontro contigo, quero te ver e te abraçar, quero sair pra falar no teu ouvido… não há porque esperar.

Daniel Viana
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Publicado em 24 de outubro de 2019

sábado, 9 de maio de 2020

Nada pode me magoar, Baby



       Queria ter escrito antes que a memória se perdesse: seu sorriso naquele momento não deve ser esquecido, Baby. Não me perca entre as palavras, pois o silêncio entre elas é a porta que você deve usar; e mesmo que tenham nos convencido a falar de amor, saiba que aquele sorriso expressa tudo que há para se contar. Então, repita-o sem vacilo sempre que precisar entrar em mim, e fantasiar, em asas de serafim, minhas noites com sua presença; contido nele está a essência da minha busca sem fim. Nada precisa ser dito, Baby, nenhum esforço demasiado. Apenas contorne o palavreado.

            Às custas da noite inteira, expressei minha ânsia por uma companheira num mundo em convulsão e, de alguma maneira, você sabia que a melhor palavra não traria o mesmo que a sua alegria. Encontramos a ponte que nos une; e percebemos que somos, com toda certeza, uma mesma fonte que reúne corpos dispostos a queimar. Ah, sinto o calor agora, nas veias do pescoço e nas fantasias da imaginação, mas meus olhos, perdidos no espaço, são vagos na lembrança desse passado. Divago pelo escuro do quarto, tateando à procura da forma com que memória se torna relato.

            É duro como o tempo esmaece a cor das flores em sua Primavera; seu castigo cai sempre nas lembranças mais singelas, deixando à espera minhas feridas abertas. Ainda sinto a dor da infância; ainda choro a perda da criança; enquanto olho à distância teu sorriso perder toda substância. E, à medida que o tempo avança, Baby, vejo a esperança no futuro valer menos a cada dia que um homem não alcança o que tive com você. Às vezes, penso em salvar as coisas que um dia pudemos viver, mas algo em mim parece dizer: "É para que percebas o momento acontecer; é para que vivas, ao invés de reter".

            Estar à procura do passado com você, é como vagar no cosmo estrelado, com luzes que já estão a morrer: tão logo acabo por ver, percebo o inato vazio de não ter aonde pisar. São nebulosas além do alcance as formas com que tudo parece acontecer: mesmo que seja belo reviver cada instante, só de relance é possível descortinar seu contorno distante. No fim, tudo gira em espirais que não posso conter: lembranças faiscantes, porém fadadas a se distanciar, até um buraco tragar sua forma eternamente. Então, devo contar aquilo que der numa poesia sem verso, mas em excesso de tudo por você, Baby.

            Sentados à sombra da noite, quando o verão nos convida a procurar motivos para se encontrar, não encontramos outra língua que pudesse falar o que queríamos dizer. Fizemos o mesmo que todos os casais. Acabamos trocando detalhes sobre nós, como cantos de sereias em pleno mar: ouvidos por ondas que acabam por se esgotar, sentidos sem espaço para permear. Há, finalmente, quem nunca se acomoda ao mesmo prazer; cujo espírito curioso não precisa de algo por acontecer, de voar em busca do futuro por medo do presente. É isso, Baby, que faz tudo em você ser diferente, e que não tira o teu sorriso da minha mente.

            Estava distraído com tudo que passou, quando sua mão deslizou por detrás do rosto, sentindo o cabelo solto, algo que traz conforto durante o toque dos olhares; e, num mero instante, todo seu semblante veio a brilhar. Nada foi mais vibrante do que estar naquele lugar. Mesmo assim, tudo em volta teimou em te ignorar. Coube a mim antever nessas palavras a forma de preservar o que não se pode rever. Ante esse gesto fugaz, minha arte veio finalmente a nascer; em meio ao teu corpo, somente contentar é um dever. Baby, minha escrita serve à preservação do que ainda nos resta: mulheres cuja presença nos leva à transformação.

            Esse sorriso me desperta para um amor que não pode ser ensimesmado, muito pelo contrário, sua única meta é ver-se doado à pessoa amada. Na hora certa, tudo em mim pareceu desaguar em mar aberto, de modo que essa crônica pode afundar numa loucura sincera. Ser tão aberta assim, é de uma coragem que a poucos se revela, pois é incerta a vida em seu caminhar, nunca saberemos quem se aproxima para nos partir e quem veio para nos amar. Portanto, ao invés de acabar apegado, resolvi plantar esse amor no meu lado esquerdo. Está anotado o teu conselho, que, ao contrário do meu, não requer tanta conversa.

            Já vaguei a esmo minha vida inteira; estive à procura daquilo que vivi numa noite à sua maneira: uma mulher que me acolha no coração, sem medo de ser uma flecha certeira. Portanto, antes que toda memória se perca, receba essa crônica e tenha certeza em si mesma; antes que sua alegria se torne passageira, numa correnteza que arrasta nossas vidas para um mundo que a entristeça. Mesmo que uma faca fria percorra a memória que te faz sofrer, nunca se acomode em ver seu sorriso esvaecer. Saiba que nada pode me magoar, Baby, a menos que você se esqueça de si mesma.

Daniel Viana
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Publicado em 18 de Outubro de 2019